Portugal e EUA: apontamentos históricos sobre a liberdade de expressão nos dois países



A liberdade de expressão em Portugal e nos EUA: alguns apontamentos históricos

Com o objetivo de verificarmos algumas peculiaridades dos assuntos ligados à liberdade de expressão e ao sigilo da fonte no exterior, escolhemos Portugal e EUA para tecer algumas considerações. Por razões históricas, Portugal tem sua importância na medida em que transmitiu comandos jurídicos por meio da colonização e da influência em nossa legislação. De maneira mais moderna, os EUA, também, elaboraram legislação sobre o tema com base nas lutas pela liberdade de expressão e elevaram o tema à Constituição por meio da Primeira Emenda Constitucional dos EUA.
Tratam-se de duas realidades jurídicas estrangeiras a respeito da proteção constitucional da liberdade de manifestação do pensamento que nos servem como referência para apresentar semelhanças e diferenças entre o tratamento jurídico dado ao assunto no exterior, a Constituição brasileira e as decisões dos nossos Tribunais Superiores.
Segundo o autor português Rogério dos Santos, em Portugal, nos anos 90, "as fontes anônimas se tornaram símbolo do jornalismo político". Ao se sentirem confortáveis diante da proteção do anonimato, os políticos aproveitaram a situação, enquanto os jornalistas, por sua vez, também se sentiam à vontade para legitimar pontos de vista por meio do jornalismo. Ressaltamos, nessa postura, um dos desvios éticos mais graves cometidos na profissão.
Rogério avalia que, de uns anos para cá, houve uma significativa mudança nesse cenário, especialmente na área política. Aquele jornalismo ultrapassado, baseado no generalismo, na descrição exagerada e no excesso de longas citações dos políticos deu lugar à análise crítica e à especialização.
Nos EUA, o que nos chama bastante a atenção são as seguidas fraudes jornalísticas e o posicionamento radical dos norte-americanos em relação à ampla (e irrestrita) liberdade de imprensa, o que dá margem, por exemplo, a uma intensa discussão sobre os limites da pornografia divulgados pelo meios de comunicação norte-americanos.
Em 2006, o constitucionalista Daniel Sarmento abordou o tema em seu livro Livres e Iguais - Estudos de Direito Constitucional, em especial no artigo A Liberdade de Expressão e o Problema do Hate Speech.
Segundo o autor, "temas ligados à fixação de limites à liberdade de expressão como o relacionamento à proteção, ou não, de manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivados por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual, dentre outros fatores normalmente são estudados sob o rótulo de "hate speech". (SARMENTO, 2006, p. 208)
No artigo, o autor destaca preocupações dos norte-americanos em relação à liberdade de expressão sob o ponto de vista das minorias e de assuntos austeros como racismo, pornografia, anti-semitismo e exclusão de todas as ordens. Suas considerações sobre como os EUA vêem a difusão da pornografia pela mídia nos remetem ao ensaio do filósofo do Direito, Dworkin (2005), cujo tema é Temos direito à pornografia?
Entre seus principais argumentos, Daniel Sarmento traz à tona a importância da ponderação entre os valores constitucionais. Segundo Daniel, "a liberdade de expressão não existe só para proteger as opiniões que estão de acordo com os valores nutridos pela maioria, mas também aquelas que chocam e agridem". (SARMENTO, 2006, p.214).
Segundo o autor, a liberdade de expressão jamais poderá se tornar refém do politicamente correto e argumenta:

(...) por que esse modo de pensar é problemático? Porque na nossa opinião, quando ele é realmente aplicado, não se dá à liberdade de expressão o peso que ela mereceria ter na solução deste tipo de questão. Vejamos um caso concreto: O Mercador de Veneza, obra prima de Shakespeare. Quem já leu ou assistiu a esta peça, sabe que ela é profundamente anti-semita. Shylock, o mercador, é um judeu usurário, vil, vingativo e avarento, que exige a execução de uma garantia de dívida que lhe dá o direito de cortar uma libra de carne do peito de Antônio. Colocaríamos então a peça de Shakespeare num Index de obras proibidas, vendendo as suas encenações e privando as futuras gerações do acesso a uma das maravilhas da literatura universal? (SARMENTO, 2006, p.259, grifo do autor)

