Coração Escuro






Amanda... seu nome era Amanda. Tanto poderia chamar-se Rute ou Juliana, que não faria diferença. Era apenas mais uma garota comum, dessas que não concordam em vir ao mundo, mas de uma maneira que sua opinião é ignorada, acaba escrava deste...Era miúda, de olhos muitos pretos e vivos, que apesar de parecerem vazios, enxergavam o real e muito além deste.

Nesse mundo cruel tentava adaptar-se sem maiores sucessos. Quem conhecesse sua mente mais profundamente, diria haver um véu espesso e negro a toldar-lhe a alma. Curiosamente seu nome não combinava com suas raízes. Seria mais próprio chamar-se Rivka ou Dorit, seguindo as tradições judaicas, mas uma mãe cansada de tantas tradições(e aflições) carregadas desde os antepassados, optara pelo nome de uma heroína hollywoodiana.

Nem isso conseguira dar um brilho a mais na existência de nossa Amanda. Toda a relação de parentesco com a descendência de Abraão que sua mãe inutilmente tentara negar, de repente renascera em seu coração atribulado.

É verdade que todas as tradições do Shabat e Mikvá haviam sido erradicadas a muito tempo e não havia característica visível que a diferenciasse de outras garotas de seu convívio...Inexplicavelmente a acompanhava uma tristeza enorme, um abandono cruel, um resto daquela mesma agonia carregada pelos judeus quando adentravam Auschwitz....

Ela mesma costumava refletir que sua vida era senão as "ervas amargosas para lembrar o Egito",tal como a Pessach dos hebreus que se viram livres do domínio dos Faraós. Era comum que essa tristeza se multiplicasse ainda mais quando refletia sobre fatos históricos.

Incomodava-a o fato de seu povo sempre estar sem pátria ao longo dos anos. Ignorando o fato de eles serem responsáveis pela crucificação do Messias, achava inconcebível que vivessem procurando serem aceitos desde a primeira Diáspora.

Inevitavelmente a dor inundava-lhe a alma. O descaso com que professores e colegas discutiam a situação dos judeus durante a Segunda Guerra, surtia um efeito degradante. Dava-lhe uma situação de entorpecimento, o coração quase lhe saía pela boca.

Era nessas horas que procurava achar um lugar que lhe trouxesse paz. Mesmo que uma paz angustiante. Procurava algum lugar que tivesse rosas...rosas vermelhas. Talvez por isso nunca conseguira relacioná-las com amor barato como tantas outras o faziam. Para ela, rosas eram sempre sinônimo de sangue e de dor. Gostava de ficar ali sozinha com elas. Divagando, sem nunca as tocar ou sentir-lhes o cheiro, pois tinha a certeza de que se fizesse isso, não encontraria a fragância comum que os outros sentiam, mas sim o cheiro agressivo de sangue fresco. Na verdade temia até encostar nelas e ter seus dedos manchados com o líquido rubro.

Inexplicavelmente sentia-se compreendida ali naqueles instantes. Pouco a pouco ia se acalmando... Ao sair de lá toda a ansiedade já era substituída pela calma. Aí então, sentia-se realmente em paz.

Ninguém poderia afirmar que era totalmente alheia a realidade. Embora como tantos outros judeus, abominasse as tradições, muitos fatos não lhe passavam despercebidos. Tel Aviv havia sido criado e ainda que fosse uma pena Moisés não mais existir para guiá-los a uma terra unicamente deles, sentia-se contente.

O que mais a acompanhava sem dúvida era o ódio pelo Fuhrer e suas barbáries cometidas durante o III Reich. Desejava um tremendo castigo a ele. Até seu nome soava como uma ofensa, amargo em sua boca.

O pior de tudo era que nunca podia contar com ninguém. Chamavam-na desvairada, alienada e tantos outros adjetivos cruéis. Dia após dia tentava viver de maneira normal, mas menos conseguia.

Arrastava-se desta maneira, até o dia em que a dor foi grande demais para ser suportada. Folheando um velho álbum de família viu uma foto de uma mulher pouco antes de ser enviada para o campo de Treblinka.

Que muitos judeus foram dizimados nos campos de concentração não era novidade, mas foi algo de muito conhecido que lhe trouxe uma angústia atroz. O olhar da mulher fixava-se em lugar algum, mas ao mesmo tempo traduzia todo o desespero que lhe ia na alma. Amanda rapidamente reconhecera aquele olhar. O via todos os dias quando procurava seu reflexo no espelho...

Foi aí que descobriu que herdara toda aquela parte amarga de seus antepassados. Contrariando as leis de Genética em que sentimentos não se herdam, ela então compreendeu porque sempre no coração havia um vazio... um vazio de gente dizimada...

Afoita, dirigira-se rapidamente ao jardim de sua casa. Estando este abandonado a muito e conseqüentemente crescido ervas ao redor, conforme andava os espinhos rasgavam-lhe a carne. A confusão que ia em seu interior não deixava que ela sequer sentisse a dor física.

As rosas estavam entrelaçadas em meio aos espinhos. Ervas inúteis as sufocavam sem dó. E foi nessa fusão do bem e do mal que Amanda as encontrou. Como de costume, sentou-se em um lugar próximo na intenção de observá-las melhor.

Nessa hora já havia deixado de ser uma garota para se transformar em cinzas. Cinzas de rosas, que mesmo queimadas não deixam de ser fascinantes.

Uma angústia atroz a dominava. A tristeza golpeava-lhe o coração em ondas sucessivas. A paz que outrora lhe inspiravam agora era negada e no lugar disso pairava uma tremenda inquietação.

Era confuso saber que estava livre( em sua vida nunca houveram soldados da SS ou guetos) e ao mesmo tempo tão presa. Tanta escuridão e dor em sua existência, sem explicação... E ao mesmo tempo as rosas tão presas, sufocadas por uma erva inescrupulosa, exibindo um vermelho tão vivo e exuberante.

De repente observar não foi o suficiente. Vacilante caminhou a passos incertos aonde estavam. A emoção que experimentava nesse momento era tão forte que sua cabeça rodava, o pulmão parecia estar prestes a explodir. A vermelhidão a atraía mais e mais.

Ao primeiro toque recuou assustada. Realidade e fantasia confundiam-se quando olhou os dedos... não sabia dizer se estavam normais ou manchados de vermelho...

Num ímpeto de ódio, apertou-as entre os dedos. A alma escura clamava pela luz. Permaneceu nesse desvario até que as pétalas e seu sangue se confundissem.


Autor: Ariadne Santos


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