LEITURA, ESCRITURA & ANÁLISE E REFLEXÃO LINGUÍSTICAS



por Wandré de Lisbôa, MSc., D. Hon.

A ação reflexiva pode ser entendida como aquela que é tomada como objeto de atenção pelo próprio sujeito. Trata-se não só de saber fazer, mas também de pensar sobre como se faz a expansão e o que se faz com ela. As concepções espontâneas infantis, por exemplo, são por longo tempo não reflexivas, ou não conscientes, porque a atenção da criança está centrada mais no objeto do dizer ? naquilo sobre o que se diz ___ do que no próprio dizer ___ o quê e como se diz. A criança, ao viver suas experiências, é sujeito ativo e apreende o mundo, com a expansão da experiência comunicativa; e dependendo da qualidade das trocas sociais, vão surgindo, num longo processo, níveis crescentes de reflexividade ___ revelado, por exemplo, pela capacidade de julgar a adequação de enunciados ou pela autocorreção da linguagem nas cenas comunicativas que vivencia diariamente.

Daí porque a prática não é estanque; e, sim, contínua. O ato se constitui ao longo da vida com uns mais, com outros menos, porque essa prática sempre estará limitada às condições de enunciação em que essa criança, futuro adolescente e adulto, encontrar-se inserida.
Vygotsky (1984) argumenta que a linguagem se constitui primariamente no plano do funcionamento comunicativo, envolvendo regulações recíprocas entre crianças e outros, e desse processo diferencia-se o funcionamento individual, pelo qual a linguagem passa a ser orientada para si, servindo à auto-organização e à auto-regulação.

Expandindo essa proposição para a linguagem escrita, podemos dizer que, também nesta, o duplo funcionamento se faz presente na interação entre falantes ? o que caracteriza a função comunicativa como dialógica e que promove uma relação do sujeito com sua própria escrita e com sua própria Leitura.

Entretanto, não se trata de situações em que o indivíduo lê para lembrar-se do que escreveu, ou em que escreve uma simples lista de compras. No que tange ao ato de escrever, o funcionamento individual implica que a escrita se transforme em meio de ação reflexiva, permitindo ao sujeito formular enunciados deliberadamente e tomá-los não só como objeto de análise em termos de adequação, de consistência, de lógica, mas também de temporalidade, de intenção, de conexão, etc., devendo ser isso uma prática contínua em toda a vida escolar, acadêmica do usuário.

Para expressar idéias, conceitos, sentimentos, é necessário que o sujeito se sinta parte de um grupo que respeita e que valoriza os conhecimentos de cada um e, a partir desse conhecimento, é que ele vai compondo e ampliando seu repertório linguístico. O sujeito não é, portanto, simples receptor de estímulos e de informações: tem um papel ativo ao selecionar, ao assimilar, ao processar, ao interpretar, ao conferir significados, construindo ele próprio seu conhecimento, sua própria rede de significados, na mesma proporção em que aquele que escreveu o fez e aquele que vai ler fá-lo-á.

A apropriação funcional da escrita (incluindo as metarregras de textualidade, as regras de escrita, o estilo, o gênero textual e a conscientização da intenção) pode ou não avançar dependendo da qualidade das experiências, mormente nas escolares, com a produção e a análise de textos a que são expostos continuamente na sala de aula de Língua Portuguesa, as quais na maioria das vezes têm se limitado primeira e tradicionalmente à descrição dos componentes, dos expedientes linguísticos, em oposição à análise do sentido, da produção do sentido: condição fundamental para a recepção e a produção de textos.

Pensa-se assim, porque já foram presenciadas por todos nós, inúmeras vezes, em situação de discência, aulas de Português em que se privilegia(va)m perguntas diretas de ordem metalinguística e/ou descritiva do que perguntas reflexivas, analíticas e construtivas; mais vezes ainda propostas de Leitura sem sedução, sem sabor, por conta de intenções pouco educativas, como acordos indecorosos firmados entre professores e divulgadores; pouquíssimas vezes nossas falas como alunos foram aproveitadas diante dos poucos e/ou duvidosos conhecimentos do professor; além de um sem-número de aulas em que não havia, pelo menos não de forma reflexiva, qualquer conexão entre a Leitura e a Escritura, entre os expedientes linguísticos e suas necessidades à construção de textos, entre a Gramática e a recepção e produção textuais. Essas aulas nós definitivamente não as tivemos. Tivemos, sim, aulas de sílabas, de análises microscópicas de palavras, de dissecação de orações e períodos textuais para então escrevermos textos.

