MEMÓRIA COLETIVA E PERDA DA MEMÓRIA: HALBWACHS E VALSA COM BASHIR.



MEMÓRIA COLETIVA E PERDA DA MEMÓRIA:
HALBWACHS E VALSA COM BASHIR.

Silvon Alves Guimarães
Academia de História ? UFG/Jataí

Resumo:

Este artigo tem como objetivo apresentar algumas das idéias fundamentais de Maurice Halbwachs sobre o trabalho da memória. Faremos também uma abordagem sobre o filme Valsa com Bashir do diretor Ari Folman. Entre as concepções relevantes apresentadas por Halbwachs destacamos a distinção e as relações entre imagem, lembrança e memória, e entre memória individual e memória coletiva; o conceito de confronto de testemunhos. Traçamos um paralelo com o filme, Valsa com Bashir, que trata da busca da memória, analisa o porquê de a memória travar e que relação existe entre os sonhos e as lembranças. As ligações entre o filme, Valsa com Bashir, e as idéias de Halbwachs são bem próximas e nos dão uma visão excepcional sobre o assunto memória.

Palavras Chave: Memória Coletiva; Perda da memória; Halbwachs; Valsa com Bashir; Folman.

Maurice Halbwachs, ao tratar o tema da memória, abrange um assunto que nos últimos anos tem chamado a atenção de muitos. Vários estudos Psicológicos e Médicos têm sido empreendidos no intuito de se entender esta fascinante área de atuação do nosso cérebro. Como a memória começa e como acaba? Que fatores levam indivíduos a sofrerem um bloqueio que os impede de se lembrarem de acontecimentos que um dia fizeram parte de sua vida? É o que procuramos abranger neste artigo.

Halbwachs era Francês, Sociólogo, discípulo de Durkheim, escreveu seus principais trabalhos entre as décadas de 20 e 40. Em uma época em que havia uma interpretação quase que mecânica das obras de Durkheim, Halbwachs faz o caminho inverso e valoriza a concepção Durkheimiana, especialmente no que tange ao aspecto da relação social e mental, fugindo assim das idéias hegemônicas que vigoravam na época.

Nas décadas de 20 e 30, o pensamento em voga era quase sempre de cunho idealista e mecanicista, portanto, é de impressionar que Halbwachs tenha traduzido o trabalho de Durkheim tomando a direção histórica, tomando o caminho para uma história social, num mundo onde a ciência e a história eram campos separados e quase incomunicáveis.

Halbwachs teve a influência da Escola de Strasbourg, que durante as décadas de 20 e 30, mantinha jovens de várias localidades, com o objetivo de estudarem e Pesquisarem, visando uma aproximação entre Franceses e Alemães.

De origem judaico-alemã, Halbwachs, enquanto na Escola de Strasbourg, viveu a experiência que lhe deu uma compreensão especifica e singular dos grupos sociais em diversas épocas, ou seja, a experiência de ser visto como "o outro". "Os jovens de origem judaico-alemã aos olhos dos alemães são franceses; para os franceses, são alemães; para os judeus, não são judeus; para os cristãos, são judeus". Assim, Halbwachs adquiriu a noção exata do que é ser "o outro" e isto muito lhe ajuda no seu trabalho sociológico, histórico e psicológico.

A escola de Strasbourg era de natureza interdisciplinar, o que ajudou a formar especialistas com conhecimento na "disciplina-outra". Da Escola de Strasbourg, surge então a "sociologia historicizada" de Halbwachs, também, é dali que emerge a "história sociologizada" de Lucien Febvre, Marc Bloch e da Nova História. Com esse perfil a Nova História desemboca no estudo das mentalidades e o próprio Halbwachs se torna professor de psicologia social no Collége de France.

As principais obras de Halbwachs são: "Os quadros sociais da memória de 1925, Topografia legendária dos Evangelhos na Terra Santa de 1941 e A memória coletiva" (publicação póstuma) de 1950. A temática seguida por Halbwachs foi à busca do entendimento da formação da consciência social.

A temática deste artigo toma por principal referência o livro "A memória coletiva", onde se destaca a memória do ponto de vista da Psicologia Social.

