La nouvelle histoire: reflexões sobre o fazer histórico




Análise Comparativa:
La nouvelle histoire*: reflexões sobre o fazer histórico


- BLOCH, Marc - Introdução à História (Apologie pour l,Histoire ou Métier d,Historien). Edição revista, aumentada e criticada por Etienne Bloch. Tradução de Maria Manuel, Rui Grácio e Vítor Romaneiro. Mira Sintra: Publicações Europa-América, 1997, p. 47-72.
- LE GOFF, Jacques ? "Documento/Monumento". In: História e Memória. Tradução de Irene Ferreira e outros. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 95-106.
- BRAUDEL, Fernand. "História e Ciências Sociais: A Longa Duração". In: Escritos sobre a História. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 261-294.


Do ponto de vista metodológico, que confere desde logo o sentido deste trabalho, a prática de investigação histórica deve muito a historiadores como Marc Bloch e Lucien Febvre. Precursores de uma "nova história", de um novo modo de pensar o fazer histórico, fundadores da revista "Annales d,histoire économique et sociale" e de um movimento de renovação dos domínios tradicionais da história, Bloch e Febvre proclamaram a ambição por uma história que não se contentasse com o "marasmo intelectual" em que então se encontrava. Uma história que rompesse com barreiras estritamente disciplinares, o que Lucien Febvre chamava, em 1932, de "derrubar as velhas paredes antiquadas, os amontoados babilônicos de preconceitos, rotinas, erros de concepção e de compreensão". Duas dimensões inovadoras dos Annales já se evidenciam nos dois epítetos do título da revista, história "econômica" e "social", campos que eram relativamente pouco explorados pela historiografia tradicional. Esta última interessava-se quase exclusivamente por indivíduos, pelas camadas superiores da sociedade e pelos acontecimentos (guerras, revoluções), ou pelas instituições (políticas, econômicas, religiosas...). A história nova, pelo contrário, esforçou-se pela redução da obstinada valorização das ações conscientes quase sempre voltadas para fins políticos. Essa história não se contentou em abrir aqui e ali novos horizontes, novos setores para si. Ela se afirma como uma história global, com aspirações totalizantes, atenta às massas da sociedade e às minorias excluídas e, sobretudo, às evoluções e permanências, quase sempre não percebidas na fugacidade dos eventos correntes, que só se apreendem pela experiência cumulativa dos séculos, na história de longa duração.

É evidente que também outros historiadores de fora do grupo dos Annales, como o célebre holandês Huizinga, cumpriram solitariamente o mesmo papel inovador. Não se pode esquecer, igualmente, que a história nova também se faz fora da França, e muitas vezes de maneira brilhante e pioneira. Ainda assim, e mesmo a despeito das crises que essa história tenha sofrido até os nossos dias, seus esforços promoveram uma extraordinária ampliação no campo dos documentos históricos, desmistificando a importância exclusiva dos registros escritos, de autenticidade comprovada, tal como erroneamente prescreviam as metodologias positivistas. Partindo-se dessa premissa, analisarei sucintamente as principais ideias presentes nos textos referenciados de Marc Bloch, enunciando os caracteres gerais da observação histórica, e de Jacques Le Goff que, por sua vez, reafirma e complementa as ideias de Bloch em direção à crítica da noção de documento (sem escusar-se das outras questões de seu próprio tempo, que igualmente tem por onde influenciar o seu fazer histórico; não se pode esquecer, além do mais, que Le Goff faz parte da chamada 3a geração dos Annales, cujas características não serão aqui exploradas; importa salientar, sobretudo, a eminente revolução documental que se verifica no período, tributária das discussões animadas pelos antigos dirigentes da revista). O texto de Fernand Braudel servir-nos-á para enunciar as principais diferenças que se percebem já na segunda geração dos Annales em relação à primeira (focando nas questões de interdisciplinaridade e níveis de duração), as continuidades e as novas inquietações no seio de uma revista já consolidada e respeitada.

