A IRMANDADE DO MOINHO



DE DO MOINHO

Depois da morte da esposa num acidente de carro, Miguel passou a não ter mais alegria de viver. Para ele, a vida não tinha mais encanto. Afastou-se dos amigos, desgostou-se do trabalho. Decidiu deixar o emprego e seguir um novo rumo na vida. Resolveu sair da capital e viver no interior. Sua intenção era comprar um sítio onde pudesse viver isolado da civilização.

Consultando anúncios de imóveis num jornal, encontrou dois anúncios de sítio a venda. Anotou os endereços num papel, pegou o carro e partiu ao amanhecer para o interior do estado. Mas, no trajeto perdeu-se numa encruzilhada, quando um forte nevoeiro desceu sobre a região. Parou o carro na beira da rodovia, deixou os faróis acesos e esperou que o nevoeiro se dissipasse. Mas, o tempo foi passando e o tempo não melhorava. Tentou ligar o carro novamente, mas o motor permaneceu inerte. Apertou o acelerador diversas vezes, sem resultado. O tanque de gasolina estava quase cheio. Achando que talvez fosse algo simples de consertar, ele resolveu dar uma olhada no motor. Abriu a porta e saiu do carro no exato momento em que um veiculo surgiu em alta velocidade e quase o atropelou. Miguel jogou-se para trás, mas alguma coisa bateu em sua cabeça. Ele ficou tonto, as vistas nublaram, as pernas ficaram bambas. Sentiu-se cair e rolar pelo chão. Quando finalmente parou de cair, permaneceu deitado, procurando regularizar a respiração e os pensamentos. Viu-se deitado sobre a relva úmida. Ergueu-se, ainda com a cabeça latejando. O nevoeiro era espesso, não conseguiu ver o carro, tampouco a estrada, apenas terreno relvado e arbustos a uma distancia de cinco passos. Ficou parado, tentando se orientar. Depois de algum tempo resolveu se mover. Não podia simplesmente ficar ali, a espera que o nevoeiro fosse embora. A cabeça ainda lhe doía e o frio da manhã e a umidade, começava a enregelá-lo. Resolveu andar numa direção que julgava encontrar-se a estrada e o carro. Caminhou por algum tempo por um terreno relvado, entre arbustos, mudando de direção sem sucesso. Começou a suar frio, sentiu uma vertigem e caiu, perdendo os sentidos. Quando recuperou a consciência, viu um rosto jovem, uma imagem nublada que aos poucos foi adquirindo consistência. A menina olhava-o com curiosidade. Descobriu que estava deitado numa poltrona, numa sala decorada com moveis e objetos antigos. Parecia uma residência do século dezenove. A jovem sentada numa cadeira, ao lado dele, trajava um vestido simples de algodão, usava os cabelos claros presos com uma fita azul. Aparentava ter uns 14 ou 15 anos.

- Sente-se melhor? Perguntou ela num tom de voz suave.

- Sim. Onde estou?

- Na estância Malta. Sou Luana Malta e você?

- Miguel, Miguel Oliveira.

- Espere, vou chamar minha mãe. Luana saiu.

Miguel sentou-se, levando a mão à cabeça e percebeu que estava com bandagem. Logo depois a jovem retornou em companhia de uma mulher simpática, que Miguel julgou ter uma idade entre 35 e 40 anos. Usava uma blusa branca, calça de brim e calçava botina.

- Sou Laura Malta. Está melhor? Perguntou ela. - O que lhe aconteceu? Nós o encontramos desacordado no campo...

- Meu carro estragou na estrada. Havia muito nevoeiro e quando saí para olhar o motor, um carro passou muito próximo em alta velocidade. Alguma coisa bateu em minha cabeça, fiquei tonto e cai por um barranco. Depois, ainda tonto tentei voltar para a estrada, mas não consegui encontrar o caminho de volta. Fui andando a esmo e acabei desmaiando.

- Você estava muito longe da estrada.

Disse Luana.

- Consegue andar? Perguntou Laura. - Deve estar com fome, já passa do meio dia. Venha, vamos almoçar.

Miguel não teve como negar, pois estava faminto. No almoço foi servido arroz, feijão, carne de galinha, saladas e suco de laranja.

- Para onde estava indo? Perguntou Laura.

- Pretendia comprar um sitio. Moro na capital e resolvi procurar um lugar sossegado para viver. Não tenho família, minha mulher morreu há dois anos.

Luana e a filha trocaram um olhar.

- Bem, o Vicente trabalha conosco e está precisando de um ajudante. Há muito trabalho aqui na estância. Se quiser trabalhar em troca de casa e comida, pode ficar conosco. Só não posso lhe pagar por que não temos dinheiro. Podemos firmar um contrato por o tempo que você quiser. Responsabilidade em troca de benefícios. O que acha? Pode sair e olhar o lugar para ver se lhe agrada.

- Há muito tempo eu já estava pensando em viver no campo. Mas, a senhora esta me oferecendo trabalho e nem sabe quem sou realmente. E se eu for um mau elemento?

Laura sorriu.

- Tenho certeza de que não.

- Pois é, na realidade sou policial, aliás, era por que pedi demissão do cargo já faz dois meses. É que eu estava muito abalado pela morte de minha esposa e não conseguia me concentrar no trabalho.

- Ah! Lamento pelo senhor! Exclamou Laura.

- É por isso que decidi sair da cidade e mudar de vida.

- Bom, a oferta continua de pé.

- Então, se eu me agradar do lugar posso voltar amanhã?

- É claro! Enquanto isso nós vamos preparar um quarto para o senhor.

Depois de almoçar, Miguel partiu numa charrete em companhia de Vicente, um homem robusto, de tez escura, cabelos lisos e grisalhos. Miguel despediu-se das mulheres, agradeceu pela acolhida e subiu na charrete, acomodando-se na boleia, ao lado de Vicente que chicoteou o animal fazendo-o andar. Seguiram por uma estradinha que atravessava o vale. Além da casa grande, a estância tinha um galpão, celeiro, cavalariça, curral. O lugar possuía muito verde e ar puro.

- Já trabalhou na roça? Perguntou Vicente.

- Nunca.

- Vai ter que se acostumar a levantar cedo, dormir cedo. Os primeiros dias são difíceis, o corpo fica dolorido, as mãos cheias de bolha. Após uma pausa, Vicente continuou: - A dona Laura me disse que o senhor foi policial, mora na capital e que pretende viver no campo. É uma decisão corajosa mudar assim de repente. Mas...

Miguel percebeu que Vicente tinha algo importante para dizer, mas estava indeciso.

- Fale, o que foi?

- Bem, é que nos vivemos numa comunidade que é dirigida por um conselho de moradores que decidem se uma pessoa pode ou não se instalar no vale.

- Essas terras são deles?

- Pertence à comunidade. Cada um tem sua propriedade e todos são donos do vale. Mas, quem manda mesmo é o conselho. Bem, de qualquer maneira o senhor poderá ficar conosco por algum tempo e se aceitar as regras, poderá arranjar uma esposa e se fixar definitivamente.

- Quais são as regras? Honestidade, fidelidade, amor ao próximo?