O filme Valsa com Bashir

O filme Valsa com Bashir é um filme de animação, com duração de 90 minutos, lançado em 2008, com direção de Ari Folman. O assunto abrangido no filme é de natureza chocante e denunciatória: os massacres dos campos de refugiados palestinos no Líbano, Sabra e Shatila, e mostra a participação do exercito Israelense. Embora não houvesse uma participação direta dos soldados Israelenses no massacre, houve a omissão, pois os soldados israelenses estavam à beira dos campos de refugiados, deixaram os "falangistas cristianos libaneses" entrarem nos campos, testemunharam execuções de civis, sabiam o que estava acontecendo, mas demoraram 24h para mandar parar.

O filme começa de maneira leve, quando um amigo de Folman (que dirige e atua no filme) relata um sonho, ou melhor, um pesadelo, que o vem atormentando. Neste momento, Folman, se dá conta de que embora tenha participado da guerra do Líbano, sua memória esta vazia com respeito a este período, ele não se lembra de nada.

O ponto preponderante do filme é a busca que Folman fará para encontrar a sua memória perdida, ele tenta entender o porquê de ter tido este travamento da memória, ao mesmo tempo passa a ter sonhos com o Líbano e tenta entender a relação entre estes sonhos e as lembranças perdidas da guerra.

O ponto culminante do filme, porém, é a denúncia, a condenação clara da atuação do exército israelense nesta guerra, da falta de humanidade de todos os participantes armados de um lado e do outro, dos massacres dos civis, da falta de culpabilidade dos envolvidos. Algumas entrevistas durante o filme mostram a posição de alguns soldados que estavam na primeira linha em relação ao massacre de Sabra e Shatila e mesmo assim não quiseram perceber, não se envolveram, não impediram o acontecimento.

No filme há a predominância de cores sombrias o preto e o cinza, estas cores criam uma atmosfera peculiar estabelecendo assim um clima perfeito para a história. O final do filme deixa bem claro o horror da guerra, com imagens de arquivo dos massacres, os corpos amontoados, homens, mulheres, crianças... Um final duro de ver... Aponta para a seguinte reflexão: Será que a falta de reação em impedir, ou pelo menos tentar impedir o massacre, teria sido a causa da perda de memória de Folman?

Imagem, lembrança, memória

Para Halbwachs o individuo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado por grupos de referência; a memória é sempre construída em grupo, mas é também, sempre, um trabalho do sujeito. Evocamos a memória de outros sobre certo acontecimento para garantir que o que lembramos ou o que presenciamos, tenha sido de fato real, é como se duvidássemos de nós mesmo e só passamos a ter convicção do real mediante a memória coletiva.

Quando temos lembranças que formam a memória, estas estão sempre relacionadas à memória coletiva, ao que determinado grupo presenciou e continua a compartilhar. Então, Halbwachs aponta para o surpreendente fato de que nunca estamos sozinhos. Desta forma nossa memória não é somente nossa, mas é coletiva, pois utilizamos fragmentos de lembranças que são fornecidos por indivíduos diversos, e são estes fragmentos de lembranças que formam a memória. Podemos fazer uma comparação com a montagem de um quebra-cabeça com centenas de peças, cada peça do quebra-cabeça é um fragmento da memória de alguém, o resultado quando reunimos todas as peças é a formação de um quadro completo e cheio de detalhes. Apossamo-nos destas várias peças do quebra-cabeça através das imagens: fotos, filmes, pinturas ou pelo testemunho destas pessoas, através de conversas com elas ou por lermos seus escritos.

O que se imagina então, ser a memória individual, na verdade é a união dos fragmentos das lembranças coletivas. A minha memória, portanto, não é só minha, mas é coletiva, pertence também àqueles que me emprestaram as peças para montar o quebra-cabeça.