Marc Bloch concebia como audácia necessária estender o domínio da história "até o conhecimento do presente", sendo bastante considerável a parte reservada a artigos contemporâneos na revista dos Annales. Com efeito, Bloch incita os historiadores a debruçarem-se sobre seu próprio tempo, já que, inevitavelmente, esse presente é carregado de problemáticas multifárias que nos induzem ao passado, de maneira consciente ou não. Mas, observa, será que "entre o conhecimento do passado humano e o do presente existe uma oposição de técnicas?" Seria o conhecimento do passado, por contraste do conhecimento do presente, "forçosamente indireto"? Mesmo em casos raramente favoráveis, em que a observação direta torna-se um privilégio do investigador, dificilmente este gostaria de ser "testemunha de si mesmo". Qualquer narrativa assenta-se em coisas vistas por outros. Além do mais, acontece frequentemente que um episódio, às vezes capital, torna-se impossível de precisar após algumas horas. Nenhum historiador pode "dar-se ao luxo" de confiar unicamente nos registros de sua própria memória. No caso do presente, os historiadores não se encontram tão desarmados como no passado, já que poderiam chamar a si, de acordo com o grau das circunstâncias (supondo-se que existam testemunhas vivas ou em condições de sê-lo), o relato "vivo" das próprias testemunhas. Mas a questão metodológica, do mais longínquo passado ao mais imediato presente, pouco se distinguiria em ambos os casos. Cabe ao historiador, portanto, dar o devido lugar aos vestígios de épocas pretéritas.

E tais vestígios do passado, segundo a concepção de Bloch, não se limitavam às suas formas escritas. Não apenas os documentos materiais, mas "tanto como o sílex talhado outrora pelos artífices das idades da pedra, um aspecto de linguagem, uma regra de direito incorporada num texto, um rito fixado num livro de cerimônias ou representado numa estela, são realidades que nós próprios apreendemos e que exploramos por um esforço estritamente pessoal da inteligência". Qualquer vestígio que nos remete ao passado, assim, ligando-se a um processo mais amplo de compreensão das sociedades humanas, situadas no seio de suas relações culturais e produtivas, torna-se um instrumento valioso nas hábeis mãos do historiador. Quase sempre este se encontra numa posição de retaguarda perante civilizações e culturas com as quais não tem a menor proximidade no tempo. A observação de restos arqueológicos, contudo, pode possibilitar ao historiador um tipo de análise direta sem a recorrência a qualquer tipo de intermediários (embora muitas vezes haja a necessidade de relatórios de estranhos no seu laboratório). Como exemplo, o autor nos indica o caso das ossadas de crianças encontradas em vasos metidos nas paredes de algumas cidadelas sírias. É evidente que se trata de vestígios de sacrifícios humanos, relacionados ao próprio processo de construção daquele lugar. Foi justamente esse "raciocínio singelíssimo que, por exclusão de qualquer outra possibilidade de explicação, nos permite passar do objecto realmente observado ao facto de que esse objecto é a prova". Nesse sentido, o conhecimento que temos das imolações murais da Síria nada tem de indireto. Mas toda operação histórica, por mais que se utilize de múltiplas fontes, passa inexoravelmente pelos juízos intelectuais do historiador.

O autor sugere a existência de dois tipos básicos de testemunhos históricos: os voluntários, destinados à informação do leitor, e todos aqueles relacionados a uma categoria que enquadra as testemunhas que não pretendiam sê-lo (materiais de inscrições, papiros, moedas, bulas papais...). Sem a recorrência a essa última categoria de testemunhos, períodos inteiros do passado permaneceriam como lacunas abertas. Seria um equívoco imaginar, contudo, que um documento só nos informa aquilo que expressamente esclareceu sobre determinado aspecto de uma época. Penetrar nos processos inquisitoriais referentes às terras brasileiras, para usar um exemplo estranho ao texto, pode ser uma forma valiosa de compreender, não sem certa cautela, as formas de viver ou de pensar da população luso-brasileira do período colonial. O ofício do historiador passa, antes de tudo, pela necessidade incontestável de estabelecer indagações e problemáticas que transcendam as barreiras temáticas de cada documento. Registros do passado não falam por si sós. Não nos deixam senão marcas de uma época ou relatos de natureza diversa que se dedicavam a contemplar assuntos específicos de um presente que nos é distante. O historiador está no centro de um processo que está longe de ser passivo, encontra-se irremediavelmente preso a uma necessidade de reconstituir o passado perdido por meio de uma série de interrogatórios, muito embora poucos se deixem conduzir por itinerários previamente traçados.

