Um beijo roubado.



Dar um beijo é a coisa mais prolixa que fazemos. Observando a mim mesma constatei que existem beijos que não são de fato trocados. E, isso talvez apontasse a existência de um beijo guardado, que agente nem dá conta que existe, mas somente percebe a sua recusa. Que intenções eram essas mobilizadas na prática de economia de um ósculo? Percebi que estando diante de um mundo de apelos superficiais e passageiros resistimos na tentativa de estabelecer um cotidiano de sacralidades. Um beijo tímido pode dizer muitas coisas, ocultar desejos não confessados, frágil ele se acanha ao aparecer. Tem medo da recusa. Tem medo de ser rejeitado é mais fácil seguir na mesmice, no conhecido, no anteriormente tateado e construído.
Coisas mundanas, cansativas e intermináveis que precisamos fazer, mas que agimos da mesma forma, nunca achando tempo para resolver ou acabar. O tempo do agora é o tempo do presente, o tempo do fazer que elimina pendências e deixa espaço para o novo entrar. Esbarramos quase sempre no tempo para postergar, no tempo que se repete, o tempo das mesmices. Por algum motivo nos esquecemos de fazer aquelas ações humanas mais básicas, que aprendemos desde que nascemos como ver, sentir, escutar, tocar, amar, arriscar, cuidar com as raízes atadas ao presente e viver cada dia, como um dia novo.
Perdemos esse olhar infantil sobre a vida e nos engessamos em nossas certezas e em nossos medos. Recolhemos-nos em nossas dores e em nossas amarguras e passamos a ter os olhos abertos, mas não vemos. Os ouvidos apurados, mas não escutamos. E ai, o coração pára de acolher e doar. Deixamos de trocar com a vida o que ela tem de mais sagrado que é a oportunidade de um novo dia e de seu estranhamento. Aprendemos a nos proteger e não arriscamos mais. Passamos a poupar tudo. E, economizamos até na alma. E o que antes era abundante fica escasso, o que era grande fica pequeno, o que era brilhoso se apaga. E, ainda nos perguntamos pela ausência de pessoas especiais em nossas vidas. Existem muitas, e seus nomes formam uma legião.
Então o que fazemos com estas pessoas especiais é deixá-las seguir de maneira conhecida dizemos a ela o que devem ser, e qual será o seu lugar em nossas vidas. Atribuímos a ela um status a enquadramos em padrões conhecidos fixamos uma moldura e aguardamos a melhor posse. Por vezes queremos que o novo seja tudo aquilo que sempre imaginamos, expectativas homéricas que nos frustram, sonhos de crianças que jaz na recusa da realidade. Assim agindo queremos que elas sejam a nossa panacéia. Queremos que elas sejam o que agente quiser.
Perdemos-nos delas e elas se perdem em nós. Esquecemos de novo, que ninguém muda ninguém e que amar e cuidar tem haver muito mais com a entrega, com a doação, com a perda do eu para permitir surgir um terceiro do que com medo e inseguranças, mágoas e rancores. Pessoas especiais nos ensinam isso com muita propriedade. Elas nos fazem refletir sobre a vida e nossas escolhas. Apesar disso, elas não curam as feridas de uma vida, mas a aliviam. Elas não apagam as tristezas, mas se emprestam a nos num abandono curandeiro e sagrado com suas palavras, seus sentimentos, seus braços e corpo inteiro vão aos poucos suavizando as cicatrizes, nos distraindo diante da dor. E, sem perceber vamos nos deixando abertos para um outro amanhecer. Pessoas especiais não têm hora marcada para aparecer. Podemos encontrá-las sentadas no banco de uma praça. Podemos encontrá-las num beijo que decidimos dar a alguém, um beijo guardado. Estas pessoas são o que são e por isso gostamos tanto delas. E chegam sem avisar, sem anunciar e quando vemos invadem nossa cartografia pessoal. Erguem novas rotas, traçam trilhas onde só existiam paisagens, pavimentam novos caminhos. A entrega de um beijo deveria ser assim, nos fazer acolher o desconhecido. Se um beijo pode ser guardado junto a sentimentos tão nobres como o amor e a esperança então a ?entrega de um beijo? deveria significar uma redenção total, inteira e infinita ao amor.
O mal que a ausência da troca de um beijo nos faz é apontar o medo que temos de novos relacionamentos e possibilidades. Para se haver a novidade é necessário uma entrega, a abertura para uma sensação de estranhamento de desconhecido que somente usufruímos se nos permitirmos abrir a janela para o vento do outro dia entrar. As relações terminam quando as tristezas são maiores que as alegrias, os desencontros maiores que os encontros, a discórdia mais freqüente que a concórdia. Ele chega ao fim quando desistimos dele, nos cansamos dos mesmos erros, das promessas não compridas, dos sonhos desfeitos, dos zelos subjulgados, dos afetos mau cuidados. O fim de um relacionamento amoroso sempre pressupõe o começo de novos rearranjos afetivos. Por isso, em linguagem especializada se diz que um desamor se cura com outro amor.
Nas entrelinhas de minha vida encontro o que sepulta e sepultou minhas melhores intenções, o medo. O medo nos paralisa em vez de nos abrir a novas experiências, a novas possibilidades, a enfrentar desafios ao em vez de escolhemos nos fixar em atitudes petrificadas, comportamentos esclerosados, valores e sentimentos minoritários, crenças egoístas e idéias conhecidas. Um beijo doado pode ser inspirador para novas possibilidades de si mesmo e de relacionamentos. Se permita doar-se de novo e veja o que o mundo te reserva. Distribua beijos e sorrisos, acolha o diferente, permita ao novo plantar uma semente, receba um beijo e veja o que pode acontecer. Faça de suas mágoas e sofrimentos não o fim de potenciais e experiências, mas o começo, o início de novas possibilidades de si mesma. Não se permita definir como uma palavra de dicionário, mas se deixe ver na multiplicidade de sentidos e significados que somente a vida vivida pode trazer. Um beijo guardado é uma forma imatura de aprender a viver. Protegemos-nos, porque sofremos e não queremos mais sentir a dor que sentimos, anteriormente, não percebemos que com essa atitude selamos a potencialidade de todos os nossos futuros relacionamentos afetivos. Um beijo guardado pode ser fonte inesgotável de potencial e transformação em nossas vidas se nos permitirmos acolher o diferente e tudo o que ele pode trazer. Aprendemos mais e melhor quanto mais vivermos. E viver é uma eterna abertura para o estranhamento e o diferente no acolhimento de cada fim de tarde, no despontar de novos desafios e incertezas.
Dor e sofrimento não podem deixar de ser vividos são processos biológicos naturais da vida humana. Mas é de nossa escolha lhe atribuir menos peso e importância do que as benesses que o dia traz. Aceitá-los como inerentes ao processo da existência é reconhecer logradouros internos de grande beleza. Cada lágrima derrubada é testemunho de nosso labutar interno, de nossos embates e fala do que somos e das escolhas que fizemos, do melhor e do pior de nós mesmos. Já ouvi dizer que se aprender pela dor ou pelo amor. Gostaria de aprender pelo amor, mas o que existe de estranho em mim insiste, por vezes, a seguir outro caminho. Só peço então que as lágrimas sejam breves e profundas desenhando em minha geografia, rios abundantes que inundam terras antes estéril para deixar frutificar sementes e deixar vir as flores.

Autor: Ana Maria Silva


Artigos Relacionados


O Beijo

O Beijo

Que Beijo

Beijo

Afagos De Amor!!!!!!!!!

O Amor.

Perdas E Ganhos