Assim como a Constituição brasileira, diversos são os ordenamentos jurídicos no mundo que contemplam a liberdade de expressão do pensamento em sua Lei Maior. Tais documentos são muito anteriores à Carta de 1988. Conseqüentemente, verificamos que sua observância pelo legislador brasileiro serviu de grande inspiração à nossa realidade jurídica.
Ao considerarmos as particularidades históricas de cada país que influenciaram seus legisladores, percebemos que um dos aspectos mais comuns entre várias constituições é a preocupação em garantir a liberdade de expressão. Esses países parecem ter sofrido, no passado político que antecedeu a promulgação da sua Constituição, restrições, censura e outras limitações ao livre direito de se expressarem. Evidente, portanto, que o desrespeito, a opressão e as diversas tentativas de controle do trabalho da imprensa não são fatos recentes, tão pouco, isolados.
A movimentação política para mudar o rumo das circunstâncias começou na última década dos anos de 1600.
Em 1695, os ingleses tornaram sem efeito o ato que estabelecia a censura denominado Licensing Act.
Ainda em 1700 havia empecilhos ao livre trabalho da imprensa. Este é o momento em que surge a Declaração dos Direitos do Bom Povo da Virgínia, ou Declaração de Direitos Fundamentais, em 12 de junho de 1776. Nela aparece a primeira manifestação da liberdade de pensamento por meio da imprensa, em seu art.14: "a liberdade de imprensa é um dos baluartes da liberdade e jamais pode ser restringida, senão por um governo despótico".
Duas décadas depois, após a Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada em 2 de outubro de 1789, consagrou em seu art.11, inc.XI: "A livre comunicação do pensamento e de opinião é um dos direitos mais preciosos do homem, todo cidadão pode pois falar, escrever, imprimir livremente, salvo quando tiver que responder do abuso desta liberdade nos casos previstos pela lei."
Entre 1787 e 1791, temos dois grandes marcos das liberdades individuais firmadas na legislação dos EUA: primeiramente, a promulgação da Constituição dos EUA. Algum tempo depois, a Declaração de Direitos, firmada em 1791.
Saltando para 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em resolução da III Sessão Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas, foi expressa:

Art. XIV ? Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios independentemente de fronteiras.
Art. XVIII ? Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