Vicente sorriu, sacudindo a cabeça.

- É quase isso. O senhor saberá com o tempo.

- Vamos combinar uma coisa? Se vamos trabalhar juntos, não precisamos ser tão formais assim. Chame-me de Miguel.

- Está certo.

Após uma pausa, Miguel disse:

- Sei que vou gostar daqui, mas não sei se dona Laura não vai se arrepender depois.

- Acho que não.

- Como sabe?

- É que você é parecido com o marido dela.

- Mas, e o marido?

- Sumiu há cinco anos foi poucos meses antes de eu chegar aqui.

- Sumiu como?

- Foi embora e nunca mais voltou. Ele e a mulher brigavam muito e eles decidiram se separar.

- Bom, então ele não sumiu, foi embora!

- É, é isso.

A conversa esmoreceu. O cavalo continuou trotando pela estradinha poeirenta. Logo depois Vicente puxou as rédeas do animal, fazendo-o estacar. À frente havia um aglomerado de pedras em ambos os lados da estrada, que Miguel julgou ser o portal de entrada do vale.

- Aqui vou ter que deixá-lo. Disse Vicente. - A rodovia fica logo depois da curva. Quando voltar não vai ser difícil encontrar a entrada.

- Como vocês chamam esse lugar?

- Novo Horizonte.

Miguel despediu-se, desceu do veiculo e seguiu caminhando pela estrada. Quando chegou à rodovia viu adiante, o carro sendo guinchado pela policia rodoviária. Foi obrigado a dar muitas explicações e no final, foi liberado. Um mecânico consertou o carro e ele retornou para casa. Na manhã seguinte arrumou suas coisas em duas malas, entregou as chaves para o locatário e partiu para Novo Horizonte. Chegando à estância Malta, estacionou o carro em frente a casa. Luana correu para recebê-lo. Laura surgiu logo depois.

- Pelo que vejo, aceitou a oferta! Trouxe suas coisas?

- Estão no carro.

- Venha, vou mostrar onde o senhor vai ficar.

Pegando as malas, Miguel seguiu as duas mulheres para os fundos da casa. Ali havia uma construção meia-água, de alvenaria.

- É a casa de Vicente. Explicou Laura, abrindo a porta. Ele fez questão que você ficasse com o outro quarto. Você pode ficar aqui, a não ser que queira dormir no porão da casa.

- Acho melhor não. Avisou Luana. - Lá tem ratos!

- Fico por aqui mesmo. Respondeu Miguel.

- Então nos vemos depois. Disse Laura. Ela fez menção de se retirar, mas parou para dizer:

- Ah! Na nossa comunidade, ninguém tem carro. Não é que seja proibido, é tradição usar tração animal.

- Não tem problema. Vamos seguir a tradição!

Laura se retirou com a filha. Miguel estava colocando suas roupas no roupeiro, quando Vicente apareceu.

- Seja bem-vindo!

- Espero que não se incomode que eu fique aqui. Disse Miguel.

- Claro que não. Eu dei a sugestão. Esse quarto estava sobrando, mesmo.

- Você precisa me orientar sobre os usos e costumes da casa, Vicente.

- Laura é quem faz as nossas refeições, e lava nossas roupas. Almoçamos com elas na cozinha e é só. Apesar de Laura me considerar como da família, nunca passei da cozinha. Elas moram lá e eu aqui. A partir desse momento, essa também é a sua casa.

- É claro! Eu sei o que você quer dizer Vicente, que devo seguir o seu exemplo. Não tenha dúvidas quanto a minha honestidade, honra e respeito. Sou um cavalheiro! Não se esqueça que já fui policial. Mais alguma coisa?

- Vivemos numa comunidade que tem suas leis, costumes e regras.

Toda transgressão das leis, disputas, brigas, é julgado e decidido por um conselho de quatro rancheiros. O presidente se chama Jonas Barreto e os outros são, Gaspar Calvino, Vasco Dias e Diogo Alves. Nas terras de Jonas tem um galpão onde são realizadas festas, casamentos, bailes e até peças de teatro.

- Muita dança, comida e bebida?

- Não! Na nossa comunidade é proibida bebida alcoólica.

- Ninguém bebe? Pra mim tanto faz, eu não bebo!

- Não temos energia elétrica, televisão, telefone, rádio, jornal. Vivemos isolados do mundo. Em compensação temos uma natureza exuberante, uma terra que dá de tudo e uma vida sem violência. Acha que pode suportar viver assim?

Miguel acabou de ajeitar as roupas e estava retirando os objetos da outra mala.

- Mas, é claro! Então, vou ter que me desfazer disso. Disse ele apontando para a máquina fotográfica, o rádio e uma calculadora digital.

- Para nós são coisas sem valor. Respondeu Vicente.

- E dinheiro? Também não tem valor?

- Não. Produzimos tudo que necessitamos e nosso comércio se baseia na troca de mercadorias. Reciclamos tudo que for possível.

- Estão vivendo numa Idade Media!

- Pode-se dizer que sim.

Miguel começou a trabalhar naquela mesma tarde, ajudando Vicente nas lidas da estância. Ao entardecer eles encerraram os trabalhos. Depois de tomar banho numa bacia de latão, numa peça nos fundos, Miguel foi trocar de roupa. Vicente estava sem camisa e colocava no pescoço um colar feito com cordão de linho e uma pequena pedra de jade, lisa.

- Um amuleto? Perguntou Miguel.

- Ganhei de presente. Alguém muito especial. Para dar sorte. Vicente acabou de se vestir e saiu. Miguel trocou de roupa e foi sentar-se com o companheiro num banco em frente ao alojamento.

- Estou moído! Exclamou ele, sentando-se no banco de madeira.

- Você se acostuma. Respondeu Vicente limpando as unhas com um canivete.

- O que você fazia antes de vir para cá? Perguntou Miguel.

- Trabalhava numa fazenda em Goiás. Os negócios não iam bem e o patrão resolveu despedir alguns peões e eu fui um deles. Resolvi tentar a vida em outro lugar. Peguei a estrada e depois de passar por muitas estâncias e fazendas, cheguei aqui. O Manoel estava precisando de ajudante e aqui fiquei.

- Manoel era o marido de Laura?

- Sim.

Luana surgiu na varanda da casa chamando-os para jantar. Anoitecia e os lampiões foram acesos. Todos se sentaram à mesa e como era de costume, Laura fez uma prece. Serviram-se e começaram a comer.

- Está gostando do trabalho? Perguntou Laura.

- É claro! Respondeu Miguel.

- Não o force muito no serviço até o senhor Miguel se acostumar. Recomendou Laura a Vicente.

- É o que estou fazendo. Respondeu Vicente e completou de bom humor: - No início serviço leve e depois, fico com o leve e dou o pesado pra ele. Luana reclamou:

- Coitado dele, Vicente!

- Estou brincando.

- Não precisa me chamar de senhor, dona Laura. Assim me sinto mais velho do que sou.

- Está bem e não me chame de senhora, muito menos dona.