Pode-se dizer que a existência de uma comunidade afetiva, a existência de um grupo de referência, e permanecer apegado a esse grupo, a essa comunidade, é o que dá consistência às lembranças, que por sua vez formarão a memória. Para Halbwachs a lembrança é um jogo de "reconhecimento e reconstrução". Existe o "sentimento do já visto", que pode ser descrito como reconhecimento. Temos que, de certo modo, fazer um resgate de eventos que para nós são diferenciados dos demais, ao ponto de merecer nossa atenção especial. Mas de forma alguma tais acontecimentos poderão se repetir na integra, portanto, é preciso que façamos uma reconstrução deste evento, de modo a tentar assemelhar ao que ocorreu naquela ocasião que buscamos.

Sendo assim, tanto o reconhecimento quanto a reconstrução, dependem da existência de um grupo de referência, tendo em vista que as lembranças retomam relações sociais, e não simplesmente idéias ou sentimentos isolados, e que são construídas a partir de um fundamento comum de dados e noções compartilhados. A memória é este trabalho de reconhecimento e reconstrução que atualiza o quadro completo do quebra-cabeça, ou seja, pega cada lembrança e as articula entre si construindo um "quadro social" completo.

No filme Valsa com Bashir a relação: imagem, lembrança, memória, fica bem exposta durante o desenrolar dos acontecimentos. Mais do que o resgate de uma memória, temos um filme que trata do poder imposto por uma imagem, seja para quem recebe ou para quem atua nela. Folman utiliza de características ligadas a documentário participativo, como o uso de entrevistas e é também um documentário performático, pois se trata de uma busca pessoal do diretor Ari Folman que move a pesquisa. Através dos fragmentos de lembranças de outros, Folman, tenta por assim dizer, montar este quebra-cabeça incompleto, que é sua falta de memória.

Conversando com um amigo em um bar, Folman relaciona uma única imagem que tem em sua mente à possibilidade de ter sido conivente ao massacre ocorrido em 1982 durante a guerra entre Israel e Líbano, em que milhares de palestinos foram executados. Voltamos, portanto, ao principio do dilema: achar a memória perdida de Folman a partir desta única e misteriosa imagem, que é reacendida na conversa com seu amigo que também esteve na guerra junto com ele e também tem sonhos, ou podemos dizer pesadelos, que estão diretamente relacionados com a guerra de 1982. Devido a um trauma, Folman não consegue entender onde se situa aquela imagem, que vem em sua mente como um flash, e se tornou para ele uma incógnita.

Confronto de testemunhos

Nossa memória é fortalecida ou enfraquecida pelos testemunhos. Sempre existe na nossa mente a dúvida quanto a si o que lembramos é verdadeiro ou é só uma invenção de nosso cérebro. Halbwachs exemplifica essa questão citando a frase: "não acredito no que vejo". Esta frase indica o conflito interno que envolve dois seres em nós: O primeiro ser é racional, sensível, ele vem testemunhar algo que está vendo, um acontecimento que esta diante de si. Já o segundo ser é um tipo de ser crédulo, ele não presenciou nada, mas com base no que ouviu, no testemunho de outros, formou uma opinião, acredita que algo seja de determinada forma, e esse acontecido-testemunhado, recebe para ele o status de verdadeiro e absoluto. O conflito surge, quando o primeiro ser, o racional, presencia um acontecimento que seja contrário ao que o segundo ser tem como verdade absoluta, O que é verdade agora? O que está diante dos olhos, ou o que se ouviu como testemunho?

As palavras de Halbwachs (1990) completam este raciocínio:

"se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a de outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior, como se uma experiência fosse começada, não somente pela mesma pessoa, mas por várias (p.25)".

A memória tem o importante trabalho de confrontar os diferentes pontos de vista que existem dentro de um individuo. Estes pontos de vista são importantes, pois nos ajuda a ver observar e lembrar. Para ver o observar uma realidade presente, o individuo recorre ao testemunho de sua experiência anterior e ao testemunho de outros que indicam ou destacam aspectos a serem observados, bem como, universos onde localizar o observado.

O confronto de testemunhos somente é possível porque estes têm por fundamento as dimensões do tempo e do espaço. A divisão de tempo permite a constituição de uma lembrança enquanto tal, e sua distinção dentre outras lembranças numa cadeia de recordações. Somente é possível haver este confronto porque as lembranças não se confundem entre si. É como se estivessem devidamente etiquetadas e divididas de acordo com o tempo em que ocorreram, e assim confrontadas podem facilmente serem encaixadas umas nas outras, como as peças de um quebra-cabeça, e dão assim corpo ao trabalho da memória.

