O Anti-romantismo De Memórias De Um Sargento De Milícias



INTRODUÇÃO

Manuel Antônio de Almeida, contemporâneo de José de Alencar, Casimiro de Abreu, dentre outros, destaca-se pelo interesse e confusão que desperta nos estudiosos da escola literária que sua obra é enquadrada, o Romantismo.

Esse artigo visa discutir uma classificação literária convincente da obra de Manuel Antônio de Almeida, visto que esse texto tem causado polêmica quanto a ser um romance romântico, como é freqüentemente classificado. Esse estudo foi feito por meio da análise da linguagem, comportamentos sociais e estilo, contidos em fragmentos do romance referido.

A obra é todo um conjunto de particularidades do autor, que desenvolve a histórica sob a ótica de um estilo literário diferente àquele vigente. Memórias de um sargento de Milícias se configura como um desvio na história do romance brasileiro, pois se lança com um estilo diferente, renovado, rompendo com a tradição romântica.

Tendo em vista tal objetivo, nos atemos ainda ao estudo do Romantismo enquanto escola literária, a fim de identificarmos a ausência de suas particularidades na obra.

Como suporte teórico para a elaboração desse estudo, recorremos a alguns estudiosos sobre o autor, obra e escola literária. A saber: Mário de Andrade (1978), Antônio Cândido (1978), José Veríssimo (1978), Alfredo Bosi (1994), e Afrânio Coutinho (s/d).

Nosso artigo está dividido em duas sessões: na primeira, MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS E A CRÍTICA, levantaremos a crítica de três estudiosos da obra. A segunda, UM ROMANCE ANTI-ROMÂNTICO, demonstraremos a ausência de características românticas na referida obra, concretizando o objetivo central do nosso artigo.

A edição de Memórias por nós utilizada foi a autorizada do Instituto Nacional do Livro, da Edições de ouro, São Paulo s/d.

I - MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS E A CRÍTICA.

A relação estabelecida entre Memórias de um sargento de milícias é, no mínimo, curiosa. Comenta-se que a obra, inicialmente publicada em folhetim, não foi sequer resenhada. O sucesso do romance só teve seu início, de fato, com o início do Realismo, suscitando, ao longo desse tempo, opiniões adversas sobre o referido romance, voltadas em sua grande parte para a análise da estilística.

"Esse estilo incorreto, descosido e solto, de uma simplicidade que é trivial, de um caráter sem feição, nem relevo, não é à época imputável e sendo próprio ao seu autor é o maior demérito de um livro que, e nenhuma ironia encobre o meu pensamento, para ser um dos mais belos da nossa literatura só lhe falta ser bem escrito" (José Veríssimo, 1978:294).

Para Veríssimo, Memórias não deve ser considerado uma obra-prima, devido às imperfeições, por ele reconhecidas, existentes no livro: a ausência de uma linguagem original na sua novidade, falta do talento do autor em observar, e presença de uma forma não artística, não admirável.

Entretanto, embora seja relevante o comentário de José Veríssimo, comprovaremos a afirmação dada anteriormente, quanto às divergências de opiniões suscitadas pelo livro.

"É aleive tradicional atirado sobre o artista, que ele escrevia mal. A expressividade do trecho acima transcrito não é de mau escritor, apesar da abundância inútil dos possessivos (...) Era sim um desleixado de linguagem, mas nem por isso deixava de ser um vigoroso estilista" (Mário de Andrade, 1978: 310).

As opiniões adversas tampouco restringem-se a teóricos diferentes. O próprio Veríssimo afirma que, apesar dessas fraquezas e defeitos, o livro apresenta qualidades que o cedem um lugar distinto: a feição profundamente brasileira.

"Apesar disso, não obstante estas imperfeições da linguagem e da ação, e menores máculas que não fora difícil esmiuçar, eu considero-o um dos mais característicos da nossa literatura, um dos mais nacionais que tenhamos, um dos que menos intencional e mais naturalmente nos dão aquela impressão de nacionalismo a que no começo aludi". (José Veríssimo, 303).

Esse caráter de literatura nacional, observado por Veríssimo, se dá pelo fato de Memórias de um sargento de milícias ser uma representação da sociedade carioca, tratando com objetividade os seus costumes e hábitos, sendo atribuído à obra, portanto, a idéia de romance documentário. Esta riqueza de costumes é considerada, por Mário Andrade, o grande mérito de Memórias de um sargento de milícias. Quanto a esse aspecto, Andrade observa a reprodução dessa tradição no referido romance.

