VIDA MÍNIMA



Peça premiada pela FUNARTE em 2004 - Prêmio Funarte de Dramaturgia 2004, Região Norte.
LICENÇA _ Esta peça pode ser utilizada em leitura pública ou encenada sem necessidade de autorização do autor, desde que por grupos amadores e com finalidades não comerciais. Exige-se a divulgação do autor e do prêmio Funarte. PROIBIDA a sua adaptação para vídeo, cinema ou TV, ou publicação impressa com fins comerciais.







VIDA MÍNIMA

José Luiz Pena Pereira

TEATRO ADULTO
REGIÃO NORTE





2004

PERSONAGENS:


Dolores (mãe, grávida);
João (pai, operário),
filhos: Tonho(16 anos)
Julieta(14 anos)
Alice(11 anos),
e Celso (9 anos),
Kátia (vizinha, 20 anos)
Outros: Padre,
Prefeito,
Industrial,
Jornalista,
Homem-sanduíche,
3 rezadeiras,
2 socialites.
1 policial
1 homem comum
Obs: Um mesmo ator pode representar mais de um personagem.




CENÁRIO:
Casa de favela, só um cômodo, sem paredes. Uma mesa tosca com uma panela em cima, dois caixotes para sentar. Uma corda para estender roupas na lateral. A frente do palco deve ficar livre para passagem das demais personagens.

ATO ÚNICO

Entra Dolores grávida, carregando uma trouxa de roupa na cabeça, acompanhada de suas duas filhas: Julieta e Alice . Trajes simples e pobres. A mãe estende as roupas na corda, Julieta senta-se num caixote e finge fazer as unhas, Alice varre a casa.