Sinta-se como se esta casa também é sua e nós a sua família. Nós nos tratamos com respeito, afeto e responsabilidade. Foi bom você ter aparecido por que temos muito trabalho e Vicente estava mesmo precisando de um ajudante.

Após uma pausa, Laura voltou a falar:

- Vai haver uma festa de casamento no mês que vem. A filha de um rancheiro vai casar e toda a comunidade foi convidada para a festa. Você vai conosco e verá como essa gente é alegre e amiga.

- Eu preciso de um vestido novo, mamãe!

- A dona Regina faz vestidos lindos e nos vamos lá escolher um. Ainda tem tempo.

Luana virou-se para Miguel.

- Miguel, você dança com mamãe?

- Vai haver dança? Oba! Já estou gostando dessa festa! Disse Miguel em tom humorado. Laura deu um beliscão no braço da filha. Luana não ligou.

- Você poderia dançar com mamãe, Miguel? Ela é uma ótima dançarina e gosta muito de dançar! Disse ela, sorrindo olhando a mãe de lado.

- É claro! Se ela não tiver medo que eu lhe pise os pés!...

Laura não disse nada e concentrou-se em comer, evitando o olhar de Miguel. Acabando de comer Miguel e Vicente se despediram e se retiraram. Entrando no alojamento, Vicente acendeu o lampião, deixando-o sobre a mesa. Miguel puxou uma cadeira e sentou-se.

- A Laura é uma mulher de fibra! Forte e decidida!

- Está gostando da patroa? Perguntou Vicente em tom amistoso.

- Sim, mas não pense que pretendo cortejá-la. Sou um cavalheiro, Vicente.

- Ótimo!

- E você, não tem namorada?

- Não.

- Não vai a cidade nos fins de semana namorar?

- Você quer dizer, deitar com as quengas? Não.

- Você é jovem ainda Vicente, que idade tem? Posso saber?

- Quarenta e oito anos.

- Eu tenho quarenta. E aqui no vale, como se faz para arranjar uma mulher?

- Aqui você tem que casar primeiro. Aqui existem regras, você sabe.

Na manhã seguinte, Miguel e Vicente partiram para o campo, para consertar a cerca do pasto. Ao meio dia voltaram para casa. Quando chegaram, Laura estava na varanda conversando com dois homens. Vicente estacionou a carroça na entrada do galpão. Miguel notou que Laura parecia discutir com o homem que segurava um chapéu na mão.

- Quem são eles? Perguntou Miguel.

- Jonas Barreto e Diogo Alves. Jonas é o que tem o chapéu. Já te falei dos conselheiros?

- Sim.

Vicente saltou para o chão e foi desatrelar o cavalo. Miguel começou a retirar as ferramentas da carroça, quando ouviu Laura chamá-lo.

- Miguel! Vem aqui um momento, por favor!

Miguel subiu até a varanda e Laura fez as apresentações. Diogo Alves usava uma barba grisalha, tinha olhos azuis, inquiridores. Aparentava ter uns 50 anos, assim como o outro. Jonas Barreto possuía olhos e cabelos negros, rosto de expressão calma, compleição atlética. Cumprimentou Miguel com expressão séria, e um aperto de mão vigoroso.

- Somos dois dos conselheiros que administram o vale. Disse ele. - Laura me disse que já lhe falou do nosso modo de vida. Todos que aqui chegam e se estabelecem, devem fazer um cadastro e se comprometer a seguir nossas leis e regras. Qualquer problema que tiver deve se dirigir a nós. O conselho foi criado para manter a ordem e garantir os direitos da cada cidadão.

Jonas fez uma pausa e olhou para Laura, que assistia a conversa de braços cruzados sobre o peito. Ele colocou o chapéu na cabeça e voltou a encarar Miguel. ? Espero o senhor ainda esta semana em minha casa, para registrar os seus dados pessoais.

- Estarei lá. Garantiu Miguel. Jonas sacudiu a cabeça, se despediu ele e o companheiro e os dois pegaram seus cavalos e partiram a galope. Laura permaneceu observando-os até sumir na curva da estrada. Miguel notou que ela ficou chateada com aquela visita.

- Eu não quero lhe dar problemas, Laura...

- Não há problema algum. Jonas apenas reclamou que eu deveria tê-lo consultado antes de admitir você. Pra mim isso não faz diferença.

- Eles são os donos do vale?

Laura recostou-se no gradil de madeira. Refletiu um instante.

- Cada pessoa tem o direito de possuir um pedaço de terra, onde possa viver, plantar e manter uma pequena criação. Mas, tudo pertence à comunidade. Não usamos dinheiro. Fazemos negócio com os vizinhos com troca de mercadorias.

- Se não usam dinheiro, como fazem para pagarem os impostos ao governo? Tem o imposto territorial...

- Jonas é quem trata disso. Parece-me que os conselheiros têm aplicações em banco para pagarem impostos.

- E no caso de eleições? O voto é obrigatório!

- Nós votamos aqui mesmo, na comunidade. Eles mandam uma urna para cá. E para óbitos e nascimentos, Jonas manda alguém a cidade fazer o registro.

- E se eu mesmo quiser ir a cidade? Vou ter que pedir autorização ao conselho?

- Não, por enquanto não.

- Por que, por enquanto não?

- Ora Miguel! Você faz tantas perguntas!...

- Desculpe! Acho que a visita daqueles homens deixou você nervosa. Tenho a impressão de que eles mandam em tudo, até nos moradores do vale...

- O Jonas é que pensa que manda em mim. Ele se preocupa com todo mundo. Na realidade sua dedicação oculta um controle rígido das pessoas e isso me irrita! A minha vontade é ir embora daqui, mas se eu sair não terei nada lá fora. Sou proprietária de uma estância que não posso vender.

Laura calou-se, permanecendo pensativa. Miguel sentiu-se penalizado por ela, mas nada podia fazer. Tinha a impressão de que havia muito mais coisas a serem reveladas. Laura ergueu o rosto.

- O almoço está pronto. Chame Vicente, faz o favor...

Na manhã seguinte, Vicente levou Miguel à fazenda de Jonas, fazer o cadastro. Seguiram numa carroça por uma estrada sinuosa, para o interior do vale. Miguel deslumbrou-se com a paisagem. Passaram por campos verdes que se estendia como um manto aveludado por entre colinas de cumes escarpados e vertentes abruptas. Casas brancas destacando-se nos terrenos cultivados, bosques de araucárias, riachos e cachoeiras formavam o belo cenário. Após uma curva do caminho, surgiu um moinho construído com tábuas de madeira de cedro, com base de pedras de granito. Tinha janelas estreitas no alto, telhado de duas águas e uma maciça porta de carvalho com guarnições de ferro. Ao lado a roda permanecia parada, num riacho quase seco.

- A quem pertence? Perguntou Miguel.

- A Jonas, mas está desativado.

- Parece muito antigo!

- E é, deve ter uns duzentos anos.