O romance está cheio referências musicais de grande interesse documental. Enumera instrumentos, descreve danças, conta o que era "a música de barbeiros", nomeia as modinhas mais populares do tempo". (Mário de Andrade, 1978: 307).

Essas análises, por diversas vezes adversas, culminam em um ponto: entender a real classificação literária de Memórias de um sargento de milícias, por sinal o foco do nosso trabalho.

É fato que a classificação literária de um livro concede uma prévia sobre o estilo e ideologia do mesmo. O grande marco de Memórias consta aí, visto que, a respeito do que já foi dito, a obra pouco tem a ver com a escola literária na qual foi enquadrada.

O romance estudado é marcado pelas contradições, presentes em vários aspectos, sendo necessário ressaltar, nesse momento, as divergências existentes entre os críticos, visto que é o título da nossa sessão. Esses contrastes fazem de Memórias uma obra especial, impregnada de um mistério, uma indefinição, que agrada ou não seu leitor. Essa capacidade de gerar polêmica é o grande trunfo de Manuel Antônio de Almeida em seu único romance.

Após uma breve análise do nosso objeto de estudo, seguido sob a visão de dois conceituados teóricos, José Veríssimo e Mário de Andrade, convém partir para a sessão II, em que encontra-se o núcleo de nosso artigo.

II- O ANTI-ROMANTISMO DE MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS

Na segunda metade do século XIX, o Brasil passava por mudanças políticas e econômicas. Foi nesse contexto histórico, meio à independência já consolidada, que ganha força o Romantismo no Brasil.

Como toda escola literária, o romantismo trouxe consigo uma série de características próprias: imaginação criadora, subjetivismo, evasão, senso de mistério, consciência da solidão, reformismo, sonho, fé, exagero, sentimentalismo, ânsia de glória, importância da paisagem, gosto pelas ruínas, gosto pelo noturno, idealização da mulher, função sacralizadora da arte.

A partir daí, surge a geração ultra-romântica, integrada por Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, entre outros. Em meio às esses romances, Manuel Antônio de Almeida publica Memórias de uma sargento de milícias.

Embora escrito em pleno Romantismo, Memórias apresenta características diferentes a essa escola literária. Manuel Antônio de Almeida transgride as concepções literárias da época.

O primeiro fato a ser observado na obra é a ausência do sentimentalismo exagerado.

"Tratava-se de uma cigana; o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria, e das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a esse respeito melhor aquinhoado; mas o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha." (idem, p. 31).

Percebe-se nesse excerto da obra uma desvalorização do sentimentalismo, do ultra-romantismo, caracterizados pela ironia, tendendo para a gozação. Essa, por sinal, é uma tendência do livro, que segue uma linha cômica. O autor chega, num marco de sua ousadia, a satirizar o início do romance dos pais do personagem principal.

"(...) O Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu envergonhada com o gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda." (Idem, p.17).

Além da sátira, é notável a presença de uma linguagem desleixada. Não lhe escapava pobres, nobres ou religiosos. A antiga linguagem rebuscada é substituída pela linguagem simples, coloquial, uma mera reprodução da fala dos personagens, sem o excessivo cuidado do autor em torná-la rebuscada, conferindo à narrativa um tom despretensioso e espontâneo. Pela primeira vez na literatura brasileira a língua falada é reproduzida naturalmente.

"- Já... Já... senhora intrometida com a vida alheia... já sabe o padre-nosso, e eu faço rezar todas as noites um pelo seu defunto marido que está a esta hora dando couces no inferno!...

-Hein?(...) Pois agora saiba, porque eu cá não tenho papas na língua, que o tal seu afilhado das dúzias é um pedaço de malcriadão grande, que há de desonrar as barbas de quem o criou..." (Idem, p.58)

Quanto à linguagem, percebe-se ainda a interação entre leitor e narrador. Este, por sinal, é onisciente e, apesar de tecer comentários quanto às situações, não interfere na história do romance.

Outro ponto a ser comentado é a questão da mulher na obra. Aqui extermina-se a mulher idealizada. Isto se reforça com a própria descrição de Vidinha, que veio a se tornar namorada de Leonardo.

"Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve: um soprozinho por brando que fosse, a fazia revoar, e voava e revoava na direção de quantos sopros por ela passassem; isto quer dizer, em linguagem chã e despida dos trejeitos da retórica, que ela era uma formidável namoradeira, como hoje se diz, para não dizer lambeta, como se dizia naquele tempo" (Idem, p.149).

