O sonho escorre pelo arame enferrujado. Parte IV
Parte IV
Uma caneta foi o premio, a recompensa pelos muitos anos de dedicação
Algum tempo passou e Clemente foi até o sobrado.
Não era manha, nem domingo ensolarado.
Era um dia normal sem a magia das manhãs dominicais.
Enormes tapumes informavam venda de apartamentos no lançamento.
O velho arbusto, ressequido, jogado no canto, amarrado a velha maleta entre aberta, ambos sem mais nenhum valor, deixava amostra a placa de premiação e uma carta:
Prezado amigo
Inevitavelmente o dia de cada um vai chegar. Pode demorar mais chega. O meu chegou.
Chamam-me de velho, na verdade sou um homem velho, poderia ser um idoso. Não seria diferente, só um pouco mais respeitoso.
Sim já fui alguém, hoje sou apenas um velho.
Mas acreditem, já fui criança, passei pelo primário, fiz admissão, entrei no ginásio, cursei o científico, naquele tempo vazia-se o cientifico ou o clássico. Optei pelo primeiro.
Prestei vestibular, cursei a universidade, uma das melhores que havia.
Fiz mestrado, doutorado.
No estrangeiro especializei-me e tornei-me PhD na minha área.
Lecionei naquela universidade e me sentindo preparado voltei e fui trabalhar numa grande multinacional.
Fiz brilhante carreira. Premiado em várias funções. Fui promovido à presidente da empresa.
Casei com uma linda mulher. Trabalhava na empresa como diretora de relações institucionais. Exímia advogada. Nossa relação durou muitos anos, tivemos filhos e tenho netos. Faleceu em um acidente durante uma viagem a serviço.
Ganhamos bastante dinheiro, compramos propriedades.
Pensávamos que uma casa, a que morávamos seria o suficiente, que nossas aposentadorias garantiriam conforto até o final de nossos dias sem importunar os filhos.
Presenteamos cada um dos quatro filhos com propriedades para começarem a vida sem muito sacrifício.
Até a poucos dias morei neste grande sobrado localizado nesta área nobre da cidade. Rua tranquila, arborizada com casas boas.
Na época da compra fiz minhas exigências ao corretor que procurou como se fora uma agulha no palheiro.
Esta casa foi palco de muitas festividades: As festas de quinze anos e os casamentos de meus filhos.
Houve também festas para os funcionários da empresa e fornecedores, todos viviam em franca bajulação.
Os filhos brincavam, usavam a piscina, fazíamos churrascos, depois os netos e netas com seus amiguinhos, todos povoavam alegremente a casa.
Mesmo sendo doutor e premiado, tive que me aposentar. A ordem veio da matriz.
Houve uma festividade na empresa para anunciar a aposentadoria e fui agraciado com uma caneta.
Uma caneta foi o premio, a recompensa pelos muitos anos de dedicação.
Os filhos e os netos não têm tempo para mim. Não me visitam com freqüência e numa das últimas visitas escutei falarem em incapacidade.
Queriam decretar-me incapaz. Assim poderiam desfazer de meus bens e não se preocupar comigo morando no casarão.
O valor de minha aposentadoria, não é suficiente para manter a casa em ordem, me alimentar, comprar medicamentos. Meu plano de saúde foi cortado, meu filho deixou de pagar.
Quando preciso utilizo o serviço público.
Disseram que o valor da casa seria suficiente para pagar a mensalidade de uma casa de repouso, até os últimos dias de minha vida.
Uma construtora que edificou diversos empreendimentos na região estava fazendo uma polpuda oferta pela casa.
Eu não queria sair de lá.
Ali estava toda minha estória e lembranças dos melhores anos de minha vida.
Certo dia, a revelia, eles colocaram a uma tabuleta com a inscrição:
Vende-se esta casa.
Enquanto aguardava, passei horas a ver e a alimpar a placa de homenagem que recebi pelo desempenho e crescimento de vendas e ainda a lustrar minha caneta.
Meus ternos e camisas guardados para um dia especial, ficaram obsoletos.
Eu ficava dentro de casa, pouco saía.
Passava horas na janela, onde muitas vezes chorei e minhas lágrimas corriam pelo arame que sustentava a placa de vende-se.
Certo dominho logo cedinho, meus filhos chegaram. Fiquei feliz com a visita, até perguntei se era meu aniversário, mas o motivo foi outro, me informaram que como eu sendo incapaz, venderam o imóvel.
Mandaram que arrumasse minhas coisas e estão me levando para uma destas casas para idosos.
Autor: Antonio Ribeiro
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