Alguns quilômetros depois do moinho surgiu a casa de Jonas Barreto, um prédio robusto, com outras construções ao redor, uma capela, alojamentos, galpões, celeiro, engenho e outras edificações menores. Havia movimentos de carretas carregadas com canas, outras com fardos de trigo, peões ocupados em suas funções, mulheres com seus afazeres domésticos e algumas crianças brincando em grupos de três ou quatro. Vicente estacionou a charrete ao lado da casa e pediu para um dos serviçais avisar Jonas que eles haviam chegado.

Jonas surgiu logo depois.

- Miguel veio fazer o cadastro e eu trouxe algumas mercadorias para troca. Disse Vicente.

- Procure o capataz. Respondeu Jonas e pediu para Miguel acompanhá-lo. Passando por uma sala decorada com moveis de madeira lavrada, objetos antigos, entraram no gabinete de trabalho. Jonas convidou Miguel a sentar-se e acomodou-se numa cadeira de espaldar alto atrás da escrivaninha. Tirou um grosso livro da gaveta e colocou-o sobre a mesa, junto com um tinteiro e uma caneta modelo do século dezenove.

- O que acha de nosso modo de vida? Perguntou Jonas.

Miguel procurou dar uma resposta que não o ofendesse.

- Agradável para a saúde do corpo e espírito.

Jonas olhou-o por alguns segundos.

- Só isso?

- Eu morava na capital, uma cidade grande que tem seu lado bom e seu lado mau, onde podemos viver com conforto, acesso a saúde, a novas oportunidades de trabalho e progresso profissional. Mas tem a questão da insegurança, da violência, da poluição e outros malefícios, mais moral do que físico. Muito antes de minha esposa falecer eu já pensava em morar no campo, mudar o nosso modo de vida. Cheguei ao vale por acidente. Acho que foi o destino...

- Eu sei. Respondeu Jonas e começou a escrever. - Nome completo?

- Miguel Oliveira, quarenta anos. Miguel puxou a carteira do bolso e colocou seus documentos de identificação sobre a mesa. ? Eu era investigador da policia civil.

Jonas examinou os documentos.

- Tem alguma outra qualificação?

- Não.

Jonas fez as anotações, largou a caneta e recostou-se para trás. Falou num tom vago.

- Não sei por que Laura te ofereceu trabalho, se não tens prática nas lidas do campo...

- Estou aprendendo, não é difícil. O que importa é a dedicação, à vontade de aprender e progredir.

Jonas encarou-o, dizendo:

- Você tem uma leve semelhança com o falecido marido dela...

Miguel respondeu num tom enérgico:

- Não uso isso para tirar proveito da situação. Tenho o meu próprio código de honra e um lema; não fazer nada que possa me arrepender depois.

Jonas sorriu. Miguel considerou que, tanto podia ser um sorriso amistoso quanto de zombaria.

- A sua ficha está pronta. Qualquer problema que tiver, qualquer um, me procure que eu levarei o caso à apreciação dos outros conselheiros. Já sabe quais são nossas leis e regras?

- Sim. Vicente me contou.

- Por enquanto é isso. Caso a sua conduta infrinja as nossas leis, seremos obrigados a expulsá-lo do vale. Dentro de um ano faremos nova avaliação.

Jonas colocou as mãos sobre a mesa e ergue-se.

Chegando à varanda, Miguel despediu-se dele e dirigiu-se para o pátio, onde Vicente conversava com o capataz. Vicente apresentou-o.

- Miguel este é Edgar, filho de Jonas.

Da varanda, Jonas chamou:

- Vicente! Podemos conversar um instante?

Enquanto Vicente atendia Jonas, Miguel ficou conversando com o rapaz. Edgar tinha cabelos claros, olhos castanhos e se vestia com calça de brim, camisa de algodão listrada, jaqueta, cinto largo, botas e chapéu. Miguel calculou que ele tinha uns 30 anos, mais ou menos.

- Está gostando do vale? Perguntou Edgar.

- Sim. É um ótimo lugar para se viver.

- Não acha um pouco monótono?

- Para quem quer sossego, é ótimo.

- Aqui o conselho faz as leis. Mas, são leis antigas e os conselheiros são retrógrados. Tudo começou errado e será até o fim, se é que vai ter um fim. Edgar soltou um riso nervoso e olhou para a varanda. Voltou a encarar Miguel. -Você vai à cidade por esses dias?

- Não, acho que não. Por quê?

O rapaz meteu as mãos no bolso, olhou para o chão e esmagou uma formiga com a bota.

- Não, por nada. Bem, preciso trabalhar. Até logo!

Edgar se afastou. Miguel ficou imaginando que o rapaz queria alguma coisa da cidade, que ali no vale era proibido, e não teve coragem de pedir. Estaria infringindo a lei. O castigo deveria ser severo. Vicente despediu-se de Jonas e partiu com Miguel.

- Me diga uma coisa. Pediu Miguel. ? O conselho proíbe a ida das pessoas à cidade? Vicente respondeu com bom humor.

- Proibir, não, eles recomendam que evitem ir para não serem contaminados com o progresso.

- O que Jonas queria com você?

- Ele acabou de dizer que conforto e divertimento lascivo contamina o corpo e corrompe o espírito. Que nos devemos nos preocupar em manter a mente e o corpo sadio.

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Miguel estava se acostumando com a rotina de trabalho na estância. Acordava cedo, trabalhava o dia todo e no fim de semana saia para pescar, ou simplesmente andar a cavalo com Luana. Já se afeiçoara às duas mulheres e a Vicente, considerando-os como sua família. Sentia atração por Laura, mas procurava manter aquele sentimento trancado no peito. Além do mais, Laura demonstrava um afeto de amiga, exprimindo respeito e moderação em suas atitudes. Por algumas vezes descobriu-a olhando para ele numa atitude pensativa. Sabia que sua semelhança com o falecido marido a perturbava. Mas, ele procurava manter-se integro, autêntico. Não queria se aproveitar disso para conquistá-la. Preferia deixar que o seu futuro ficasse nas mãos do destino.

Estava ao lado do poço bebendo água de uma tina, quando Laura surgiu na porta da cozinha.

- Miguel! Onde está Vicente?

- Saiu para procurar uma rês que fugiu do cercado.

- Vamos almoçar. Já é tarde! Vicente pode demorar...

Miguel lavou-se e entrou na cozinha. Sentou-se a mesa e serviu-se de feijão, arroz, bolinho de batata, galinha assada e salada de tomates. Laura tirou um bolo do forno do fogão e colocou na janela para esfriar.

- Fiz um bolo de maçã. Luana está de aniversario hoje!...

- Verdade? Parabéns.

- Obrigada! Agradeceu a menina e uma sombra de tristeza passou pelo seu rosto.

- Me parece que você não está feliz hoje! Exclamou Miguel.

Laura sentou-se para comer.

- O que foi, filha?

- É que, me lembrei de papai.

- Ela sempre se lembra do pai nesse dia!

- Ele sempre me dava um presente, nem que fosse uma flor do campo!

Laura se inclinou e a beijou.

- Você vai ganhar um vestido novo para a festa de casamento da Daniela, querida!

- E quando vamos buscar? Eu preciso experimentá-lo, mamãe! E se ficar grande?

- Ora, a dona Regina arruma na hora!