Halbwachs mostra, porém, que uma lembrança para ser recordada ou confirmada não depende somente do testemunho de outros que literalmente estiveram presentes no acontecido e agora são capazes de descrever de forma vívida a cena em que estivemos presentes e não lembramos. Ou seja, mesmo colhendo estes vários testemunhos que possibilitam a formação completa do quadro, com detalhes diversos, este ainda não constituiria uma lembrança se faltasse o nosso próprio testemunho. Através do relato de outros, eu pude reconstruir a cena e realmente lá estava eu, tive uma participação ativa no acontecido, mas, a cena não deixou nenhum traço em minha memória. Sendo assim, sem o relato das várias testemunhas esta passagem jamais se constituirá uma lembrança para mim, e estará impossibilitada de integrar a minha memória. Este quadro embora completo, não me traz nenhuma emoção, porque foi construído totalmente por outros, não há elementos neste quadro que me seja familiar, essa imagem não faz parte de meu quadro de conhecimento.

O que fará ou não parte de nossa memória, esta relacionado, como diz Halbwachs, a como tal acontecimento me afetou em relação a outras pessoas. Acontecimentos que são rotineiros, que fazem parte mecanicamente de nossas vidas, aquelas passagem que nem precisamos pensar nelas para cumpri-las, dificilmente se tornarão uma lembrança para nós, pois passamos por elas e as desprezamos, de certo modo é como se dissemos que esses acontecimentos não têm nenhuma função a não ser preencher o espaço/tempo.

Folman, no filme Valsa com Bashir, rapidamente percebe isso, pois ao receber vários testemunhos, consegue até uma visualização das cenas, ou seja, monta o quadro do que ocorreu, mas esta visualização não o ajuda a recordar, é como se as pessoas estivessem lhe contando um filme em que ele não reconhece nada, nem ninguém, falta então a sua peça pessoal no quebra-cabeça. Somente a partir do momento em que ele tiver sua parte na construção da memória é que aqueles acontecimentos farão pra ele sentido e lhe trarão sentimentos.

As cores, os sonhos

A nossa visão possui células com dois pólos, cujo único dendrito é fotossensível, os cones são responsáveis pelas cores e os bastonetes são os que funcionam no escuro. De fato, os bastonetes precisam de muito pouca luz para captar a imagem. Os bastonetes vêem tudo cinza, repleto de tonalidades, é verdade, mas nos trazem informações desprovidas do colorido e por isso obrigam o cérebro a decodificar as emoções de outras maneiras.

Valsa com Bashir começa nos obrigando a usar os bastonetes e obrigando nosso cérebro a se adaptar, a usar outros códigos para interpretar as cenas que se seguem. No começo vemos cães raivosos e cinzentos de várias espécies correndo pela rua. Eles vêm cegos de ódio, sem um alvo definido, como se o próprio ódio lhes bastasse. Os dentes estão arreganhados. Há o som, os ruídos, a integração dos sentidos para se estar alerta. Os cães passam por diversas pessoas sem nome. Fica a expectativa de saber quem será o alvo destes animais cheios de ódio. À medida que vão correndo pela cidade mais cachorros se unem ao grupo até a matilha completar o total de 26. O grupo de 26 cachorros pára na portaria de um prédio e começam a latir. Enfim, um homem lá do alto, aparece na janela, olha rapidamente e some.

Este é um sonho que o amigo de Folman tem todas as noites. Os cães vêm, correm, derrubam e param embaixo de sua janela, Vinte anos depois da guerra e da profusão de imagens captadas por cones e bastonetes o cérebro dá seu jeitinho de dizer que aquelas lembranças continuaram lá e que não se pode simplesmente enterrar eventos da dimensão de uma guerra como se não tivesse ocorrido.