DOLORES: - Virge, tô cansada, se ao menos alguma de cês arranjassem um trabalho, podiam ajudá na despesa de casa.
JULIETA (fazendo pouco caso) - Jogo do bicho eu é que não vou fazer. Sabia que o Zé do Bicho me ofereceu pra pôr uma banca? Eu, hem? Eu sei o que ele quer. Tô fora. Casa de madame nem pensá. eu é que não vô me assujeitá a lavá privada, limpá sujeita pra ganhá uma mixaria, como a senhora.
DOLORES: - Mixaria? Mixaria, é?, mas se não fosse isso!
ALICE: - Não invente de querê que eu fique na casa da dona Guida. Lá eu não vou!
DOLORES: - Mas por quê? Ora já esta! Por acaso não te dão de comê?
ALICE: -Comê? Só as sobra. Nem cachorro! Nem o cachorro memo, por que o de lá come é ração, coisa de frescura de gente metido a rico. E olhe que é
coisa boa, parece biscoito.
JULIETA: - Mas na hora de pagá o trabalho da gente é aquela mixaria. Inda joga na cara que se não quisé, tem quem queira. Também com toda essa pobreza nessa cidade.
DOLORES: - Nesse mundo, mea filha, nesse mundo...
(Entra Tonho carregando um botijão de gás)
TONHO: - Aí, mame, taí um gás pra queimá um feijãozinho. Vamu nessa que foi numa boa. Num tem fogão mas é só ligar uma mangueira direto no botijão. Deixa que o velho dá um jeito.
DOLORES: - Mas onde já? O que este zinho me traz? Um botijão de gás? Donde tu arranjou isso, menino?
JULIETA: (desdenhando) - Vai ver que limpou algum.
TONHO: - Limpei, limpei sim, e daí? Tu qué o quê? Nesse Brasil a gente tem que ser esperto. Eu tô limpo! Isso aqui é Brasil, se a gente não se virá a gente se queima só dum lado. È, mana! Tu ainda aprende.
DOLORES: - Ai meu Deus, calem a boca! Se ao menos algum desse pra estudá.
TODOS : (Tonho, Julieta e Alice) - Estudá?
DOLORES: -Estudá sim, porque pelo meno iam ter um emprego.
TONHO: -Iiiih! Tá sonhando. Estudá não dá camisa a ninguém. Vai se empregá nalgum comércio e ganhar a mesma mixaria. Aí, me diga o nome de algum rico que tenha estudado?
DOLORES: -Ah! Mas tem é muito dotô aí. Vê dona Guilhermina, minha patroa, estudou e é bancária, um emprego bacana.
TONHO: - É, é, bacana, ma ela é explorada do memo jeito que ela explora a
senhora. Quanto ela lhe paga ?
DOLORES: - Meio salário.
TONHO: - Pois é, num era pra pagar inteiro? Tu num trabalha lá que nem uma burra, até domingo às vez?
JULIETA: - Vantage de ser dotô é que num vai preso. Polícia num se mete a besta com dotô.
ALICE:: (olha dentro da panela).- Eu tô com fome. Num tem nada pra se cumê.
DOLORES: - Vamu esperá teu pai chegá. Ele, quem sabe, num traz algum pedaço de jabá pra gente fazê uma farofinha.
JULIETA: - Uma lata de salsicha, carne de conserva. Ah! ia bem. É só abrir e botá farinha.
ALICE: - Iiii luxenta! Eu, por mim, um açaizinho já quebrava essa fome.
DOLORES: - Na escola devia de ter alguma merenda.
JULIETA:- Lá quando tem é bolacha com suco de pó.
(Entra o homem-sanduíche .Ele tem um megafone numa mão e na outra um volante de carro, celular pendurado no pescoço por um cordão.. Nariz de palhaço - vai passando pela frente da cena - na placa da frente está escrito "Igreja dos Milagres - todos os dias às 7 da manhã e às 7 da noite. Pede e receberás." Na placa de trás: "Acredite na sorte. Faça sua fé na Banca do Zé do Bicho. Paga na hora."..)
HOMEM-SANDUÍCHE: - Aproveita minha gente. Promoção seeensaaasioonal! Superminibox Levemais está vendendo feijão a 3 reais o quilo, arroz de primeira um e cinqüenta. E tem mais, jabá a seis reais só no Levemais. Só não compra quem não quer. Levemais vende barato pra você levar mais.É demais!
é demais! O que você tá esperando, vá logo comprar agora, vá correndo porque promoção no Levemais é pra acabar com o estoque. Tenho outra dica pra você. Tá ruim a coisa? Tá sem emprego? Tá no sufoco? Tá sem lero, sem saúde, nada dá certo em tua vida? Então, tu tá precisando, meu amigo, de fazer uma visita pra Mãe De La Rio. Mãe De La Rio eu recomendo. Essa é uma dica aqui do seu amigo Mídia Alternativa, o único marquetingue boca a boca de responsa, anuncia só o que é bom. É como sempre eu digo: Boca fechada não entra comida. Mãe De La Rio lê as cartas e vê nos búzios, desvenda seu passado, seu presente e futuro. Não fique no escuro, não reme contra a maré, vá logo procurar Mãe De La Rio.