Terminando de almoçar, Miguel dirigiu-se para o alojamento. Vicente estava no tanque, lavando-se.

- Vicente, o almoço já foi servido. Não vai almoçar? Laura guardou um prato para você.

- Não estou com fome.

Ao se aproximar, Miguel notou arranhões no braço e no rosto dele.

- O que foi isso?

- Espinhos na mata.

- Encontrou a vaca?

- Não. Quando escurecer ela volta. Vicente parecia abatido, perturbado com alguma coisa. Miguel deixou-o e entrou no quarto. Pegou junto das roupas, uma corrente de ouro com um medalhão com a imagem de Nossa Senhora. Aquela jóia pertenceu a sua esposa e ele a guardou par dar a alguém em especial. Com a jóia escondida na mão, voltou para a cozinha. Laura estava lavando a louça.

- Vicente já chegou? Perguntou ela.

- Já, mas ele disse que não está com fome. Respondeu Miguel e após uma pausa perguntou: - Laura, não se importa que eu dê um presente para Luana?

Ela enxugou as mãos no avental e voltou-se para ele.

- Presente? Não, claro que não me importo. Quer que a chame?

- Sim, faz o favor.

Laura saiu da cozinha e logo voltou com a filha.

- Mamãe disse que você quer falar comigo.

- Luana. Desculpe, não quero que me julgue mal. Não quero tomar o lugar de seu pai, que você tem na lembrança nesse dia, mas, como amigo, gostaria que aceitasse este cordão. Era de minha falecida esposa.

A menina olhou a jóia e seus olhos brilharam enquanto sorria de contentamento. Agradeceu o presente enquanto a mãe colocava a correntinha no pescoço dela. Em seguida a menina abraçou Miguel e correu para o quarto, para olhar-se no espelho. Miguel suspirou satisfeito pela boa ação. Laura encarou-o.

- Miguel, o pai de Luana não vai voltar por que ele morreu.

- Morreu? Vicente me disse que ele sumiu!

- Não, Luana não sabe, mas já se passaram cinco anos e já está na hora de dizer a verdade. Vou conversar com ela mais tarde.

Laura acabou de falar e continuou fitando Miguel. Ele sentiu-se despido, desprotegido, vulnerável. A situação era diferente agora.

Mas, achou melhor dar tempo ao tempo.

- Bem, vou indo. Até logo!

- Até logo, Miguel! E obrigada pelo presente.

Miguel saiu e foi procurar alguma coisa para fazer. Ao entardecer, tomou banho e mudou de roupa, não tinha visto Vicente a tarde toda. Ele só apareceu na hora do jantar.

Na manhã seguinte, quando Miguel acordou, Vicente já tinha saído para o campo. Mudou de roupa e saiu do alojamento. Havia uma carroça parada em frente à casa grande. Já havia amanhecido, mas os campos ainda estavam cobertos por névoa úmida. Na varanda, Laura conversava com três homens. Atraído pelo tom urgente das vozes, Miguel se aproximou. Dois homens e um rapaz desceram a escada e pararam um momento, quando Laura falou:

- Miguel! Daniela, a moça que ia se casar sumiu desde ontem! Toda a comunidade está à procura dela!

- Posso ajudar, se quiserem!...

- Precisamos de todo mundo! Respondeu o homem mais jovem.- Quanto mais gente melhor! Ela está usando um vestido claro, estampado com flores vermelhas, pequenas.

- Darei uma olhada pelos arredores. Disse Miguel. O grupo partiu na carroça, apressados. Com uma manta sobre os ombros, Laura desceu até onde estava Miguel.

- Aquele era o pai de Daniela, Hugo Santiago. O rapaz é Leonel, o noivo. O que será que aconteceu com a moça? Disseram que ela foi à casa de dona Regina e desapareceu no caminho de volta!...

- Onde fica a casa de dona Regina?

- Sabe onde fica o velho moinho? Tem uma estradinha à direita próxima do moinho. Há uma ponte sobre o riacho.

- Vou dar uma olhada por lá.

Vicente selou um cavalo e partiu a galope. Chegando próximo do moinho entrou na estrada que levava a casa da costureira. Atravessando a ponte, verificou que havia muitas marcas de cascos de cavalo na areia. A equipe de buscas já esteve ali. Em ambos os lados da estrada havia mata fechada, um bom lugar para emboscada. Se alguém seqüestrou a moça, provavelmente a teria levado para a mata, ou para o moinho, que estava abandonado. Miguel resolveu investigar no moinho. Amarrou o cavalo numa arvore e contornou o prédio pela margem do riacho. Havia um telheiro entre a casa e a roda. Passando sob o telheiro chegou aos fundos da construção. Ali havia um charco, a margem das águas escuras cobertas de folhas podres junto à base de pedra do moinho. Miguel estava para voltar, quando notou um pedaço de tecido floreado preso a um prego na base de uma das tábuas da parede, sob a janela. Apoiando um pé na ponta de uma das pedras e agarrando-se numa trave, espichou o braço e arrancou o tecido do lugar. Voltou ao terreno firme examinou-o. Era tecido novo, de algodão estampado com flores vermelhas, miúdas. Poderia ser um pedaço do vestido de Daniela. Miguel olhou para a janela e para as águas turvas. A garota poderia ter sido morta dentro do moinho e jogada pela janela. Miguel montou no alazão foi à estância onde pegou uma corda, amarrou cinco ganchos numa ponta e retornou ao moinho. Começou a sondar o fundo do charco com os ganchos em vários pontos. Depois de várias tentativas sentiu que os ganchos haviam se prendido em alguma coisa pesada. Pensou que fosse um galho submerso ou uma raiz. Puxou firme, mas devagar e a primeira coisa que surgiu foi uma pedra de granito presa a uma corda. Na outra ponta da corda surgiu o cadáver de uma mulher, preso pela cintura. Miguel puxou-o para terra firme e espantou-se com o que viu. O corpo parecia estar completamente queimado. A pele estava enrugada, escura como carvão, mas o vestido claro estampado com flores vermelhas miúdas estava intacto, apenas sujo de lodo. Se o corpo foi queimado, a roupa também deveria ter sido, a não ser que alguém o tivesse vestido depois de queimá-lo, o que não era provável. Miguel dirigiu-se para onde estava a montaria, quando ouviu um galopar de cavalos. Correu até a estrada a tempo de interceptar Jonas, Edgar e mais dois homens.

- Encontrei um corpo no charco.

- Onde? Indagou Jonas.

- Atrás do moinho.

O grupo deixou as montarias e dirigiu-se apressado, para o local.

Ficaram um momento em silencio contemplando o cadáver.

- Coitado do Leonel! Exclamou Edgar.

- Vocês têm certeza de que é Daniela? Perguntou Miguel.

- Pela roupa, sim. Respondeu Jonas. ? O que será que aconteceu?

- Um crime, com certeza. Afirmou Miguel. ? Alguém a matou e a jogou no charco amarrada àquela pedra. Ela está sem as calcinhas. Provavelmente foi abusada sexualmente. Agora, o estado em que o corpo se encontra, é estranho. Parece queimadura, mas não por fogo, talvez por algum produto químico.

