ENTRE A ÉTICA E A RAZÃO: A PERPETUAÇÃO "CONSISTORIANA" A PARTIR DO DISCURSO UNIVERSALISTA*



ENTRE A ÉTICA E A RAZÃO: A PERPETUAÇÃO "CONSISTORIANA" A PARTIR DO DISCURSO UNIVERSALISTA*

Vitor Costa Haidar**


SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Inquisição Católica x Consistório Calvinista; 3 A ética no discurso universal contemporâneo; Conclusão; Referências.

RESUMO

Discussão acerca dos ideais adotados pela igreja protestante. O presente artigo visa a tecer, ainda que brevemente, comentários sobre a formação do consistório calvinista, que contribuiu para a perpetuação do discurso universalista no século XXI. Seu conceito, sua origem, suas características, analisando através do pensamento de Foucault, como a linguagem pode influenciar, na forma de exortação sobre o indivíduo.


PALAVRAS-CHAVE: Ética. Fé. Inquisição. Perpetuação. Religião.


1 INTRODUÇÃO
O presente artigo entre a ética e a razão: a perpetuação "consistoriana" a partir do discurso universalista tem como objetivo compreender o discurso consistoriano, a partir das vertentes do mesmo. Um discurso que foi elaborado a partir de um movimento reformista conduzido por Calvino no século XVI, época em que, a Igreja Católica estava em decadência, pois as suas atitudes estavam em total contradição com seus princípios primordiais.
Durante a Idade Média a Igreja Católica se tornou muito mais poderosa, interferindo nas decisões políticas e juntando altas somas em dinheiro e terras apoiada pelo sistema feudalista. Desta forma, ela se distanciava de seus ensinamentos (como pobreza, simplicidade, sofrimento). Outros fatores que contribuíram para a ocorrência das Reformas foi o fato de que a Igreja condenava abertamente a acumulação de capitais (embora ela mesma o fizesse). No século XVI, o catolicismo era uma religião de pompa, luxo e ociosidade. Logo, a burguesia ascendente necessitava de uma religião que a redimisse dos pecados da acumulação de dinheiro.
A doutrina Protestante, no entanto seguia a risca os anseios da classe burguesa, pois esta necessitava de uma nova religião que pregasse o acúmulo de riqueza como condição social para a salvação. E por isso era seguida pela maioria dos burgueses hibridizados às atividades lucrativas, tornando-se parte integrante do movimento reformista, liderado por Calvino.
Assim, o nosso trabalho terá como perspectiva prática a observação da linguagem de expoentes da Igreja Universal, que tem como base esses movimentos protestantes do século XVI. Relacionando-os sobre uma perspectiva foucaultiana, o discurso universalista é vendido para uma sociedade cega, incapaz de elaborar seus próprios conceitos e que, por isso mesmo, parece ser merecedora desse discurso salvacionista. Portanto, nesse sentido esse discurso é considerado ético?
2 INQUISIÇÃO CATÓLICA X CONSISTÓRIO CALVINISTA
Durante toda história humana, existiram atos criminosos cometidos pelas religiões em nome de um Deus ou um salvador, ambos elaborados por doutrinas maniqueístas e comerciais. O pioneirismo se deu no século XII, durante o Concílio de Verona (1183), em que, a Igreja Católica legitima o seu poder através da Inquisição. Esse movimento atinge o seu ápice no século XV, originando um massacre que se espalha por vários países, assassinando milhares de vozes e mentes pensantes.
Porém, no decorrer do período essas atitudes fizeram com que a Igreja perdesse seu senso de direção, envolvendo-se cada vez mais em questões meramente seculares, movidos pelo poder e riquezas materiais, levando o seu discurso de salvação a perder a sua eficácia. A partir dessas ações tomadas pela igreja, começaram a surgir movimentos contra essas posturas impostas, porém com ideologias semelhantes.
O século XVI encontrava-se num momento conturbado da história, marcado como um período de grave crise religiosa. O povo, de modo geral, não encontrava satisfação e realização nos princípios católicos. Reinava um vazio espiritual sem precedentes na história do cristianismo. Visto que, a igreja não estava atendendo às demandas espirituais do povo. Pairava, no coração dos fieis, uma total insegurança quanto à salvação. Assim, como conseqüência, a fé ensinada pela Igreja não supria tal carência.
