O Estado que Desembarcou no Cais do Rio
A superioridade da marinha inglesa ficou patente em 1805, quando derrotou as forças franco-espanholas em Trafalgar. A vitória militar encorajou os ingleses à imposição de um novo ataque: exigiram de toda a Europa um Bloqueio Marítimo da França, ao qual os franceses revidaram com o Bloqueio Continental, estabelecido pelo Decreto de Berlim em 1808 e de Milão em 1807. Estava assim montada a separação anglo-francês.
Diante disso, Portugal buscou uma posição neutra com o Tratado de Amiens, de 1802. Mas a proteção do tratado não amparava a fragilidade econômica dos lusitanos, que dependiam dos ingleses. A aristocracia lusa, longe de estar imbuída dos valores nascentes do capitalismo, atestou a própria subordinação à Ilha da Grã-Bretanha por meio do Tratado de Methuem, de 1703, no qual concedeu aos produtos ingleses privilégios de circulação em Portugal, o que destruiu, ainda mais, a incipiente indústria lusitana. A degradação do reino Português sob o governo Bragantino, apoiado por uma classe feudal inepta e corrupta, ficou, então, patente: Portugal assinou rendição econômica sem guerra.
O confronto gerado entre a dependência econômica da Inglaterra e o ultimatum francês expresso no Bloqueio Continental, e concretizado pelas tropas do general francês Junot, obrigou Portugal a assinar, em 22 de setembro de 1807, a Convenção Secreta de Londres, que ? entre outras medidas ? transferiu a Corte Portuguesa para o Brasil.
Em 22 de Janeiro de 1808 (permaneceu em Salvador até 26 de fevereiro quando seguiu para o Rio de Janeiro, onde chegou em 7 de março.), o príncipe regente D. João chegou à cidade de Salvador, na Bahia. Com ele aportou toda alta corte e os órgãos administrativos do Estado português: "os ministérios do Reino, da Guerra e Estrangeiros e o da Marinha e Ultramar; os Conselhos do Estado e o da Fazenda, o Supremo Militar, as Mesas de Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens. A Relação do Rio de Janeiro foi transformada em Casa de Suplicação, tendo funções de tribunal Superior, e (...) Intendência Geral da Polícia" .
Essa administração teve forte atuação, possibilitando:
a) a carta-régia de 28 de janeiro de 1808, que permitiu a abertura dos portos a todos os navios das nações amigas;
b) o alvará de 1° de abril de 1808, que ao revogar a proibição de 1785, permitiu instalação de manufaturas no Brasil;
c) a lei de 16 de dezembro de 1815, que elevou o Brasil a condição de Reino unido a Portugal e Algarves.
É singular na história do Brasil o fato extraordinário, de inexcedível repercussão histórica, de que o povo foi ao porto receber o Estado que chegava. Foi assistir ? em tempos de paz ? ao desembarque de uma máquina de governo pronta, com burocracia constituída, procedimentos azeitados, regimentos estabelecidos e chefias definidas. Tudo arrumado, cerca de 15 mil pessoas , tudo pronto para governar.
O Estado, apesar de recebido com festa, tão logo chegou passou a morar nas casas dos brasileiros, que para isso foram expulsos. "O impacto produzido pela chegada de tanta nobreza sobre a pequena cidade de 46 ruas, 19 largos, 6 becos e 4 travessas, ficou manifesto na violência dos funcionários reais expulsando os antigos moradores de suas casas com a inscrição do símbolo P.R. (Príncipe Regente) nas suas portas, que logo foi apelidado de "Ponha-se na Rua" pela população" .
Um sinal do que viria: a sensação de estar deslocado no próprio lar.
Pois o que se deu a partir de então não foi a construção de um Estado por uma nação, mas foi o Estado ? estrangeiro e colonizador ? que produziu esta nação. Um Estado que não foi plasmado pelas forças autóctones do processo civilizatório, mas transplantado e enxertado numa terra estranha.
O exato contrário do que Alexis de Tocqueville (1805-1859), percebeu na América, que segundo ele "é o único país em que se pode assistir aos desenvolvimentos tranqüilos e naturais de uma sociedade" . Assim, não se construiu no Brasil um arcabouço institucional fruto de costumes, de leis consuetudinárias, do modo autêntico de viver dos brasileiros. Não sem razão, o professor Sérgio Buarque de Holanda reconheceu no livro Raízes do Brasil serem os brasileiros "desterrados em nossa própria terra".
Afinal, as instituições brasileiras são fruto de outra nação. Instituições transpostas, sem a obrigatória ligação com a nossa cultura, nossos valores. Instituições humanas que desde sempre os brasileiros tiveram de engolir. Tornado-se, assim, culturalmente antropofágicos desde o início. Ainda que a clara percepção dessa antropofagia cultural só aflorasse na Semana de Arte Moderna de 1922. Passando, então, a constituir traço cultural determinante, na medida em que a arte brasileira revelou o desconforto do estar estrangeiro. Estrangeiro pela amputação da/na própria terra. Estrangeiro, seja no lugar, seja no momento, reconhecendo o impressionismo das arestas insuspeitadas da realidade nacional. Na qual cabia apenas ao brasileiro forçado à cordialidade "reconhecer o valor necessário do ato hipócrita / Riscar os índios, nada esperar dos pretos" (trecho da canção "O Estrangeiro" integrante do disco "Estrangeiro", de Caetano Veloso, lançado em 1989, pela Polygram, e que tem por capa a pintura de Hélio Eichbauer para cenário da peça de Oswald de Andrade "O Rei da Vela" na montagem do Teatro Oficina, São Paulo, 1967).
E disso resta a questão da identidade, de nosso estrangerismo em nossa própria terra. Questão tão bem tratada por Sérgio Buarque de Holanda na obra Raízes do Brasil :
"A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e outra paisagem. Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e idéias de que somos herdeiros."