Edgar, que estava atrás deles, exclamou:

- Vejam! O que é isso? Perguntou ele, agarrando algo de entre as folhas mortas no chão. Era um cordão preto amarrado a uma pedra de jade. Miguel logo reconheceu o objeto. Jonas pegou-o e examinou a pedra na palma da mão.

- Já vi isso pendurado no pescoço de Vicente Alvarenga. Disse ele. Edgar enrolou o objeto na mão e fez um sinal para os dois peões.

- Vamos pegá-lo!

- Avisem Hugo e Leonel! Gritou Jonas. ? E mandem alguém trazer uma carroça e uma lona!

Jonas voltou-se para Miguel.

- Obrigado pela ajuda.

- O que vocês fazem num caso como esse? Vão chamar a policia?

- Não. Já temos um suspeito do crime. Ele será interrogado e se for realmente o culpado, ficará preso o resto dos seus dias!

- Tão simples assim?

- É isso mesmo! Temos nossas leis, Miguel. Não precisamos do mundo lá fora! O que você poderia fazer, já fez. O resto é por nossa conta.

=======================================================

Quando Miguel chegou à estância, Laura estava na varanda, esperando em companhia de Luana. Ela mandou Luana entrar e foi ao encontro de Miguel.

- Edgar e alguns homens estiveram aqui e levaram Vicente preso! Disse ela, aflita. ? Disseram que ele assassinou Daniela!

- Eu sei. O corpo foi encontrado e próximo dele encontraram o colar de Vicente.

- Não é possível que Vicente tenha feito isso! Ele sempre foi trabalhador, honesto, educado. Ele é carinhoso até com os animais!

- Aqueles arranhões indicam que ele lutou com alguém e o colar dele, foi encontrado no local do crime. Miguel fez uma pausa, apoiou-se no gradil e mirou o horizonte. - O estranho é o estado do corpo.

- Como assim?

- Estava queimado, aliás, tinha aparência de queimado.

Laura soltou uma exclamação, levando as mãos ao rosto.

- Igual a Manoel!

Miguel olhou-a, surpreendido.

- Igual a Manoel, seu marido?

Laura olhou para ele, arrependida do que havia dito.

- Por favor, Laura! Diga-me o que está escondendo! Há algo estranho nessa comunidade! Conte-me o que é?

Laura deu meia volta e dirigiu-se para dentro da casa.

- Não é nada! Esqueça! Venha almoçar.

- Não estou com fome.

Laura estacou na porta.

- Aonde você vai?

- Trabalhar. Tenho que cuidar da criação...

Na manhã seguinte, Miguel dirigiu-se para a fazenda de Jonas. Quando chegou, foi recebido por Edgar, que estava no pátio, conversando com algumas pessoas em frente a uma construção pequena, com duas janelas, uma das quais era gradeada.

- Preciso falar com seu pai.

- Ele está lá dentro em reunião com o conselho. Respondeu o rapaz.

- Então eu vou esperar.

Edgar não disse nada, deu meia volta e retornou para o grupo de homens. Alguns minutos depois Jonas saiu do prédio acompanhado pelos outros três conselheiros. Edgar falou com o pai e indicou Miguel com um aceno de cabeça. Jonas aproximou-se.

- Preciso falar com Vicente. Disse Miguel.

- Você está aqui na condição de amigo, ou investigador?

- Faz alguma diferença? Não sou mais uma autoridade policial, você sabe, mas isso não me impede de fazer uma investigação sobre esse crime. Quero ter certeza de que Vicente é realmente o culpado.

As palavras de Miguel deixaram Jonas contrariado. Ele meteu as mãos nos bolsos da calça e empertigou-se.

- Existe um local que precisa ser examinado. Afirmou Miguel.

- O charco?

- O interior do moinho. A moça foi morta dentro dele.

- Como sabe disso?

Miguel tirou o pedaço de pano do bolso e exibiu.

- Encontrei isso preso num prego do lado de fora da janela e sobre o charco. Ela foi morta lá dentro e jogada pela janela.

Jonas ficou sério. Segurou a ponta do tecido com o dedo indicador e polegar. Retirou a mão e permaneceu pensativo, olhando para o chão. Miguel disse:

- O assassino a levou lá para dentro sob algum pretexto, ou até mesmo à força. Se ele entrou é porque possuía a chave da porta, ou a abriu de outra maneira. Quem possui as chaves?

- Somente eu. Mas a fechadura é antiga, pode ser aberta com um simples gancho. Eu já deveria ter trocado aquilo lá.

- Precisamos examinar o local do crime, Jonas.

- Precisamos?

- Sim, eu e você vamos lá dar uma olhada. Talvez encontremos uma pista que leve a outra pessoa, ou que denuncie Vicente definitivamente. Então, o que me diz?

- Preciso da autorização dos outros conselheiros. Enquanto isso vá ver Vicente.

Jonas abriu a porta da casa de detenção e deixou Miguel entrar. Ali havia dois cômodos, uma sala pequena com uma mesa e seis cadeiras e a cela. Vicente estava sentado no catre. Ao ver Miguel ergueu-se rápido e segurou-se nas grades.

- Miguel! Acusam-me de uma coisa que não fiz! Não matei ninguém!

- Calma Vicente! Tem duas coisas que estão contra você, esses arranhões e o teu colar que foi encontrado na cena do crime.

- Os arranhões aconteceram numa briga e o colar eu o perdi durante a luta. Com certeza alguém o colocou lá para me incriminar!...

- Você brigou com quem?

Vicente inclinou a cabeça, conturbado. Voltou a fitar o amigo.

- Com Jorge Noronha. Jorge, Edgar e Milton Alves construíram um alambique na mata e eu os descobri por acaso. No início me ofereceram bebida, mas como recusei, começaram a me insultar e acabei lutando com Jorge. Por fim eles me ameaçaram matar se eu contasse para alguém. Também fizeram ameaças contra Laura e Luana. Você precisa fazer alguma coisa para proteger Laura e Luana, Miguel!

- Farei, não se preocupe. Fique tranqüilo. Vou procurar inocentá-lo. Precisa de alguma coisa?

- Só a liberdade.

Miguel sacudiu a cabeça e se despediu. No pátio procurou por Jonas.

- O conselho decidiu que ninguém deve entrar no moinho. Disse o fazendeiro.

- E aquele pedaço do vestido de Daniela no prego sob a janela, não é uma indicação de que ela foi morta lá dentro?

- Um detalhe que pode ser desconsiderado.

Miguel começou a irritar-se, mas procurou se controlar.

- Então é bom que você saiba que Edgar, Jorge Noronha e Milton Alves, construíram um alambique na mata.

Jonas franziu o cenho.

- Na mata? Não é possível que eles tenham transgredido a lei!

- Vicente me contou. Ele não revelou a vocês por que os rapazes o ameaçaram de morte e, além disso, prometeram fazer alguma coisa contra Laura e Luana.

Com uma expressão de ira, Jonas voltou-se e olhou na direção da capela, onde estava sendo velado o corpo de Daniela. Na frente estava Edgar, Jorge, e Milton conversando com Leonel. Miguel segurou Jonas pelo braço.

