ALGUMAS QUESTÕES REFERENTES À HISTÓRIA DO CONCEITO DE HOMEM NA FILOSOFIA



Não está presente, no ideário grego, a discussão sobre o homem individual, singular. O homem grego da antiguidade é sempre coletivo; a importância da sua individualidade é dissolvida na importância do Estado.
Nesse contexto, Platão chamava atenção para a superioridade do que é geral, universal. Numa tal visão, não havia como pensar uma realidade privilegiada para o indivíduo, porque cada indivíduo é um caso particular de ser humano, e o que existe verdadeiramente é a idéia de homem.
Muito embora o homem definido por Platão seja apresentado a partir de uma forma concreta e determinada, a saber, Sócrates, o homem que ele apresenta não é o Sócrates real. Platão suplanta o homem histórico Sócrates e o transforma num ideal. Só a partir daí, podemos dizer que o discurso platônico trata de um homem particular. Trata-se de um homem particular que nunca existiu concretamente, senão como arremedo daquilo que não se realiza no concreto, isto é, da sua idéia.
É possível pensar dessa forma porque Platão não tinha interesse em fazer uma biografia de Sócrates. Seu interesse estava nas características ideais que o filósofo apresentava, características que, pinçadas, podiam constituir aquilo que seria a idéia de homem. Portanto, para Platão, o conceito de homem coincide com o de filósofo.
Tal elucidação é fundamental para compreender que, para esse pensador, o homem não se realiza em si próprio. O diálogo, então, passa a ser necessário. O diálogo vem ao homem como uma necessidade de conhecer o mundo e a si mesmo.
Nesse sentido, há a necessidade do existir concreto. O homem só dialoga com outro homem. Por motivos óbvios, é necessário que essa intersubjetividade ocorra no campo do sensível ? lembrando que a discussão sobre a corporeidade do outro só vai acontecer de forma mais aberta na pós-modernidade.
Esse diálogo não ocorre de forma despreocupada. Trata-se de prática compromissada de compreender a si próprio e o mundo. Nesse sentido, surge uma certa preocupação social, e, por isso, podemos identificar uma tentativa de apresentar uma função social para o filósofo. Isso está de acordo com o próprio contexto grego, em que o homem não se efetiva enquanto tal senão em coletividade.
Mais tarde, Aristóteles vai justamente expressar de forma clara a sociabilidade do homem, inclusive como característica fundamental e distintiva. Mas Aristóteles não define um homem metafísico ? ele trata o homem como um animal que pensa, que pode ser classificado e estudado, conforme suas particularidades. O eu em Aristóteles inexiste. Pensa-se o eu quase como um outro, por se pensá-lo como um objeto ? o que, na verdade, demonstra coerência com uma das principais preocupações do estagirita, que é a ciência.
A herança grega que permanece no mundo greco-romano tem a ver com o papel que a filosofia desempenha para o homem nessa sociedade. A filosofia é a "mãe de todas as ciências". A filosofia é a fonte de conhecimento fundamental para o ser humano. Quem quiser conhecer algo, então, deverá estudar filosofia.
A partir daí surge a idéia de "filosofia de vida". Os filósofos, então, são aqueles que devem dar ao homem uma explicação sobre ele mesmo. O filósofo é o sábio, e sua preocupação, antes de qualquer coisa, deve ser o próprio homem.
A preocupação do mundo greco-romano, no entanto, ainda não funda de forma clara a idéia de eu. Quem começa a fazê-lo é Santo Agostinho, com suas Confissões.
Santo Agostinho demonstra uma nova postura ante a individualidade. O mundo grego-romano, apesar de possuir um interesse no homem e de voltar toda preocupação filosófica para o sentido da existência humana, ainda considerada o homem sob um ponto de vista externo. Agostinho por sua vez, faz o pensamento filosófico fazer um mergulho na própria interioridade, no próprio eu.
Pela primeira vez, se verá uma filosofia usada quase estritamente para pensar a própria existência individual. Diretamente, há nas Confissões agostinianas algumas preocupações específicas, que são a origem do mal e a existência de Deus ante a dualidade tempo-eternidade. Mas toda a discussão só tem sentido na medida em que Agostinho se põe como homem existente, que reflete sobre si mesmo e sobre aquilo que o aflige, apontando suas imperfeições e limitações em compreender o que ele propõe discutir:



Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em meu espírito, buscava eu ansiosamente a origem do mal. E que tormentos, como que de parto, eram aqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ouvidos atentos, e eu não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas, altos clamores se elevavam até tua misericórdia: eram as silenciosas angústias de minha alma. (AGOSTINHO. 2002. p.145)

Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isso minha mão? Ou esta minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra? (Idem, Ibidem. p. 266)


Considerando a biografia de Agostinho, tais idéias representam mais que apenas reflexões filosóficas. A vida de Agostinho mudou totalmente com sua conversão. Sua postura, nesse sentido, estava bem de acordo com a visão greco-romana, em que filosofia e vida deveriam estar necessariamente conjugadas.
"Estimulado", inclusive, com a doença que lhe acarreta uma nova visão de mundo, Agostinho pondera que "Não há doente mais incurável do que aquele que não reconhece a sua doença". Era necessário mudar o plano de vida, mudar o próprio projeto de si mesmo, ante uma nova realidade.
Este posicionamento ante o mundo reflete uma consciência de si mesmo, enquanto corpo e enquanto idéia. Uma compreensão mais profunda e comprometida do eu. Mas essa compreensão torna-se obtusa ante os paradoxos da individualidade. Se eu me vivo e me habito, percebe Agostinho, eu deveria conhecer-me totalmente, mas não conheço. Vivo-me numa constante luta comigo para tentar definir-me, e não me defino.
É importante salientar a contribuição de Agostinho para a posteridade, pois já no início da pós-modernidade, Kierkegaard retoma esse pensamento, mas apresentando os paradoxos do eu não como sinônimo de contradições, mas como algo essencial para a própria definição de homem:

O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, [o que é] o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. (KIERKEGAARD, 1974, p.9)