A partir de 1948, começaram a surgir textos jurídicos que firmavam o direito de informação e garantiam a liberdade de imprensa. Aos poucos, começam a aparecer, também, os primeiros códigos éticos da profissão de jornalista.
Por outro lado, o crescimento acelerado dos meios de comunicação levou os governos a adotarem medidas que exigissem maior responsabilidade dos comunicadores, uma vez que acabava de nascer um dos valores básicos da organização política e democrática dos países. A partir de então, o direito à livre manifestação do pensamento por meio da imprensa mereceu a atenção de diversas leis fundamentais modernas.
Toda constituição acaba sendo resultante de certo momento de inquietação histórica e política de um povo. Muitas vezes, por si só, a situação política em que vivem nos anos que antecedem sua promulgação acabam explicando, ou ao menos esclarecendo muito, a respeito das prioridades que mereceram tratamento constitucional pelo legislador.
Tendo em vista essas particularidades, verificamos que a liberdade de expressão, tal qual as liberdades individuais, variam bastante, conforme o país que se observa, uma vez que adquirem, inevitavelmente, as especificidades de acordo com a cultura de cada povo.
A Constituição da República Portuguesa apresenta um rol de direitos constitucionais bastante detalhado sobre o direito à liberdade de expressão e os direitos da comunicação.
No que diz respeito ao relacionamento entre jornalistas e fontes, há, também, uma preocupação peculiar entre os portugueses.
Enquanto no Brasil é escassa a bibliografia sobre o tema e mais raras, ainda, senão inexistentes, as escolas voltadas ao estudo do Direito da Comunicação, em Portugal encontramos grande produção acadêmica sobre o tema. Existe a preocupação em oferecer aos universitários em Jornalismo e Direito a possibilidade de se aprofundarem nos assuntos que envolvam as duas áreas e incentivem a pesquisa em temas correlatos.
Em 2006, a pesquisadora portuguesa Helena de Sousa Freitas, contribuiu para incrementar ainda mais esses estudos com a obra Sigilo profissional em risco ? análise dos casos de Manso Preto e de outros jornalistas no banco dos réus. Em sua pesquisa, aponta vários casos em que jornalistas portugueses tiveram de comparecer aos tribunais, ainda que fossem para reiterar o direito constitucional ao sigilo e para se manterem calados (FREITAS, 2006).
Da época em que os jornais chegavam de navio da Europa ? com meses de atraso e vastos em notícias estritamente voltadas à elite portuguesa ? à era da internet e da tecnologia digital, um percurso inimaginável se traçou no cenário da comunicação e da legislação no Brasil e em Portugal.
Se Portugal nos apresenta um rol bastante completo, minucioso e bem detalhado de direitos constitucionais a respeito do tema, além de legislação esparsa (Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses, Estatuto dos Jornalistas e Lei de Imprensa), nos EUA a liberdade de expressão também é analisada com bastante seriedade. No entanto, a legislação constitucional dedicada ao tema se resume à Primeira Emenda, ratificada em 15 de dezembro de 1791 por meio do documento intitulado Bill of Rights, que traduziremos como "Carta de Direitos".
Considerado um país ocidental com ampla e forte jurisprudência no que diz respeito às liberdades individuais, a liberdade de manifestação do pensamento e seus eventuais limites nos EUA ultrapassam as discussões nos Tribunais Superiores e já foram exaustivamente explorados pelas artes, especialmente pelo cinema e pela literatura.
A produção cinematográfica americana é vasta em roteiros que abordam o assunto sob os pontos de vista do jornalista, da fonte de informações ou da Suprema Corte, e reacende de tempos em tempos as intrigantes discussões sobre os conflitos de direito e ética no que diz respeito aos limites do trabalho da imprensa mediante sua garantida liberdade de expressão.
As origens distintas dos sistemas jurídicos brasileiro e norte-americano nos ajudam a compreender melhor como cada país aborda o tema, de acordo com sua realidade jurisprudencial e doutrinária. A influência que ambos receberam dos seus colonizadores parece ter sido decisiva para estruturar os dois sistemas.
O sistema jurídico brasileiro teve sua origem no Civil Law, de procedência romana, baseada em leis escritas e no método dedutivo. Caracteriza-se pela predominância da lei sobre o direito costumeiro.
Já, nos EUA, predomina o sistema que teve origem na Inglaterra, a Common Law, um método indutivo cuja principal regra é o precedente. Com exceção do Estado americano de Lousiana, de formação francesa, que adota o Civil Law, o direito norte-americano baseia-se, portanto, em decisões anteriores, a maior fonte do direito anglo-saxão.
Em comparação ao Brasil, a Suprema Corte norte-americana encontra condições legais de ser mais flexível em suas decisões. Apesar de o Direito norte-americano ser originário do sistema inglês, é conhecido por se tratar de um sistema misto. Isso acontece porque, assim como o Direito brasileiro, o país é regido por uma lei escrita, a Constituição dos EUA, de 1788 que tem vigência acima de qualquer norma escrita federal ou estadual. Algumas diferenças entre as constituições brasileira e norte-americana podem ser apontadas, primeiramente, em relação à sua estrutura formal. A Carta brasileira promulgada em 1988 conta hoje com 250 artigos em sua parte permanente, 97 artigos nas disposições transitórias e 67 emendas; a norte-americana, promulgada em 1787, tem 7 artigos e 27 emendas.
Bem diferente das constituições das Repúblicas Brasileira e Portuguesa, extensas e mais analíticas, a dos EUA é um documento sintético, mais voltado para os princípios. Com menos detalhes, talvez implique maior conhecimento por parte da população. Já a Constituição da República Portuguesa promulgada em 2 de abril de 1976 tem hoje 296 artigos (considerando as disposições transitórias) e foi submetida a sete revisões constitucionais (1982, 1989, 1992, 1997, 2001 , 2004 e 2005).
No Brasil, entre vários motivos, mas também por ser um documento bastante detalhista, poucos a conhecem.
Se no Brasil a legislação é a primeira fonte de direito para que o Judiciário tome suas posições, nos EUA a opinião pública tem importância decisiva.
Basta sua manifestação para que a jurisprudência comece a firmar idéias mais modernas. No entanto, essa influência direta nas decisões do Judiciário deve ser analisada com cautela.
É fundamental perceber se essa opinião pública não está apenas reproduzindo manifestações populares subsidiadas pelas distorções da imprensa, tendenciosas e baseadas em interesses econômicos e políticos.
Assim como no Brasil, é importante perceber se as idéias que influenciam as decisões judiciais não são manifestações anônimas, cujos declarantes se esquivam e não se expõem justamente para se eximirem das responsabilidades decorrentes dos seus atos e idéias.

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Autor: Eveline Gonçalves Denardi


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