- Espere! Você ainda não sabe tudo. Vicente brigou com Jorge Noronha, por isso está machucado, e o colar, ele o perdeu durante a luta.

Jonas olhou para Miguel, procurando assimilar as informações e coordenar as idéias. Miguel continuou:

- O verdadeiro assassino pode ter colocado o colar no local do crime para incriminar Vicente. Precisamos entrar no moinho a procura de mais pistas. Isso é importante, Jonas!

O fazendeiro levou alguns segundos para tomar a decisão.

- Espere-me no moinho. Vou pegar a chave.

======================================================

Miguel estava sentado nos degraus da escada quando Jonas chegou. Abrindo a porta, os dois entraram no moinho. O piso era de laje, deteriorada em alguns pontos. O grande salão estava vazio, a não ser pelas engrenagens com a pedra da mó caída no solo. O teto era alto com o travejamento exposto. Pendurado numa das vigas havia algo parecido com uma grande colméia, abandonada pelas abelhas. Jonas começou a abrir as janelas para entrar a claridade do dia. Miguel caminhou devagar em todas as direções, examinando o chão. Jonas permaneceu pensativo, junto à janela, de costas para o charco. Miguel deteve-se junto à mó. Havia sinais de uma mancha escura na borda e no chão. Ele ajoelhou-se e olhou mais de perto. Uma mancha que poderia ser de sangue que havia sido limpo, mas permaneceu algum vestígio na face áspera da pedra. Miguel apoiou-se no eixo que estava quebrado e ergueu-se. Voltou-se e examinou o eixo de madeira. De um lado via-se claramente o contorno de três dedos.

- Encontrou alguma coisa? Perguntou Jonas, aproximando-se.

- Olhe. Pediu Miguel.

- Marcas de uma mão!

- Exato. Daniela tentou escapar de seu agressor, caiu e bateu com a cabeça na pedra. Ela pode ter desmaiado e o homem aproveitou para violentá-la. Enquanto isso ela perdia sangue que se espalhava sob a cabeça. Depois o sujeito ergueu a cabeça dela com a mão esquerda e percebeu que ela estava morta. Ele a larga e se apóia no eixo da mó. Arrepende-se, mas é tarde demais. Precisa se livrar do corpo, não pode deixá-lo aqui. Vai até o cavalo e busca uma corda, amarra o corpo numa pedra e o joga pela janela no charco. Depois volta para limpar o sangue, talvez com a própria calcinha da vítima.

Miguel se cala e olha ao redor. Jonas permanece mudo, admirado com as revelações e o raciocínio de Miguel. Miguel foi até a janela e olhou para fora. Lá estava o charco, a água esverdeada, a pedra com a corda ainda na margem.

- Vou dar uma olhada lá fora. Disse ele e saiu. Na escada parou por um momento. Em frente ao moinho a vegetação era rasteira, a trilha levava à estrada, no terreno mais elevado. O assassino precisava esconder ou incinerar o pano sujo de sangue. Miguel desceu a escada e dirigiu-se para os fundos. Sob o telheiro, ele parou ao ver uma fenda entre as pedras do alicerce. Metendo a mão pelo buraco, tateou o interior até onde o braço alcançava. De repente ele sentiu a maciez de um tecido sob os dedos, fechou a mão e trouxe o objeto para fora. Era a calcinha de Daniela, suja de sangue. Miguel levou a peça de roupa para dentro e depositou-a sobre a pedra da mó. Jonas ficou olhando o objeto por alguns instantes.

- Uma coisa me intriga. Disse Miguel. ? Edgar deve ter assistido a briga entre Vicente e Jorge e foi Edgar quem achou o colar ali no charco. Se Vicente o perdeu na mata, alguém o pegou e mais tarde colocou na cena do crime.

Jonas estava inclinado, apoiado no eixo quebrado. Recordava quando Edgar chegou em casa com a camisa rasgada, amarrotada e suja. - O que aconteceu com a tua roupa? Perguntou. - Caí de um cavalo xucro. Não foi nada! Foi a resposta.

Jonas estava pálido, endireitou-se, dizendo:

- Preciso verificar uma coisa. Vamos até a minha casa.

Chegando à casa, Jonas pediu para Miguel esperar na sala, se afastou e quando voltou, trazia uma peça de roupa nas mãos. Era uma camisa masculina de cor clara, com botões de osso, laqueado.

- Consegue saber se essa mancha é de sangue?

- Tanto pode ser de sangue, quanto de chocolate, ou café. Para se ter certeza somente com análise de laboratório. Está faltando um botão. É de Edgar?

Jonas sacudiu a cabeça, confirmando. Naquele instante uma criada assomou a porta da frente.

- Patrão, estão chamando o senhor. Eles vão fechar o caixão para o sepultamento!

- Diga que já estou indo.

Jonas guardou a camisa na gaveta de uma cômoda e convidou Miguel para ir à capela. Os bancos da capela foram retirados para que o caixão fosse colocado no centro, para o velório. A capela estava lotada. Jonas abriu caminho e Miguel o seguiu. Postaram-se ao lado do féretro. O pai e a mãe choravam pela filha falecida e Leonel era consolado pelos amigos. Edgar, Jorge e Milton estavam lá. Miguel pensou na possibilidade dos três terem participado daquele crime. O padre começou a cerimônia de despedida. O corpo estava envolto numa toalha. Miguel notou que a mão da morta aparecia sob a borda do pano. Uma mão crispada, como se segurasse alguma coisa. Havia fios de tecido sobressaindo de entre os dedos. Seguindo seu instinto, Miguel inclinou-se e procurou abrir-lhe os dedos. O padre se surpreendeu com aquela atitude estranha, mas continuou com a cerimônia. Sentindo-se ultrajado, Leonel deu um passo para frente para conter Miguel, mas Jonas segurou-o pelo braço e o conteve. Logo depois Miguel ergueu o tronco e voltou-se para Jonas, mostrando-lhe um botão de camisa, na palma da mão, um botão de osso, laqueado. O homem enrubesceu, pegou o objeto e com dois passos largos, postou-se diante de Edgar, exibindo o botão.

- A morta acusa o seu assassino. Murmurou ele. Edgar empalideceu e num movimento brusco, abriu caminho e saiu da capela. Jonas elevou a voz, dizendo!

- Continuem a cerimônia!

Após o sepultamento, Jonas dirigiu-se para a cadeia e libertou Vicente. Vicente saiu e foi ao encontro de Miguel. Os dois se abraçaram.

- O que aconteceu para eles mudarem de idéia?

- Consegui provar a tua inocência. Respondeu Miguel. ? Vamos para casa.

Com o amigo na garupa da montaria, Miguel partiu para a estância. No caminho, ele contou o que havia ocorrido.

- Então, é Edgar o assassino?

- Exatamente. Acho que...

Miguel calou-se por um momento e depois exclamou: - Aquele é Edgar!...