Agora, preste atenção, que em dorme no ponto perde o bonde. Funerária Felicidade Eterna está oferecendo só este mês urna de graça. Preste atenção nessa promoção do outro mundo. Quem assina agora o plano funeral da Felicidade Eterna se morrer nos primeiros trinta dias ganha urna de graça. Eu falei urna de graça, caixão bacana, basta morrer no primeiro mês do contrato. Essa promoção também é válida para os dependentes ou pessoa que for indicada pelo titular do plano. Faço agora mesmo o seu plano funeral Felicidade Eterna e coloque toda sua família como dependente, até sua sogra poderá ser enterrada de graça se ela morrer dentro de 30 dias. É sempre uma despesas a menos.
(Nesse momento entra João e vai pra junto de Dolores)
HOMEM-SANDUÍCHE:- Alô manô Manué, já lavou o seu pé? Alô dona Enedina, já fez sua fézinha? Alô seu Bastião, já fez sua oração? Alô dona Sueli, já lavou o seu xi... chinelo? Alô seu João, Já comprou o seu feijão? Vamo lá, como é que é? Só não compra quem não quer!. Feijão, arroz, jábá,
farinha, biscoito, frango, óleo e macarrão tudo na mão, tudo pelo menor preço no Levemais. Você quer, você pode. Quem não pode se ... se.... se..... Quem não pode se esforça! É o que sempre digo: quem não tem colírio, coça o olho. Mídia Alternativa também é cultura. (Sai)
DOLORES: - João, até que em fim. Tu saiu de manhã home, até agora? Já é de noite.
JOÃO: - O pior é que não conseguir nada lá no cartório. Certidão de Nascimento dos meninos só com autorização do juiz. Precisa de ir no fórum.
DOLORES: - Mas quando então, onde que a gente vai achar tempo pra ficar pernando de um lado pra outro. E lá nesse tá de fórum não deixam nem a gente entrá com quarqué roupa.
JOÃO: - Ah! Isso é. Eu só tenho carção e bermuda... (pausa e depois desapontado) . Se agente conseguisse essas certidão, a gente matriculava Julieta, Alice e Celso na escola e ainda ganhava essa tá de bolsa.
TONHO; - Outra mixaria. Deviam de pagar bem pra gente estudá, depois a gente vai se estragá no trabalho pros homes.
JOÃO: - Cada um tem sua desculpa pra não estudá. Julieta só quer saber de namorá. Alice qué ficá na rua jogando bola e o Celso, bem, aquele pelo menos trabalha. (olha na panela). Não tem nada hoje? Talvez o seu Nazareno venda alguma coisa pra nós enganá a barriga.
ALICE: - Eu não vou lá. Mande o Tonho. (a parte).Aquele velho é muito enxerido.
JOÃO: - O quê que tu disse?
ALICE: - Nada, nada.. Mande o Tonho.
JOÃO: (vê o botijão de gás) - Mas o que é isso? Gás?
DOLORES: - Foi o Tonho que trouxe.
JOÃO: - Já vi que essa daí tá metido em alguma bronca. Queira Deus! Queira Deus! (com gestos de desespero)
(Entra Celso com uma caixa de isopor. Ele é vendedor de chopinho )
CELSO: (Arriando o isopor, mostrando cansaço senta-se no chão). - Não deu tempo de ir na casa de dona Filó prestá conta, ainda sobrou três chopinho.
ALICE: - Oba, vamu chupá!
CELSO: - Tá aguado. Vou tê que pagá mesmo. Aquela velha num dispensa nada. Aqui só tem de morango. É só três.
DOLORES: - A gente divide.
(Sentam-se todos no chão ao redor do isopor. Alice pega um, Celso outro e João o último. Cada um come um pouquinho. Alice dá para Julieta, Celso para Tonho e João para Dolores.
Entram passando pela frente da cena o Padre e o Prefeito}
PADRE: - Essa gente passando fome. Não tem casa, não tem emprego...
PREFEITO: - Ora, padre, o que é isso? Passa fome por que quer. O rio taí na frente, é só ir pescar, ali tem a mata, é só ir tirar açaí. Isso daí, padre, é o pecado da preguiça. Um bando de preguiçoso. Pecadores sem perdão.
PADRE: - O senhor fala por que não é o senhor que tá com fome, já tentou viver de pescaria, seu prefeito, ou de tirar açaí no mato?
PREFEITO: - Isso não vem ao caso, eu estudei alguma coisa. Mas, veja bem, lá em casa, quando eu era criança, a gente ia tapá igarapé, fazia roçado, tirava açaí, fazia de tudo um pouco. Até hoje ainda tenho aquele pedaço de terra que meu pai me deixou. Agora eu venci na vida. Muito trabalho, né?