Revendo, assim, o otimismo com abordou a nossa originalidade na primeira edição da obra Raízes do Brasil, em 1936:
"Todo estudo compreensivo da sociedade brasileira há de destacar o fato verdadeiramente fundamental de constituirmos o único esforço bem-sucedido, em larga escala, de transplantação da cultura européia para uma zona de clima tropical e subtropical. Sobre território que, povoado com a mesma densidade da Bélgica, chegaria a comportar um número de habitantes igual ao da população atual do globo, vivemos uma experiência sem símile."
A presença do ente estatal se fez sentir na vida nacional pelo dever de aclimatação ao Estado português, que não tinha "relação alguma com a sociedade brasileira, e o seu governo acabou se transformando numa espécie de entidade estranha, que pairava acima da sociedade" .
Soma-se a isso a natureza bifronte, dual, da formação nacional. Se foram mães abandonadas que criaram corajosamente os filhos e filhas desta terra, formando o todo da sociedade. Foram pais ausentes que plasmaram o nosso Estado. Surgiram assim mundos morais não só distintos, mas em contradição: um, a casa (privado), lugar humano e relacional onde vivem pessoas, de unidade centrada na idéia de conjunto; e outro, a rua (pública), lugar despersonalizado, autoritário, hostil, de unidade centrada numa chefia. E há até hoje, como bem aponta o antropólogo Roberto DaMatta, o dilema brasileiro casa X rua.
E o Estado brasileiro age como rua para com o cidadão, ao mesmo tempo em que age como casa ao proteger seus pares internos num corporativismo assemelhado em solidariedade a um compadrio. É o "jeitinho" para os de casa.
Não sem razão, portanto, fracassaram os esforços do ente estatal em assumir o cuidado da sociedade brasileira. Antes e mais até: fracassaram os esforços estatais em ser acreditado como responsável pelos próprios compromissos. E disso bom exemplo a construção da Estação Central do Brasil, que é uma estação ferroviária localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro.
Quando da construção da Central do Brasil, 1858, então chamada "Estrada de Ferro Dom Pedro II", houve uma ameaça de interrupção dos trabalhos porque "o empreiteiro não suportava as confusões dos dirigentes estatais e queria largar tudo, mas mudou de idéia depois que Mauá empenhou seus bens pessoais como garantia da seriedade do governo" .
Não faz, portanto, nem 150 anos completos que uma pessoa física viu-se obrigada a garantir o governo brasileiro para que uma obra, que levava o nome do imperador e ficava no centro da cidade do Rio de Janeiro, fosse concluída. Entende-se porque o capítulo X da obra "O Abolicionismo", de Joaquim Nabuco, é aberto pela norma moral de Eusébio de Queirós: "As nações como os homens devem muito prezar a sua reputação".
Apesar dessa credibilidade do Estado Brasileiro, o influente doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello, erigiu sua concepção de direito administrativo com base em dois princípios :
? Supremacia do interesse público sobre o privado;
? Indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos.
Nota-se, assim, que para Bandeira de Mello não só há um ente conceitual chamado interesse público, como esse é definível, demarcado em suas fronteiras de significado, a ponto de se poder caracterizar distintivamente o propósito norteador e uno a apontar nortes para o agir da máquina estatal.
A administração pública, assim, titulariza saber, ou melhor, definir o que é interesse público. E, essa clareza de percepção conceitual é o fundamento da desigualdade jurídica entre Estado e cidadão. Pois, nunca é pouco lembrar: o direito administrativo é um direito fundado numa desigualdade jurídica, e ? inversamente ao Direito do Trabalho ? uma desigualdade a favor do mais forte, ampliando a assimetria da relação.
O doutrinador Hely Lopes Meirelles, ao diferenciar graus de precariedade entre serviços permitidos e autorizados, concluiu pela menor precariedade dos primeiro, visto serem serviços de utilidade pública e não apenas de interesse da comunidade. Pois, "toda permissão traz implícita a condição de ser, em todo o momento, compatível com o interesse público" . Ao passo que as autorizações são ainda mais precárias, pois seus executores não praticam atos administrativos, tratando-se, apenas, de "um serviço de interesse da comunidade" . Fez, portanto, uma diferenciação entre utilidade pública e interesse da comunidade.
A relação entre Estado e cidadão no Brasil permanece, assim, precipuamente montada na dominação daquele sobre este. O Estado como uma pessoa que se reconhece em autoridade (não em igualdade) sobre os demais, legitimado pela competência para definir o conteúdo inserido no conceito totalitário de interesse público. Desconhecendo, assim, o pluralismo como característica distintiva da democracia. É o Estado do não-diálogo, o Estado autocentrado, o portador único da visão do interesse público.
Referências bibliográficas:
CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do Império. 15ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito Geral e Brasil. Rio de Janeiro: Editora: LUMEN JURIS. 2005
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. José Olympio, 1936, p.3.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1997.
KOSHIBA, Luiz e Denise Manzi Frayze Pereira. História do brasil. São Paulo: Atual Editora, 1991.
MEIRRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo - SP, Malheiros Editores, 1995.
MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo - SP, Malheiros Editores, 1995.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América, Livro I: Leis e Costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
WEISS, Hugo. Enciclopédia Delta de Historia do Brasil. Rio de Janeiro, Delta, v.6, 1966.
Internet:
http://www.fafich.ufmg.br/pae/index_arquivos/Apoio/ACortePortuguesanoBrasil.pdf
http://creaapp.crea-rj.org.br/portal/page?_pageid=34,42817&_dad=portal&_schema=PORTAL
Autor: João Aurélio Mendes Braga De Sousa
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