Vicente olhou na direção do moinho e viu o rapaz se afastar correndo pela várzea e sumir entre a vegetação. Miguel puxou as rédeas do animal e conduziu-o naquela direção. Saindo da estrada, atravessou uma clareira e parou. A vegetação era cerrada e eles tiveram que seguir a pé. Miguel caminhou rápido, desviando-se de maricás e caraguatás. Ao chegar a um grupo de arvores, ele estacou, espantado. Do galho de um ingazeiro pendia o corpo de Edgar, amarrado pelo pescoço a uma corda. Miguel o reconheceu pela roupa, pois o corpo estava irreconhecível, com a pele escamada, escura e enrugada. Aconteceu com ele o mesmo que com Daniela. Vicente contemplou a cena em silêncio. Miguel voltou-se para ele e falou com ênfase:

- Vicente, Daniela ficou do mesmo jeito após morrer e Manoel também. Diga-me, que explicação há para isso? Sei que você sabe!...

Vicente sentou-se numa pedra, apoiando os braços nos joelhos.

- Tudo começou a muitos anos na época que Jonas Barreto e Diogo Alves construíram o moinho.

- Jonas construiu o moinho? Mas, você disse que o moinho tem quase duzentos anos!...

- Exatamente. Os conselheiros têm mais de cem anos de idade. Alguma energia dá vida eterna às pessoas. No inicio do verão, quando o sol entra por uma janela do moinho e bate numa colméia, ela começa a brilhar, emitindo uma luz colorida. É essa luz da colméia que imuniza o corpo de doenças, revigora os tecidos e dá vida longa. Eles podem viver muitos anos, mas não podem sair do vale. Se sair além de certo limite, morre. Foi o que aconteceu com Manoel. Os conselheiros admitem que pessoas de fora venham a participar dessa fonte da juventude, mas somente depois de certo tempo, quando tem a certeza de que a pessoa guardará segredo. Jonas mantém dois ou três empregados que não foram expostos à luz, exatamente para que eles possam sair do vale para tratar de assuntos da comunidade, que não podem ser resolvidos aqui mesmo.

Vicente fez uma pausa e Miguel aproveitou para perguntar:

- E quanto a...

Vicente deu um salto olhando para acima da copa das arvores.

- Incêndio! Alguma coisa esta pegando fogo!

Miguel olhou para trás e viu uma coluna de fumaça erguendo-se de algum ponto na várzea.

- É no moinho! Exclamou Vicente e saiu correndo. ? Avise Jonas e peça ajuda! Gritou ele. Miguel montou no cavalo e conduziu-o a galope para a estrada. De longe viu uma das paredes do moinho em chamas. Minutos depois, quando chegou a casa de Jonas, avistou alguns vultos caídos pelo chão. Saltou do cavalo e seguiu caminhando pelo pátio. Havia corpos enegrecidos em todas as direções, inclusive o do padre. Miguel reconheceu Jonas pela roupa. Ele havia tombado junto aos conselheiros. Todos estavam mortos. Duas pessoas saíram da casa, assustadas, o homem amparando a mulher pálida pelo terror. Outro surgiu por trás do celeiro. Os três se aproximaram de Miguel, como que buscando proteção contra uma ameaça invisível.

- O que está acontecendo? Indagou o homem mais velho.

- Não tenham medo. Pediu Miguel. ? Um de vocês deve ir a cidade avisar a policia e os outros devem permanecer aqui para cuidar da propriedade.

- Eu vou. Respondeu o rapaz.

- Diga que muitas pessoas morreram de causa desconhecida. Voltarei mais tarde para conversar com o delegado.

O rapaz correu para o estábulo selar um cavalo e Miguel montou no seu e dirigiu-se para o moinho. Quando chegou, o prédio já estava totalmente destruído, com algumas partes ainda em chamas. Ao olhar para o terreno abaixo, viu um corpo caído. Apeou e aproximou-se. Deixou-se cair de joelhos e contemplou com tristeza o corpo enegrecido de Vicente. Ele também havia se exposto à luz da colméia. O moinho havia sido destruído e com ele a colméia. A energia que mantinha as pessoas saudáveis e com longa vida, havia se extinguido. Um pensamento deixou Miguel consternado. Laura e Luana também estariam mortas da mesma maneira. Miguel ergueu-se. Não havia mais nada a fazer por Vicente. O corpo deveria ficar ali até a polícia chegar. Restava voltar para a estância e esperar.

Miguel tirou os arreios do cavalo e largou-o no pasto. Depois, desanimado, cansado e triste, caminhou cabisbaixo para a casa. Uma voz estremeceu-o.

- Miguel!

Ele ergueu o rosto e viu com alegria, Laura e a filha na varanda. Estavam vivas! Ele correu para elas e abraçou-as as duas ao mesmo tempo. Surpreendida, Laura retribuiu o abraço, compreendendo que ele estava sob forte emoção.

- O que aconteceu? Perguntou ela. Miguel largou-as e foi sentar-se num banco.

- Luana, pode me trazer um copo de água?

A garota entrou correndo em casa. Laura sentou-se ao lado de Miguel.

- Foi Edgar quem atacou Daniela. Quando foi acusado, fugiu e mais tarde colocou fogo no moinho e se matou. O moinho foi consumido pelo fogo. Vicente me contou sobre a luz da colméia que dava vida eterna a essa gente. Com a colméia destruída, todos morreram da mesma forma que Daniela e Manoel. Vicente também morreu.

Miguel fez uma pausa e recostou-se na parede. Laura segurou-lhe a mão e ele se sentiu reconfortado pelo carinho dela.

- Coitado do Vicente! Murmurou ela.

- Eu pensei que vocês também tinham morrido...

Laura sacudiu a cabeça.

- Não. Manoel aceitou fazer aquilo, mas eu não e não deixei que fizesse o mesmo com Luana. Prefiro uma vida normal. Eu não te contei sobre a colméia por que tive receio de que você ficasse seduzido por algo que é contrário a nossa natureza, como Manoel foi. Jonas e os outros viveram mais de cem anos, mas não puderam sair do vale. Eram prisioneiros de si mesmos, por algo que lhes dava vida longa, mas não a liberdade e a alegria de viver!

Luana trouxe a água e Miguel esvaziou a caneca.

- Obrigado.

- O que temos que fazer agora? Perguntou Laura.

- Jonas tinha três empregados que não foram expostos à luz da colméia. Mandei um rapaz a cidade avisar a policia. Temos que esperar para dar o nosso depoimento ao delegado. O vale vai se encher de gente, repórteres, curiosos e tudo mais. Vai ter muita gente por aqui. Depois que tudo se acalmar, você poderá fazer usucapião da terra para tomar posse legalmente da estância.

Laura encarou Miguel, perguntando:

- E você, o que vai fazer? Vai continuar conosco?

- Você vai embora, Miguel? Perguntou Luana, alarmada. Miguel olhou para ela e depois voltou a encarar Laura.

- Bem, eu tenho muitos motivos para ficar, isto é, se vocês quiserem que eu fique!

- É claro que queremos! Exclamou Laura.

Miguel sorriu.

-- Se vocês insistem... Disse ele sorrindo e abraçou Laura.

FIM

antonio stegues batista
Autor: Antonio Stegues Batista


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