ESTIAGEM



Porto da Folha, Sergipe, na seca de 1935...

Naquela tarde Ernesto estava sentado no umbral da porta, olhando desolado para o pátio. O solo estava seco, a galinha que restava ciscava insistente a terra poeirenta onde não havia mais nenhum verme, sequer uma semente de erva.

Ernesto sentia-se inseguro, indeciso. Muitos moradores do município já tinham abandonado suas roças, migrando para o sul. Ele também era obrigado a juntar-se aos retirantes, mas não sabia para onde ir. Voltar para a cidade e arranjar um emprego, era uma das opções. Havia nascido naquela casa e ali vivia há 32 anos. Seus pais morreram e ele voltou para tomar conta da propriedade, dos animais domésticos, da lavoura. Mas, a seca dos últimos anos acabou com tudo.

O dia amanheceu coberto de nuvens e ele achou que haveria chuva, mas o tempo passou as nuvens foram embora e não caiu uma gota sequer de água. Ernesto resolveu pegar a galinha que seria seu almoço aquele dia. Correu atrás dela, mas o galinácio corria de um lado para outro fugindo até que a perseguição foi interrompida bruscamente. Ernesto pisou num sarrafo caído do cercado das cabras, onde havia um prego que perfurou a sola da velha botina e entrou no seu pé. Ele gritou de dor e deixou-se cair sentado, arrancando de imediato o prego de suas carnes. Tirou a botina e deixou o sangue jorrar por algum tempo para expulsar o veneno da ferrugem. Mancando, entrou na casa, fez um emplastro com folhas de caruru e azeite e colocou no ferimento enfaixando com um pano em seguida. Naquele dia ele não fez nada, mesmo por que, não havia nenhum trabalho a fazer. A mala estava pronta para a viagem, o dinheiro da venda das cabras estava guardado para comprar a passagem de ônibus. Mas, ele relutara em partir. Tinha a iluzoria esperança de que alguma coisa acontecesse, um motivo qualquer, principalmente que acabasse a estiagem e o fizesse ficar na terra onde nasceu e gostaria de ficar até o fim dos seus dias.

Na manhã seguinte acordou sentindo calafrios e com dor no ferimento do pé. Ergueu-se da cama e apoiando-se no cabo da vassoura, sentou-se junto ao umbral da porta, num banco tosco encostado na parede de taipa. O sol começava aquecer o dia, mas ele ainda sentia frio. Arrependeu-se de ter levantado da cama e agora tinha uma sensação de fraqueza. Sem forças para voltar ao leito, recostou-se para trás resignado, se estava para morrer, morreria ali, olhando a sua terra e o que restava da vegetação, o mandacaru ao lado do galpão, os pés de macambira crescendo ao redor do curral, os pés de carqueja junto a casa, o pátio de terra avermelhada e as lembranças de um tempo que já passou.

Estava mergulhando nas sombras letárgicas, mas logo algo despertou sua atenção e ele sacudiu a cabeça para raciocinar com clareza. Pelas pálpebras entreabertas percebeu que havia alguém do outro lado do cercado das cabras. A figura de uma mulher como que flutuando entre a terra e o céu. Ele ergueu-se, com intenssão de ver quem era. Deu dois passos e caiu no chão.

Quando voltou a erguer-se, olhou para o cercado. A mulher continuava lá, pensativa, olhando para o chão. Foi então que ele a reconheceu, era Mariana, filha do prefeito de Jandaíra. Ernesto recordou o tempo em que trabalhou num armarinho como auxiliar de serviços gerais. Ele se apaixonou por Mariana, que naquela época tinha 18 anos. Ela correspondia ao seu amor e aceitou ser sua noiva, mas eles não tiveram tempo nem para o primeiro beijo. Naquele mesmo dia a moça foi raptada pelo cangaceiro Chico Carvoeiro, quando o bandido atacou a cidade com seu bando. Ernesto deixou o emprego e saiu pelo sertão à procura de Mariana. Passou duas semanas seguindo o rastro de Chico e seu bando e só voltou para casa quando soube que os cangaceiros haviam atacado alguns ranchos da região e matado os proprietários, seus pais estavam entre os mortos. Ele ficou arrasado e pretendia voltar à perseguição, mas a policia conseguiu localizar e cercar os bandidos. Houve tiroteio e mortos de ambos os lados. Os cangaceiros foram mortos, mas entre eles não estavam Chico Carvoeiro, tampouco Mariana, que não foi encontrada. Eles nunca mais foram vistos. Acreditava-se que Chico fugiu com a moça para outro estado.

