SIBYLAS E SIMONES



A profissão de meu pai deu um toque especial na minha infância e adolescência. Sim, pois a cada promoção que ele recebia, vinha a inevitável transferência e éramos obrigados a mudar de cidade, coisa que me proporcionou tomar contado com diferentes estilos de vida e nuances culturais, eis que naquela época, não havia esta tendência à globalização dos costumes conforme existe hoje em dia.

A minha fase de vida mais marcante, justamente a passagem da infância para a adolescência, eu vivi em uma pequena cidade gaúcha quase na fronteira com Santa Catarina denominada Vacaria e da qual eu tenho algumas das mais bonitas lembranças de minha vida.

Naquela época, início dos anos sessenta, a família ainda era uma coisa sagrada. As mulheres eram criadas para serem normalistas e, no máximo, exercerem a atividade de professoras primárias até conseguirem um bom casamento ao qual elas se dedicariam inteiramente até o fim da vida, cuidando do marido e dos filhos.

Evidentemente, Vacaria não fugia á regra. As mulheres, em sua maioria, exerciam tão somente a atividade de donas-de-casa, todas com a função sagrada de educarem os filhos e manterem a ordem dentro do lar. Nos finais de semana, o chá com as amigas ou alguma festinha de aniversário na qual elas faziam uma pausa para mostrar as vocações e habilidades artísticas dos filhos. Era aquele momento em que, geralmente contrariados, alguns recitavam uma poesia, outros tocavam algum instrumento musical, normalmente piano ou gaita, pois o violão ainda era considerado um instrumento marginal.

Era uma vida quase tranqüila para as chamadas "senhoras de família", tranqüilidade somente abalada quando surgia alguma fofoca a respeito do marido de alguma delas que teria sido visto na famigerada Casa da Sibyla, local de prostituição mais famoso da região.

Sibyla foi uma mulher que durante o transcorrer da vida, exerceu sua sexualidade com toda a intensidade que a natureza lhe ditou, sendo logo considerada uma vadia, vagabunda, prostituta, sem-vergonha e outros adjetivos pejorativos mais. Mulher simples que era, não teve outra escolha na vida que não dedicar-se à prostituição.

Mas não era apenas ela quem perturbava a estabilidade emocional das "mulheres de bem" da cidade. Havia uma professora que era desquitada, situação muito mal vista à época. Na verdade, por ser presumidamente uma mulher "desfrutável" e atraente, ela trazia o temor de que pudesse vir a abalar a solidez de alguma família local. Lembro-me que, assim que ela se aproximava de um grupo de senhoras em algum destes encontros a que me referi, umas diziam para as outras em voz baixa: "aí vem a desquitada", como se isso fosse uma doença grave e transmissível.

Acontece que ela, ao contrário de Sibyla, havia lido todos os livros, conhecia todos os discursos e tinha capacidade de racionalizar seus desejos, construindo um aparato teórico suficientemente sólido para justificar sua plenitude sexual. Ninguém tinha coragem de enfrentá-la no campo intelectual e quando a ouvíamos falar, nos sentíamos diante de uma nova Simone de Beauvoir. Era uma daquelas mulheres que, em virtude da firmeza argumentativa e grande aparato cultural que possui, faz com que aquela mesma sociedade que antes a execrava, acabe por transformá-la em um paradigma, um modelo de liderança intelectual a ser seguido por todas as outras mulheres.

Era assim com a professora. A maioria das "senhoras de bem", ao mesmo tempo em que a desprezavam pelas costas, frente a frente, a aturavam e respeitavam, eis que não tinham condições intelectuais para terem uma postura diferente, sob pena de serem reduzidas a pó, vítimas de um nocaute argumentativo. E isso elas não queriam.

Tempos depois, meu pai foi transferido da cidade e eu nunca mais tive notícias daquelas duas mulheres que, ao atraírem a ira nas outras senhoras, acabaram despertando minha curiosidade na juventude. Uma coisa, entretanto, eu concluí já naquela época. Ambas eram igualmente mulheres livres e fascinantes. O que diferenciava as duas situações é que a nossa Simone tinha um discurso justificativo bem construído para suas ações, coisa que estava ausente no caso de Sibyla. Esta última, por não ter os predicados intelectuais necessários, acabou se tornando um saco de pancadas, símbolo da perdição e de ameaça à estabilidade das sagradas famílias da época.

Em verdade, como diriam os filósofos, ontologicamente era a mesma coisa; o que diferenciava as duas situações é o discurso bem elaborado que acaba dando suporte para nossas condutas, ausente no caso de Sibyla, mas presente no caso de Simone.

Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS

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