PADRE: -Trabalho que o senhor diz, o dos outros. Botou gente pra tirar
palmito, cortar madeira, comprar peixe barato a troco de farinha e sabão com preço dobrado.
PREFEITO: - Mas isso, meu bom padre, faz parte da vida. Vencer na vida requer tino, muito tino pra saber aproveitar as oportunidades. Agora veja essa gente, não têm tino nenhum. E Ainda falam mal de mim. É o pecado da inveja.
PADRE: - Mas, prefeito, essa gente não teve oportunidade.
PREFEITO: - Oportunidade? O senhor fala de oportunidade? Veja bem, oportunidade existe pra todo mundo. É preciso ter tino. Eu, por exemplo, nem pensava em ser prefeito, de repente aproveitei uma oportunidade e pá! fui eleito.
PADRE: - Assim, na sorte?
PREFEITO: - Não, padre, tem de ter tino.(faz o gesto esfregando os dedos indicador e polegar)
PADRE: - Ah, sim, já entendi.
PREFEITO: - Agora, depois da gente tá eleito, essa gente vive atrás da gente pra tudo. Pensa que a gente tem máquina de fazer dinheiro. O que eu tinha pra gastar eu já gastei nas eleições. Mas isso, sabe o que é? É ganância. Essa gente quer viver a custa do governo. Quer documento de graça, quer bolsa pra isso, bolsa pra aquilo. Tudo agora é bolsa. Povozinho ganancioso. E esse é outro pecado capital.
PADRE: - Preguiça... inveja... ganância. O prefeito não acha que é pecado de mais, não?
PREFEITO: - De mais? O senhor acha? Pois o senhor não vê a Ira que essa gente traz no coração. Essa raiva crônica do próximo. Veja as noticias policiais. Brigas, facadas, uma vida de violência. E ainda tem a Luxúria.
PADRE: - Luxúria?
PREFEITO: - Sim, meu caro padre, como o senhor que é padre não vê essas coisas. Essa gente vive na promiscuidade. Dormem todos num mesmo cômodo. Fazem sexo pelos cantos, embaixo da casa, na privada, em tudo quanto é lugar.
PADRE: - Mas, se eles não têm nem mesmo onde dormir. Só falta o senhor dizer que eles também praticam o pecado da Gula.
PREFEITO:- Pois eu lhe digo. Veja como devoraram aqueles parcos alimentos. Era pouco, mas comeram sem termos, sem compostura, sem agradecimento a Deus. Isso é gula, padre. Essa gente é a mais perversa classe de pecadores. Por isso é que são pobres.
PADRE: - Talvez eles se salvem por isso.
PREFEITO: - Qual ! Padre, o senhor tá ficando maluco. Vá por mim, eu conheço essa gente. E olhe que quase que fui pro seminário pra ser padre. Eu tenho tino pra essas coisas.
(Vão saindo ambos pelo lado contrário do qual entraram)
PADRE: - Falar em tino (faz o gesto com os dedos indicando dinheiro), prefeito, precisamos ver um jeito para reformar a casa paroquial, que faz tempo precisa
ser ajeitada.
PREFEITO: - Deixa comigo, padre, tô de olho numa verba que vem pra esses negócios de tratamento de água, esgoto, essas coisas que vão ficar mesmo em baixo da terra, ninguém vai ver mesmo, então a gente vai dá um jeito de arrumar essa casa paroquial, mas não esqueça de agradecer meus esforços nas missas, hem! Diga sempre aquela oraçãozinha: Abençoe, Senhor, o
prefeito Avelino, que ele conserve seu tino. Sabe como é? A propaganda é a alma do negócio, e a igreja é bem um lugar apropriado para se cuidar da alma, não é mesmo?
PADRE: - Mas fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico...
PREFEITO: - Não julgueis, não julgueis!
(Saem. Dolores levanta e puxa Alice pelo braço. Julieta senta-se no caixote e fica a mesa, os outros permanecem no chão )
DOLORES: - Vamu Alice, vou te levá pra casa de dona Guida, já falei com ela pra tu ficá lá até eu tê o bebê.
ALICE: - Mas eu não quero ir.
DOLORES: - Por que já?
ALICE: - Da outra vez que eu fiquei lá até apanhei.
DOLORES: - Mas foi bem feito, quem mandu tu aprontá?
ALICE: - Aprontei, é? Que a senhora não sabe que aquele filho dela queria me fazê? Vivia me pegando com aquela mão dele, me apertando, me beliscando, era uma perseguição, nem me deixava trabalhá.
DOLORES: - Mas por que tu não contaste pra dona Guida, mãe dele.
ALICE: - Mas se foi pro isso memo que ela me bateu. Disse que era mentira, que o filho dela não ia se meter com moleca fedorenta que nem eu e...
DOLORES: - Bom, minha filha, eu falo com ela, mas tu tem que ficar lá por que não tem outro jeito. Aqui em casa não tem nem o que comê.