A ênfase na questão da interdisciplinaridade e o diálogo com as chamadas ciências "auxiliares" da história constituem, desde o início da revista, um aspecto relevante dos embates pioneiros da escola dos Annales, o qual será novamente reiterado por Fernand Braudel no texto que adiante veremos. Ora, Bloch atenta para o fato de não existir uma especialização de tipos documentais que corresponda a um único tipo de problema. "Que historiador das religiões se limita a compulsar tratados de teologia ou compilações de hinos?". Ele bem sabe que as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes de santuários dizem mais do que muitos escritos. Cabe ao ofício do historiador, assim, saber distinguir as técnicas eruditas adequadas a cada tipo de testemunho. Entretanto, torna-se quase impossível ou, pelo menos, fruto de práticas longas e incessantes o domínio de todas as técnicas de que se vale o seu ofício. Nesse sentido, Bloch aponta o único caminho a ser trilhado: "Não há, então, outro remédio senão substituir a multiplicidade das competências reunidas num mesmo homem por uma aliança das técnicas praticadas por eruditos diferentes, não obstante tenderem todas elas para a elucidação de um único tema". A aceitação de um trabalho em equipe, assim, seria a via futura de definição dos novos caminhos da ciência histórica, cujos combates ainda longe estariam de amainar-se.

Mas esses testemunhos de que tanto falamos estão longe de surgir magicamente em bibliotecas ou museus que visitamos. O problema da transmissão dos documentos, sua presença ou ausência em determinado arquivo, sua preservação ou destruição em determinado incêndio ou catástrofe, ou ainda a ignorância da negligência ou a "paixão pelo segredo" das sociedades que os organizam não são elementos menores para o ofício daqueles que perscrutam o passado: "aquilo que se encontra afinal em jogo não é nem mais nem menos do que a passagem da memória das coisas através das gerações". Começamos aqui a atingir aspectos fundamentais do processo de reconstrução do passado, situando o papel dos registros escritos na conjuntura dos setores políticos que deles se serviam e os seus particulares significados como elementos dotados de intencionalidade. Usaremos, para tanto, os conceitos utilizados por Jacques Le Goff em direção, novamente, a uma concepção de universalidade dos registros históricos.

Os materiais de memória coletiva que se aplicam à ciência histórica, segundo Le Goff, assumem duas formas principais: "os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador". Os monumentos, que eram largamente evitados pelos historiadores do século XIX, contaminados pela escola positivista que viu triunfarem os documentos escritos como objetos únicos de sua análise histórica, comumente opunham-se a estes por serem elementos de perpetuação voluntária ou involuntária das sociedades humanas. Constituem-se geralmente de materiais escultóricos ou arquitetônicos, de caráter cívico, interpretativo ou comemorativo, muitas vezes legados por poderes políticos que desejam evocar sua memória ou perpetuar ordens vigentes. Ora, vimos que o século XX assistiu a uma verdadeira "revolução documental", que permitiu ao historiador adotar uma enorme quantidade de registros não escritos em suas pesquisas (o problema maior é dizer o que representam esses monumentos). Marc Bloch já havia nos mostrado como o problema da transmissão dos testemunhos está intimamente ligado à função do historiador, pois depende de "causas humanas" que estão longe de se restringir ao trabalho de técnicos e especialistas. Segundo Le Goff cabe, porém, ir mais longe. Descobrir como esses documentos ligam-se ao processo de edificação de um sistema político, de justificação de uma ideologia imperial, de ratificação de uma certa ordem de interesses de uma elite dirigente, enfim; trata-se de descobrir suas funções como elementos dotados de intencionalidade. Paul Zumthor quase identificou escrito e monumento: "O escrito, o texto é mais frequentemente monumento do que documento". Não existe documento algum que seja objetivo, inócuo, primário, mas é sim um produto da sociedade que o fabricou, resultado "consciente ou inconsciente da história, da época, das sociedades que o produziram", e também das épocas sucessivas em que passou esquecido ou que continuou sendo manipulado, ainda que sob o silêncio. A concepção de documento enquanto monumento, segundo o autor, permite ao historiador não se desviar do seu dever principal: a crítica do documento enquanto resultado da sociedade e da época que o produziu; por outro lado, tal análise não se faz simplesmente com o auxílio de uma única crítica histórica, mas se o próprio monumento é "testemunho de um poder polivalente" (de uma certa perspectiva econômica, social, jurídica, política, cultural, espiritual...), existem múltiplas formas de abordá-lo utilizando-se de diversas ciências "auxiliares" que possibilitem sua melhor compreensão na ambição de construir uma história dita "total".