Por isso temos um sem-número de analfabetos funcionais. Leem e escrevem mal e parcamente, porque seus universos lingüísticos foram menores do que aquilo que deveriam produzir. Ensinaram-nos sílabas, palavras, orações e períodos e pediram-nos que escrevêssemos textos. Daí tanta obtusidade.

É no exercício de educador tanto da esfera estadual, como da federal e da particular de Educação, em todas as séries do ensino fundamental e do médio, inclusive com atuação nos antigos Supletivos; como Professor de Universidade, atuando também na formação de futuros professores de Língua Portuguesa; e agora mais recentemente retornando à formação de professores nas Licenciaturas, que observamos, com muita resignação: o professor de Língua Portuguesa pouco entendeu para que, como e por que ele ensina a Língua Materna. São raras as exceções que intuíram o constructo linguístico como veículo das intenções do pensamento do homem, que inter-relacionam Gramática à construção e à desconstrução de textos ____ o que parece ter acontecido entre a maioria dos professores universitários, paradoxal e espantosamente em relação aos professores que atuam nos Ensinos Fundamental e Médio. Paradoxal e espantosamente porque se esses professores universitários já imbuíram, por que seus alunos ainda não? Por que continuam tantas mazelas na formação desse profissional de Educação? Por que, ainda que a Linguística Contemporânea tenha avançado tanto, muitas atitudes desses profissionais são anticientíficas e anticontemporâneas?

A dificuldade para desdobrar para sal de aula pesquisas acadêmicas vem de longo tempo; do contrario, já teríamos visto os largos e movediços passos da Linguística sendo aproveitados nas aulas de Língua Portuguesa, mediatizados ou orientados pela Linguística Aplicada e pela Pragmática Linguística, e não como descobertas engavetadas na casa do pesquisador ou catalogadas e arquivadas em alguma biblioteca universitária.
Se assim o fosse, decerto veríamos a rede de relações entre os pensamentos de Vygotsky (Pedagogia) com os de Mary Kato (Psicolinguística) que contemplam as noções de contexto daquele às noções de superestrutura desta; com os de Crystal, de Celani (Linguística Aplicada) que trouxeram à baila dados de seleção de material didático de línguas e sua regulação; com os de Givón, de van Dijk, de Neves (Teoria Gramatical), que elucidaram mais ainda os aportes sintáticos das línguas e esta última, do português, para a aprendência do idioma, propondo, ainda que veladamente, um (re) trato de ensinagem de línguas como o português; com os de Grice, de Marcuschi (Análise da Conversação) e seus contributos com as Máximas Conversacionais adaptados a todos os constructos lingüísticos que não somente os da fala; com os de Levinson, de Austin, de Fillmore (Pragmática Linguística), que consorciam dados coletados da língua em uso para serem trabalhados como dados reais e, portanto, autênticos na Interlocução; com os de Ingedore Koch, de Eduardo Guimarães, de Inez Sauthuk (Linguística Textual), que colaboraram com importantes avanços na compreensão do epifenômeno texto; com os de Bakhtin e de Benveniste (Teoria da Enunciação e do Discurso), que contribuíram com a inserção da dialogicidade no fenômeno texto.
Pensamentos todos com suas limitações teóricas, metodológicas, epistemológicas, políticas e históricas, mas com uma pequena possibilidade de interseção, quando se busca neles em quê e como podem respaldar a aplicabilidade da consorciação dessas cenas da linguagem nas aulas de língua materna.

Urge, portanto, executar realmente uma Educação Linguística que se volte para a compreensão dos fenômenos da língua, sem desprezar os recortes das outras ciências que se voltam(-ram) também para a Linguagem, buscando dar significados aos mecanismos do dizer e aos do não-dito que se mostrarem neste ou naquele discurso, elegendo o texto, como a unidade magna, e sua construção e desconstrução, como tarefas basilares de linguagem, em qualquer nível de estudo, em qualquer área científica, sob qualquer intenção verticalizadora do conhecimento, tratando ainda, o professor, de programar diferentes situações autênticas de uso e suas implicações significativas de outros e outros mecanismos do dizer, de tal sorte que não se privilegiem uns recursos e não se dêem conta de outros tão em uso quanto os eleitos para aquele momento didático, podendo partir das próprias produções dos alunos.

Mas isso só cabe aos professores de LM do Ensino Básico? Não só, mas também. Acreditamos que caiba a todos ? pesquisadores e docentes ? já que a síntese perfeita entre essas duas atitudes ainda constitui uma prática pouco incorporada pelos formadores de professores no Brasil, que produzem, mas pouco fazem esse conhecimento circular.

(...)