Até o momento, evitamos usar neste artigo a expressão "herói" para designar o nosso personagem principal, o Leonardo. Entramos em um outro ponto de análise da obra. O personagem está mais para um anti-herói. Por diversas vezes sua figura é ofuscada pela de outros personagens da trama. Inicialmente é apontado como traquina, desordeiro e vingativo. Deixa-se levar pelo meio em que vive. Há uma ruptura com a idéia do herói idealizado no Romantismo. Leonardo seria o primeiro malandro brasileiro.

Uma característica forte é a malandragem contida nos personagens, e não apenas no nosso anti-herói. Segundo Antônio Cândido, a obra é estruturada com a relação/oposição entre Ordem e Desordem, apresentando uma análise crítica e irônica dos costumes morais.

Nesse sentido, a ordem seria uma representação da elite, que controla as regras. Contrapondo esse conceito, estaria a desordem, ocupada pelas camadas populares. A malandragem, viria não como adjetivo próprio de uma determinada classe, mas sim uma característica própria de todos. A ordem e a desordem seria caracterizada pelo bem e pelo mal.

É importante ressaltar a presença das camadas populares na obra, que é uma caricatura, um reflexo da sociedade da época. Isso se comprova quando percebemos que boa parte dos personagens não possuem nomes próprios, são identificados pela profissão. A exemplo temos major Vidigal, O Reverendo, a parteira, o barbeiro, Maria-da-hortaliça.

Alguns teóricos insistem em afirmar que Memórias de um sargento de milícias se configura como um romance avant la lettre, precursor do Realismo, visto que o romance referido reflete uma suposta realidade. No entanto , não se encontram nas Memórias algumas características realistas não são evidenciadas no romance: objetividade do narrador, a análise psicológica, a busca pela perfeição formal, nos levando a descartar então a possibilidade de enquadrar o livro no Realismo.

 

Sobre esse assunto, Afrânio Coutinho afirma mais.

"Muito se tem dito acerca da sua natureza de romance realista avant la lettre, de sua condição de precursor da ficção realista. Na verdade, essa alegação é um esforço de supervalorização a partir de um nacionalismo mal-entendido, que procura emprestar ao romancista brasileiro uma antecipação do realismo à francesa."

Memórias de um sargento de milícias é apresentado, neste artigo, como um romance anti-romântico. No entanto, ainda que descaracterize ou contradiga nosso artigo, é necessário afirmar que o final da obra assume, no final, uma postura romântica, quando Leonardo assume seu posto e casa-se com Luisinha. Por essa razão, alguns estudiosos afirmam que o romance é romântico sim, apenas assume uma postura mais excêntrica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fato que Memórias de um sargento de milícias foge às tendências do Romantismo, como geralmente é classificado. Essa classificação só é plausível quando analisa-se a época da publicação, em uma análise puramente cronológica.

Do ponto de vista da estilística, é necessário que haja uma reclassificação da obra, que tende para o anti-romantismo. Essa ausência de Romantismo é evidenciado a todo o tempo, seja na linguagem ou nos comportamentos sociais.

Apesar do final supostamente romântico, é impossível enquadrar a obra no Romantismo, visto que há a ausência de características marcantes deste, como o excesso, subjetivismo, fantasia. Memórias, ao contrário, é lacônico, objetivo, realista, não sendo este último a escola literária, mas sim adjetivo.

Muito especula-se na necessidade de enquadrar o romance no Realismo. No entanto, diante das diferenças técnicas e ideológicas, essa é uma classificação descabida.

O que sabemos, e isso é certo, é eu necessitamos de uma reclassificação convincente da obra Memórias de uma sargento de milícias. Em todo o caso, em nosso artigo, devido às particularidades do romance em relação à estilística, preferimos encerrar considerando o livro apenas como anti-romântico, ao invés de enquadrá-lo em alguma escola literária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ANDRADE, Mário de. "Introdução", in Memórias de um sargento de milícias. ALMEIDA, Antônio Manuel de. Edição crítica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro: LTC, 1978.
  • VERÍSSIMO, José. Um velho romance brasileiro, in Memórias de um sargento de milícias. ALMEIDA, Antônio Manuel de. Edição crítica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro: LTC, 1978.
  • CÂNDIDO, Antônio. A dialética da malandragem, in Memórias de um sargento de milícias. ALMEIDA, Antônio Manuel de. Edição crítica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro: LTC, 1978.
  • BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 41ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

Autor: Tarcila Muniz


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