Em O Desespero Humano, Kierkegaard explica que o eu é a relação de auto-conhecimento entre o sujeito e ele mesmo, sendo, portanto, o relacionar-se de uma relação ? o ser humano ? consigo própria. Assim, o ser humano só constrói o seu eu quando se conhece; quando tem a consciência de que existe enquanto síntese. Conhecendo-se, diz Kierkegaard, a relação entre dois elementos de uma síntese é um terceiro termo positivo; se a relação não se conhece, porém, "o eu não existe ainda" , tratando-se de um terceiro termo negativo. Dessa forma, para conhecer Deus, é necessário, antes de tudo, conhecer-se, "conhecer-se a si mesmo".
Kierkegaard é considerado o fundador do existencialismo sob o ponto de vista cristão. E o que é o existencialismo senão uma forma de pensamento que, sem estabelecer uma organização doutrinária, discute a existência do próprio eu?
Da mesma maneira que é importante entender a contribuição de Agostinho para o pensamento contemporâneo, também o é perceber o quanto que tais contribuições permitem a compreensão, no ponto de vista da antropologia filosófica, de uma continuidade entre o pensamento medieval e a renascença.
Vê-se isto de forma bastante clara, por exemplo, em Descartes. Com este pensador, funda-se uma nova filosofia a partir da compreensão de um novo eu. O ser humano pode pensar-se como absolutamente distinto do mundo, e distinto no mundo.
Depois de Descartes, os chamados empiristas apresentaram um contraponto no que diz respeito à origem do conhecimento, gerando um embate que só fora "solucionado" com Kant, já no século XVIII.
Na discussão sobre o conhecimento, Kant propõe uma revolução como a de Copérnico, pondo o sujeito como a base do conhecimento, e descartando a possibilidade de conhecer as coisas em si. Põe em questão a idéia da liberdade humana, em que ela consiste e de que forma podemos conhecê-la. Percebamos que, com Kant, o eu é discutido enquanto sujeito, isto é, numa dependência epistemológica do objeto. Com ele, a liberdade, juntamente com Deus e a Alma, aparece como um ideal que jamais pode encontrar fundamento empírico que o suporte.
Para Kant, a liberdade está fundada na vontade humana. O homem, assim, é livre justamente porque possui a capacidade de escolher. Contrária às inclinações do corpo, que só nos solicitam aquilo que é necessário à nossa existência física, a vontade, para Kant, consiste em pôr a racionalidade como a mestra das nossas decisões. Agindo de acordo com a nossa racionalidade, de acordo com aquilo que decidimos, temos ampla responsabilidade pelo que escolhermos.
Já na contemporaneidade, Sartre rediscute a questão da liberdade, sob um ponto de vista marxista. É importante lembrar que Marx nos fala sobre a importância da realidade corporal nas relações entre os sujeitos. Ele funda um materialismo dialético e histórico, de um lado porque considera que as relações históricas foram se constituindo através das lutas de classes, de outro, por considerar que a história deve ser vista sob o ponto de vista material, considerando não só materialidade produtiva, mas a corporeidade do próprio homem.
A herança do pensamento marxista foi tão grande que pôde ser recebida por toda a humanidade. Sartre, por exemplo, funda um existencialismo marxista e ateu, pautado pelo engajamento político e social marxista.
Para Sarte, a questão fundamental do existencialismo consiste na total liberdade do eu perante o mundo. Uma vez que Deus não existe, diz ele, tenho então total responsabilidade pelo que faço. Não há nenhuma essência no mundo das idéias que me diga quem eu deva ser ou o que eu deva fazer. Sou eu que escolho, a cada momento, o que quero ser; sou eu que me projeto, pois minha existência precede a minha essência.
Sartre expande a responsabilidade do indivíduo para toda a humanidade, na medida em que considera que só podemos escolher o que é bom para nós e, como os indivíduos são iguais, escolhemos o que é bom para toda a humanidade.
Se Kant considera que a liberdade não pode ter representação empírica, Sarte apresenta um ponto de vista diverso. A corporeidade humana é justamente o que delata a existência e a liberdade é limitada pelas limitações do corpo. Ao mesmo tempo em que nos limita, é o corpo que nos mostra as possibilidades da liberdade. Por outro lado, Sartre recusa o materialismo determinista, porque, se tudo fosse reduzido à matéria, não haveria consciência, e, portanto, não haveria liberdade.
Essa corporeidade que se relaciona com a liberdade implica que a liberdade pode, sim, estar definida pelas situações concretas. Se, como objeto, a liberdade não pode se nos apresentar fenomenicamente, podemos pelo menos ter contato com os casos particulares de liberdade. Cada caso particular em que identificamos a liberdade pode ser considerado como uma manifestação da liberdade. Se ela não pode ser vista como "coisa", isto se dá porque ela realmente não é uma coisa, mas algo que só se apresenta a partir do comportamento humano. Nesse sentido, não podemos entender a liberdade senão em sua manifestação empírica, quer pessoal, quer intersubjetiva.
Concluindo esta discussão, na qual muitos elementos deixamos propositalmente em aberto, podemos considerar que o homem, enquanto existente, só pode se definir realmente a partir de sua existência. A liberdade, que é o fator essencial para essa definição, é o ponto limite que transcende a si própria, mostrando que, se temos pelo menos alguma determinação, é a de sermos livres.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Martin Claret, 2002.

KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano (Doença para a Morte). Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

KANT. Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Coleção Os Pensadores. Abril Cultural: 1989.

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1991.

MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. São Paulo: Paulus, 1981.

Autor: Edilson Miranda Junior


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