Dentre as principais discórdias apresentadas pela Igreja Católica, pode-se mencionar o papel da Igreja no acúmulo de riqueza. Ora, na ideologia católica, a única forma de riqueza era a terra; o dinheiro, o comércio e as atividades bancárias eram práticas pecaminosas; trabalhar pela obtenção do lucro, que é a essência do capital, era pecado. Como condenar tal ato, e por ??baixo dos panos?? conseguir erguer todo o seu poder econômico? Como considerar moralmente ético tais atitudes vindas de uma instituição que pregava por valores justos praticando ações condenáveis?
Eis que aqui surge a burguesia em ascensão necessitando de uma nova religião para legitimar o seu "status" social. A Reforma Protestante foi o movimento que conseguiu fazer frente aos ideais católicos, Calvino ofereceu uma doutrina adequada à burguesia capitalista, pois dizia que o homem provava sua fé e demonstrava sua predestinação através do sucesso material, do enriquecimento, satisfazendo plenamente os anseios desta nova classe, pois pregava o acúmulo de capital como forma de obtenção do paraíso celestial. Assim, grande parte da burguesia, ligada às atividades lucrativas, aderiu ao movimento reformista. A nova forma de salvação passa a ser vista na figura do homem bom, trabalhador e conquistador de riqueza.
Se Deus vós aponta um meio pelo qual legalmente obtiverdes mais do que por outro (sem perigo para vossa alma ou para a de outro), e se o recusardes e escolherdes um caminho menos lucrativo, então estareis recusando um dos fins de vossa vocação, e recusareis a ser o servo do Deus, aceitando suas dádivas e usando-as para Ele, quando Ele assim o quis. Deveis trabalhar para serdes ricos para Deus, e, evidentemente, não para a carne ou para o pecado.
Para pensar em religião no século XXI, abordando os pressupostos até então apresentados, percebe-se uma mudança de paradigma por parte das instituições religiosas. Como trabalhar o discurso cristão em um espaço de saber, em que, somente o campo simbólico, não consegue mais atingir os mesmos resultados de outrora? Percebe-se que a vestimenta do clero católico, e sua simbologia, não são suficientes para alcançar novos adeptos. O protestantismo ao contrário consegue recrutar essa nova geração de fiéis, tendo como fonte de elaboração o saber, o capital intelectual. Em outras palavras, consegue através do discurso elaborar ensinamentos salvacionistas que são vendidos para uma sociedade cega, incapaz de elaborar seus próprios conceitos.
3 A DESCONSTRUÇÃO ÉTICA NO DISCURSO UNIVERSAL CONTEMPORÂNEO
Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Eis um velho ditado que pode servir de substrato para a desconstrução ética universalista. Como um discurso que foi elaborado a partir do movimento reformista, pode seguir os mesmos ideais que a priori combatia? A não ser que uma representava o desejo dos católicos e a outra dos protestantes, não se percebe outra diferença.
A ética cristã medieval parte de um conjunto de verdades reveladas a respeito de Deus, das relações do homem com o seu criador e do modo de vida prático que o homem deve seguir para obter a salvação no outro mundo.
O homem, como criatura de Deus, tem seu fim último em Deus, que é o seu bem mais alto e o seu valor supremo. Deus exige a sua obediência e a sujeição a seus mandamentos, que neste mundo humano terreno têm caráter de imperativos supremos.
Analisando a ética moderna e contemporânea (século XVI até século XXI), percebe-se que foi fruto de uma série de conflitos. Na ordem espiritual a religião deixa de ser a forma ideológica dominante e a Igreja Católica perde a sua função de guia. Verificam-se então os movimentos de reforma, que destroem a unidade cristã medieval. Na nova sociedade, consolida-se um processo de separação daquilo que a Idade Média unira ? o homem de Deus. "O homem adquire um valor pessoal, não só como ser espiritual, mas também como ser corpóreo, sensível, e não só como ser dotado de razão, mas também de vontade. Sua natureza não somente se revela na contemplação, mas também na ação" .