Esse alargamento da visão de documento histórico, contudo, seria só uma etapa inicial da verdadeira "revolução documental" que se produz a partir dos anos 60. Trata-se de uma revolução, ao mesmo tempo, qualitativa e quantitativa. Além de termos uma história que passou a se preocupar com as massas da sociedade e os vínculos de continuidade que ela produz (inaugurando a era da documentação de massa), teremos, doravante, uma idade pré-estatística e uma idade quantitativa (a revolução tecnológica, do computador, privilegiaria o dado, que leva à série e a uma história descontínua). A segunda geração dos Annales, com efeito, já antecipa em alguns aspectos esta história quantitativa e a utilização de recursos estatísticos no estudo dos conhecimentos demográficos e econômicos; diz-nos Braudel: "uma curva de preços, um aumento demográfico, o movimento dos salários, as variações da taxa de juros, o estudo (mais sonhado que realizado) da produção, uma análise severa da circulação reclamam medidas muito mais largas". Nascida da priorização de uma história econômica e social, a análise contínua de séries e dados numéricos permite uma leitura não anedótica da vida quotidiana. A pluralização de fontes históricas serve também para tematizar um dos principais pontos salientados por Fernand Braudel, para o qual existem três tipos de tempos comumente utilizados na observação histórica: o tempo curto, tempo fugaz dos acontecimentos e dos fatos noticiados pela imprensa, "a mais caprichosa, a mais enganadora das durações"; o tempo de média duração, das oscilações cíclicas, as quais deveriam envolver-se com parâmetros econômicos ou sociais mais amplos; enfim, o tempo de longa duração, das estruturas e permanências que "o tempo usa mal e veicula demoradamente". Este último é o tempo por excelência dos fenômenos culturais que se prolongam por séculos ou milênios, das formas de relação com a natureza, da perpetuação de certos quadros geográficos etc. Trata-se, novamente, da reafirmação (enfática) da importância do tempo longo e da ciência histórica como campo do conhecimento que ainda teria muito a nos mostrar e, como ciência, a evoluir.

O sentido maior da pluralização dos tempos parece conduzir-nos à valorização das estruturas e da longa duração como tempo histórico a ser privilegiado pelo historiador, em contraposição ao tempo curto dos acontecimentos. Os homens são meros participantes de um processo que fazem ativamente, mas sobre o qual nada significam individualmente. A longa duração também serve de pretexto ao autor para situar uma linguagem comum que deveria abrir a história para o diálogo interdisciplinar, estabelecendo um eixo comum de pesquisa a todas as ciências sociais. Eis o objetivo explícito do autor: reafirmar a importância do tempo longo como tempo do historiador, estabelecê-lo como objeto comum de todas as ciências humanas a fim de restaurar o diálogo entre as disciplinas (as quais haviam se fechado em campos especializados do conhecimento nesta segunda geração), mas que também objetiva garantir um lugar privilegiado para sua disciplina perante essa empreitada intelectual. A intenção implícita do autor é mais difícil de ser apontada, mesmo porque se manifesta de forma invertida, mas relaciona-se à necessidade do historiador francês de enfrentar a onda estruturalista expressa com fortes tendências anti-historicistas que ameaçava a própria identidade específica da história (cujo maior expoente foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss).

O universo da história nova, em verdade, não se definiu ainda hoje. Como o próprio nome indica, seu verdadeiro sentido indica uma evolução. Passamos de uma história política a uma história que valorizava campos pouco explorados, do social e do econômico. Em função deles adotamos novos parâmetros qualitativos e quantitativos, novas aspirações de uma história que fosse total e mais inclinada às massas que comumente ignoramos. A própria trajetória de suas conquistas, seus avanços e retrocessos, como pouco vimos, não indica qualquer padrão inerte. Não se trata de uma história alienada ou desinteressada, mas que procurou adequar-se a padrões científicos e metodológicos mais amplos. Não justifico, aqui, qualquer inclinação ao perfeccionismo dos universos dessa nova história, nem mesmo me adentrei nas crises e retrocessos pelos quais tenha passado, mas tão somente saliento o salto inovador que representou para sua época. Afinal, como escreveu o próprio Le Goff, "... nunca a pesquisa histórica ? à primeira vista um pouco anárquica e um pouco dispersa ? esteve tão viva quanto hoje. Para mim, é o que conta. Por outro lado, a demanda intelectual e social de história também me parece crescente. Os historiadores não podem esquivar-se dela. A nova história deve, mais do que nunca, justificar seu nome e, sem estardalhaço, com outros e às vezes contra eles, ir em frente" (LE GOFF, A História Nova, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 12).


*A história nova.























Autor: Rodrigo Marzano Munari


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