Se muitas vezes observamos que a compreensão de um texto é pouco proficiente, isso decorre não somente de dificuldades de ordem puramente linguística ___ como a transferência para a Leitura de comportamentos que julgamos já serem comuns na fala, por exemplo ___ como também de certa dificuldade, mais ainda do Professor de Língua Materna do que do aluno, no entendimento dos processos afetivos e cognitivos que impulsionam todo ato de linguagem, já que ele próprio, na grande maioria das vezes, ressente-se em sua formação educativo-linguística dessa propriocepção, dessa apropriação.

Agora fica um pouco mais claro porque um dos grandes entraves da aula de Língua Portuguesa está no momento em que, mesmo depois de estudos avançados na área da linguagem em todo o mundo e da divulgação do paradigma atual de Educação Linguística para todo o mundo não ser mais o mesmo, as aulas continuam tornando os atos fundamentais de Linguagem (Leitura, Escritura e Análise e Reflexão Linguísticas) em cenas esparsas, isoladas umas das outras.

Logo é evidente compreender por que tantas dificuldades com o texto escrito que nossos alunos têm quando em situação de produção escrita, mesmo entre aqueles de grau de escolaridade mais avançada; afinal, as aulas de Gramática não têm cumprido seu propósito maior que é o de respaldar o usuário para uma Leitura e uma produção de textos mais eficiente; bem como as aulas de Leitura não têm feito alusão aos mecanismos linguísticos discretos no tecido textual como responsáveis pelo dito e, portanto, como base para as novas investidas linguísticas desse usuário, agora leitor, quando em condições de produção textual; além das aulas de Produção Textual que não vêm se valendo de atividades de linguagem que levem e elevem o usuário a condições de Análise e Reflexão Linguísticas, de tal forma que por meio das Leituras que esse usuário fizer agencie os expedientes linguísticos em uso na língua na hora de suas próprias produções.

Eu próprio ministrei aulas em que a ordem didática era assim: começava pela metalinguagem, passava para o uso e punha os alunos para realizar uma série de atividades semelhantes às da aula ministrada minutos antes, de modo que não tinha como esses alunos errarem, afinal só lhes restava "seguir o modelo". Como eu havia sido formado em um paradigma educacional assim, acreditava que meus alunos também devessem ser formados dessa maneira. Os próprios testes, provas, avaliações também seguiam o mesmo paradigma dominante-cartesiano, no qual eu havia sido formado até mesmo academicamente. Até que um aluno meu (1985) em Gramática e em Redação foi avaliado por mim com nota 10(dez) em Gramática e com nota 5,5 (cinco e meio) em Redação, o que me deixou intrigado, porque se ele era bom na norma culta, por que teria tirado nota baixa em Redação? Foi a partir desse dia que decidi investigar o que proporcionava aquele evento e fazer algo para mudar aquilo. E descobri que as cenas de Leitura, de Escritura e de Análise e Reflexão Linguísticas que eu promovia precisavam intersectarem-se, a ponto de uma ser a outra em desdobramento metodológico, e que eu estava fazendo tudo à semelhança de meus professores anteriores e isso não estava ajudando meus alunos a se apropriarem da língua; e sim, a assujeitarem-se a ela. Estava na hora de vencer o status quo.

Revi então meus conceitos, busquei informações nas áreas da linguagem e da educação, de maneira que me respaldasse nas novas investidas metodológicas que faria e que o fiz. Faça-o você também, Professor! Procure informações e produza conhecimento. A Educação Brasileira agradece!




Bibliografia

LISBOA, Wandré. Os fios do tapete: educação por interfaces.Belém, Ed. ALVES, 2006. Vol.03
STEINER, G. Linguagem e silêncio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
SUASSUNA, Lívia. Ensino de Língua Portuguesa. 3ª ed. Editora Papirus, Campinas ? São Paulo, 2000.
TEBEROSKY, Ana. et al. Compreensão de Leitura: a Língua como Procedimento. Pelotas, RS. Ed. Artmed, 2003.
VIGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
____________. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

WEEDWOOD, Bárbara. História Concisa da Lingüística. São Paulo: Parábola, 2003.
WIDDOWSON, H. Aspects of Language Teaching. Oxford: Oxford University Press, 1990.



Autor: Wandré Guilherme De Campos Lisbôa


Artigos Relacionados


LÍngua Portuguesa: O Desafio De Ensinar E Aprender

A Visão Saussuriana: Linguagem, Língua E Fala

O Que É A GramÁtica Na Escola?

A AnÁlise LinguÍstica Na ConstruÇÃo De Sentidos

A Postura Do Professor No Ensino De Língua Materna

A ProduÇÃo De Texto

Linguística Aplicada: Do Cognitivismo à Visão Pós-estruturalista