Mas ele não é o personagem principal, é apenas o estopim, o começo de tudo. È ele que chama um amigo no meio da noite para conversar sobre o pesadelo. Esse amigo é Folman, que se dá conta neste momento, de que não se lembra de quase nada de sua participação na guerra. Ele lembra-se dos momentos de folga, mas o perigo em si, ele apagou. Ficou apenas uma memória, uma cena-chave. O protagonista está nu com três amigos na praia, é noite. Sinalizadores amarelos iluminam o céu da cidade destruída. Se há sinalizadores, há soldados, haverá invasão e morte. Eles vestem suas roupas na areia. O protagonista entra na cidade e dezenas de mulheres vestidas de preto correm em sua direção. Existe ai, um forte impacto da imagem, a quebra do negro e dourado da noite, contrastando com o branco pálido do dia, também podemos notar o medo das mulheres correndo quase sem movimento com a captação em flash, com expressões de sofrimento que no filme permanecem caladas, mas que na vida real possuem um grito ensurdecedor.

O interessante nesta cena, que tanto mexe com os sentimentos de quem o assiste é que esta lembrança bela que move todo o filme é falsa, é uma memória construída. Folman sofreu um travamento da memória em relação a sua participação na guerra de Israel contra o Líbano e o seu cérebro criou um mecanismo, uma imagem de proteção contra o trauma que Folman sofreu.

O filme explora as cores que estão ligadas a um significado psicológico para o ser humano, estas cores neutras são impactantes sobre o cenário e afetam diretamente o sentido das lembranças. Em certos aspectos o diretor tenta fazer com que estejamos dentro da mente dos atores e participemos diretamente de suas memórias e da sua perda de memória, e somos arremetidos a esse ambiente justamente através das cores. Assim, quando vemos os cães no início do filme, em tons cinzentos, temos uma simbologia do medo ou da depressão e o impacto sobre quem assiste é tão grande que gera certa ansiedade para se saber o alvo dos cães, há certo horror que é transmitido pelo aspecto agourento das cores. O cérebro é capaz de entender os estímulos das cores e ligar o seu significado a uma determinada lembrança, mesmo que esta não seja plenamente entendida por nós.

Em um cenário sombrio, os sonhos e pensamentos carregados e densos que estão na mente dos ex-guerrilheiros, e nós acompanhamos, são claros e a combinação de cores não chega a ser pesada. Um exemplo é o sonho bucólico sobre a mulher gigante que salva um dos combatentes em um barco. Neste sonho específico se usa as cores no tom esverdeado que nos dão um sentido de esperança e calma. O barco em que estava é destruído, mas ele esta tranqüilo está calmo, até mesmo alheio àquela situação de guerra. O tom verde-escuro que aparece na cena está diretamente ligado ao masculino, lembra grandeza, como a de um oceano, simbolizando tudo que é viril, tudo que se impõe. A mulher gigante é retratada em verde-claro, o que transmite a idéia de contentamento e proteção. As cores são formas de o cérebro processar o evento que foi bem traumático, buscando certo alívio ou uma amenização da situação vivida. A como que uma tentativa de escape da realidade dura com que os combatentes se confrontam.

Folman passa a ter continuamente o mesmo sonho, que para ele permanece uma incógnita. Ele não consegue ver a sua participação na guerra a partir daquele cenário do sonho. Sonhos recorrentes são um alerta do inconsciente quanto à necessidade de resolver algo interno ou externo. É a forma do si-mesmo, via inconsciente, enfatizar um problema não resolvido, um padrão de comportamento não superado, uma situação que está sendo evitada ou alguma coisa ainda não aprendida. Quando isso ocorre, a pessoa terá sonhos contendo sempre os mesmos elementos simbólicos, em uma tentativa quase que desesperada de encontrar alívio ao mal estar que um evento lhe proporciona.

O sonho repetitivo de Folman está sempre relacionado com água, ele e mais dois companheiros estão no mar e observam as luzes amarelas ao fundo. Sonhos envolvendo água estão ligados a algum impedimento, a obstáculos a se prosseguir nas lembranças que podem formar uma memória. A água então simboliza o inconsciente que quer transmitir os sentimentos e as emoções que tem haver com o trauma que ele teve na guerra. As águas representam, neste caso, a dificuldade que ele tem de se lembrar do que aconteceu, a sua experiência fica profundamente marcada em seu ser, mas para poupá-lo do trauma o cérebro faz como que uma troca, usa cores que demonstram os aspectos sombrios e perigosos da situação e utiliza de elementos que são interpretados pelo próprio cérebro como um sinal de não prossiga, pare, lembrança proibida.