O conhecimento é o ponto essencial para estudar o poder da palavra, pois é através de sua apropriação e manipulação que é possível o controle exercido de alguns indivíduos sobre outros. Foucault se baseia na história do pensamento para demonstrar a maneira pela qual o poder se instala e se modifica com o passar do tempo. Coloca o cristianismo, com seus preceitos de salvação individual através do sacrifício pessoal e da confissão dos fiéis, como um importante meio de se conhecer a alma, a consciência e os mais íntimos segredos do indivíduo para, em seguida, tomar sua direção.
Aqui entra o papel da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), seguindo essa lógica foucaultiana. Utilizando-se de verdadeiros mestres de oratória para conseguir formar seguidores. O discurso é vendido para uma classe desfavorecida de capital intelectual que consegue ser facilmente manipulada como "marionetes". Percebe-se nesse palco que não há uma qualidade moral. Pois assim determina Vásquez ao citar:
Moral é um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livres e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa ou impessoal.
A partir desse discurso, pode-se fazer referência ao dízimo cobrado pela IURD - dez por cento de tudo que o fiel tiver conseguido durante a semana. O segredo da universal é tratar dos males terrenos oferecendo soluções terrenas, dinheiro para quem precisa de dinheiro, família para quem precisa de família. E principalmente em atribuir os problemas das pessoas a fatores externos, eximindo-as de qualquer culpa. Os fiéis da universal são pobres coitados, pessoas que precisam de ajuda, mas que não admitem ter cometido erro algum a não ser o de ter dado abertura a encostos pela falta de fé. O público é dominado, assiste a um espetáculo regido pelos pastores, a um show convincente, com sessões de exorcismo semanais e testemunhos de fiéis bem sucedidos.
Quase trinta anos depois do primeiro culto, o fundador da Universal (Edir Macedo) é dono de dois jornais com tiragem superior a um milhão de exemplares, trinta rádios e uma rede nacional de TV (Record). Esse espírito capitalista tomou lugar na IURD, contribuindo para a formação do vasto império presente na contemporaneidade.
Percebe-se assim, que enquanto houver a ignorância e o comodismo haverá também "líderes" oportunistas religiosos, mercadores do templo, escravizando e manipulando mentes, disseminando doutrinas obscuras, extorquindo dinheiro, pregando uma falsa verdade, um antigo testamento, um deus dogmático e distante, manipulado pelo profano. Um Deus produzido por mercadores, que, como num supermercado, comercializa suas bênçãos.
CONCLUSÃO
Através desse artigo a priori tentou-se evidenciar as justificativas que contribuíram para Reforma Protestante, explanando o período religioso em que ocorre o movimento e posteriormente a mudança de paradigma - católico para o protestante, que demonstrou na verdade apenas uma perpetuação dos ideais combatidos.

Depois se passa pela a demonstração da cruel lógica de mercado presente na IURD, que cresce cada vez mais, pois usa a linguagem do povo. Utilizando-se de uma empreitada bem organizada, os cultos são segmentados para garantir o fluxo de dinheiro diário de cada público, jovens, empresários, solitários, desesperados e famílias. O segredo do sucesso da Igreja é oferecer pronto atendimento às necessidades do povo, ao invés de fazê-lo trilhar por caminhos tortuosos rumo a uma salvação espiritual abstrata e distante da realidade que envolve os fiéis.

Portanto, o que se percebe é que a inquisição não acabou. Ela continua por aí, com uma nova denominação, traduzindo-se na religião transformada em religiosidade, ou seja, o comércio de Deus.





















REFERÊNCIAS


FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 1985

LOPES, Adriana Dias. A fé que move os jovens. Veja, São Paulo, n. 2054, p. 70-73, abr. 2008.

PETRY, André. Como a fé resiste à descrença. Veja, São Paulo, n. 2040, p. 70-77, dez 2007.

VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Ed. Civilização Brasileira Rio de Janeiro. 1993

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Ed. Pioneira. São Paulo. 1996

Autor: Vitor Costa Haidar


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