Ernesto concluiu que estava tendo uma alucinação, um sonho. Sonho ou não, ele viu Mariana descer para o campo, e resolveu segui-la. Apoiando-se num galho seco de angico, seguiu-a, arrastando o pé ferido. Quando chegou a um terreno rochoso já estava sem forças para continuar. Deixou-se cair, sentando-se no chão. Ergueu o rosto e viu a mulher junto a um rochedo, sem roupas, nua! Apoiando-se na rocha, ela subiu até o topo e ali ficou deitada, com o tronco erguido, o rosto voltado para o sol. Em sua pele reverberava a luz do sol, como se o corpo fosse coberto de minúsculas escamas, como a de um réptil. Ela brilhava como se estivesse pegando fogo! Ernesto foi obrigado a cerrar os olhos por causa da intensa luz. Quando voltou a olhar, deparou-se com a mulher na sua frente, sorrindo. Ela continuava linda, o rosto redondo, olhos castanhos, os cabelos compridos. Ela inclinou-se sobre ele e de sua boca saíram línguas de fogo que acariciaram seu rosto e ele tentou abraçá-la, mas Mariana sumiu de repente no clarão do sol. Ernesto abriu os olhos e descobriu que ainda estava sentado junto a porta. Desta vez ele viu a figura clara da mulher seguir pela orla da caatinga. Reunindo suas forças ele desce para a ravina, onde encontrou um homem velho sentado numa pedra à sombra de um tronco seco. Seu traje era simples, de panos poeirentos e encardidos, aparência em que se tornavam as roupas de um andarilho. Apoiado num cajado cheio de nós, observava tanajuras que saiam de um buraco no solo seco para atacar um besouro.

- O senhor viu uma mulher por aqui? Perguntou Ernesto.

O velho olhou para ele, torcendo o canto da boca num sorriso de zombaria e respondeu:

- Mulher? Nestes matos? Ce tá dodio, home!!

Ernesto tombou, largou-se à terra, fraco, desiludido. Deitado de costas no chão, viu o velho se aproximar, inclinar-se sobre ele, revistando-lhe os bolsos. Foi então que o reconheceu, era Chico Carvoeiro! A raiva deu forças a Ernesto, ele virou-se ao mesmo tempo em que jogava o velho ao solo. Montando sobre o peito do homem e impelido pela vingança, começou a apertar-lhe o pescoço com as duas mãos. Chico Carvoeiro cacarejou como uma galinha engasgada. O velho cangaceiro tirou uma adaga da cintura e tentou enfiar nas costelas de seu oponente, mas a lâmina resvalou na grossa cinta de couro cru de Ernesto, mal cortando-lhe a carne. Ernesto conseguiu segurar-lhe a mão armada e bater com ela numa pedra até que Chico largou a faca. Mas, Ernesto já estava sem forças. O velho deu-lhe um golpe na cabeça com o antebraço, jogando-o ao solo. Chico esticou-se para pegar a faca, porém alguém foi mais rápido. Ele olhou para a mulher.

- Mate ele! Mate ele, mulher!

Mariana pegou a faca, jogou-se sobre Ernesto enterrando a lamina no peito dele. Ernesto olhou-a espantado, abriu a boca, mas não conseguiu falar. Mariana, com o rosto a centímetros do rosto dele perscrutou-lhe a face para constatar a agonia da morte e só então ela reconheceu-o e soltou um grito, puxou a adaga do corpo de Ernesto. Estabanado, Chico Carvoeiro debruçou-se sobre ela e Mariana ergueu o braço para afastá-lo, a mão batendo no peito dele. Chico caiu para trás com a garganta cortada. Ele levou as mãos ao pescoço, rolou pela poeira e logo permaneceu imóvel numa poça de sangue. Mariana olhou-o, espantada, mas logo voltou-se para estancar o sangue do peito de Ernesto. Com lágrimas nos olhos, ela murmurou o nome dele. Ernesto sorriu, finalmente havia encontrado o seu grande e inesquecível amor. Agora, ele tinha um motivo para continuar vivendo.

Sombras nublaram seus olhos e ele voltou a sorrir sentindo água caindo em seu rosto. Chuva!...

Fim

Antonio Stegues
Autor: Antonio Stegues Batista


Artigos Relacionados


Verdades Secretas

A IncrÍvel EstÓria De Edgar Posterfinster

A Morte De Valdecyr Da Silva

Lembranças

Antes Tarde Do Que Nunca (ii)

O Fantasma

O AbraÇo De Ana Paula