A perda da memória de Folman estava relacionada aos horrores do massacre, a idéia de ter sido conivente com tais atrocidades era dolorosa demais para ele. Para prosseguir, Folman precisaria esvaziar-se dos complexos que haviam se formado referentes a este evento. Parece que ele consegue encontrar elementos que o ajudaram a transpor esse obstáculo, talvez nas suas entrevistas pode perceber que mais pessoas se encontravam na mesma situação que ele, isto parece ter dado certo alívio e munido de força conseguir prosseguir nas suas recordações e então no final do filme ele ultrapassa a barreira das mulheres vestidas de preto, que vem em seu encontro e finalmente descobre qual o motivo do choro destas mulheres, e o motivo da sua perda de memória: "centenas de corpos amontoados, jogados pelas ruas". era o horror do massacre.

Memória individual e memória coletiva

Até aqui o que foi exposto deixa claro que não é possível uma memória exclusiva, que seja só de um individuo, pois para se constituir memória, as lembranças têm que formar um quadro completo, onde várias pessoas dêem sua contribuição e individualmente eu possa também ter peças para completar este quebra-cabeça, do contrário seriam lembranças vagas que não teriam nenhuma influência em mim, não mexeria com as minhas emoções.

Então podemos entender a memória como sendo o trabalho que um grupo social realiza articulando e localizando as lembranças em quadros sociais comuns. Monta-se um quadro com várias peças se encaixando umas nas outras e assim teremos o quadro completo, que Halbwachs chama de memória coletiva.

Uma idéia expressa por Duvignaud (1990) diz o seguinte:

"é impossível conceber o problema da evocação e da localização das lembranças se não tomamos para o ponto de aplicação os quadros sociais reais que servem de pontos de referência nesta reconstrução que chamamos memória" (p.9-10).

Este conceito de Duvignaud é justificado enfaticamente por Halbwachs ao fazer distinção e relacionar memória individual e memória coletiva.

A memória coletiva pega as imagens do passado e os traz para o presente fazendo uma reconstrução dos acontecimentos, de modo que estes se aproximem ao máximo do real, e possa assim transmitir ao individuo a importância que um determinado fato teve em sua vida. Essas lembranças individuais, que sofrem uma articulação em nossa mente irão se constituir em memória o que as manterá gravadas ali, com a capacidade de influenciar os conceitos e as atitudes do individuo.

Halbwachs atribui à memória coletiva um lugar de destaque nos processos históricos, sem essa memória coletiva não haveria como formar um quadro real e completo dos acontecimentos e o processo histórico ficaria no mínimo fragmentado. Essa concepção foi assim sintetizada por Cardini (1998):

"(...) a grande protagonista da história é a memória coletiva, que tece e retece, continuamente, aquilo que o tempo cancela e que, com a sua incansável obra de mistificação, redefinição e reinvenção, re-funda e requalifica continuamente um passado que, de outra forma, correria o risco de morrer definitivamente ou de permanecer irremediavelmente desconhecido" (p.xii).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADOROCINEMA. Disponível em: WWW.adorocinema.com/filmes/valsa-com-bashir/

CARDINI, F. Un socilogo al Santo Sepolcro. In: HALBWACHS, M. Memorie di Terrasanta. Veneza, Ed. Arsenale, 1988. P. vii-xxiv.

DUVIGNAUD, J. Prefácio. In: HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. p.9-17.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo, Centauro, 2006. Tradução de: La Mémorie collective dês musiciens, La Mémorie collective.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. Tradução de: La Mémorie collective.

FILMES DE CINEMA.COM. BR. disponível em: WWW.filmesdecinema.com.br/filme-valsa-com-bashir-5839.

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Vol. 1 e 2. São Paulo: Círculo do Livro. Tradução de Walderedo Ismael de Oliveira e revisão de Vera Ribeiro. ¬

Autor: Silvon Alves Guimaraes


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