ALICE; - Mas sempre não se dá um jeito, a gente pode sair e pedir nas casas.
DOLORES: - Não, não, não... Isso ainda é pior, ficar pela rua, tu é menina. Vamu logo que é. Pega tuas coisa. Dona Guida ficou de arranjá alguma roupa
pra ti. Ela é tua madrinha. Se não for ela quem vai ter cuidado contigo.
ALICE:- Bom, se eu trabalho e ela não me paga nada. Assim quando eu crescê também quero ter um monte de afilhada... Bença, dina Alice. Deus te abençoe, varre a casa... Bença, dina Alice. Deus te abençoe, lava a roupa... Bença, dina Alice. Deus te abençoe, lava a louça...
(sai arrastada pela mãe. João se levanta)
JOÃO: - Bom, cês já vão dormi. Eu vou ter de ir lá no cartório guardá lugá na fila pra ver se consigo ser atendido amanhã pelo juiz. Eles só entregam cinco senha. Depois que eu marcá o lugá, tu, Celso, vai pra lá guardá a vaga na fila pra mim.
CELSO: - Por que num vai o Tonho? De manhã eu tenho que ir vendê chopinho.
JOÃO: - È que o Tonho... Bem, a gente não pode contá com ele. Melhor tu mesmo. Amanhã tu vem dormi em casa, eu vou cedo lá pra fila. Quando tu voltá tu dorme e vai trabalhá só de tarde.
CELSO: - Tá bom. Tá bom. Vou dá uma soneca aqui, depois eu vô pra lá pra essa fila.
(João sai. Entra Kátia, a vizinha. Ela está com uma toalha na cabeça, short e camiseta)
KÁTIA: - July, July, vem cá.
JULIETA (se aproximando): - O que é?
KÁTIA: - Tenho uma parada pra ti. Num ti falei do Carlota que trabalha no hotel?
JULIETA: - Aquele veado?
KÁTIA: - Falei com ele hoje, me deu uma parada bacana. Olha, é o seguinte,
tem uns caras de grana lá no hotel, vou ti levá comigo, mas olha, quero a minha parte. A parada é cinqüenta paus. Vinte pra mim. Tá certo?
JULIETA: - Vinte pra ti? E eu fico só com trinta, nem vai dá pra comprá aquela calça maneira que eu queria.
KÁTIA: - Depois tu ganha mais. Isso e só o começo. Quando tu fô ficando por dentro da parada tu vai podê si virá sozinha. Mas olha, sempre vai tê de dividir com alguém. Eu, pro exemplo, tenho que pagá o Carlota, aquele fresco, ele dá as dicas pra gente.
JULIETA: - Ta bom, tá bom. Mas olha eu não tenho nem roupa.
KÁTIA: - Deixa comigo. Vamu lá pra casa. Tu toma um banho e eu te empresto uma roupinha maneira. Vou investir mais vou querê retorno, hem? Vô te dá logo uma dica: não diz teu nome verdadeiro. O meu é Keite e o teu vai ser Ju. Pronto. Eles não vão sabê qualé o verdadeiro.
JULIETA: - Ah não! Eu quero me chamar Daí, de Leide Daiane, eu sempre quis, eu adorava a Leide Daiane.
KÁTIA: - Tá bom, princesa. Mas esse nome é manjado. Tem um monte de bicha que se chama Daí, Daiane, Leidiane.
JULIETA: - Ah! Pô, essas bicha estragam tudo quanto é nome de mulher. Devia de ser proibido bicha usar nome de mulher. Já viu sapatão usar nome de home?
KÁTIA: - É mesmo. Mas olha só, se tu adotá esse nome de Daí, vão logo pensar que é nome de guerra, melhor tu dizê mesmo que é Ju, eles não vão saber se é Juliana ou Julieta, ou Júlia. Home gosta de pensá que tá transando com uma garota direita, entendeu? Se dé muita bandeira de puta, eles não gostam, tá sabendo?
JULIETA: - Tá bom, tá bom, vamo embora ante que papai volte.
(Saem as duas, ficam Tonho e Celso)
CELSO: - Aaah, eu tô cansado paca!
TONHO: - Também, tu fica carregando esse isopor quase o dia inteiro, Olha só, eu já andei muito pro essas ruas e fiquei reparando que existe gente que trabalha e gente que num trabalha. Gente que pega nu tranco é que nem tu, se gasta, se estraga tudo e no final pra quê? Pra enriquecê quem num trabalha.
CELSO: - Mas a dona Filó, pra quem eu trabalho, ela trabalha, ela faz os chopinho, passa noite fazendo chopinho.
TONHO: - É, eu saquei isso, mas olha só o que eu acho é que é parece uma máquina. As pessoa são um bando de máquina, cada uma faz um serviço e passa pra outra. Pensa só nesse chopinho que tu vende, de onde ele começa?
CELSO: - Deve de ser lá da mercearia donde a velha Filó compra as coisas, o açúca e o pó de refresco.
TONHO; - É mais ou menu por aí, só que o velho enxerido da mercearia já tinha também comprado essas coisas de outros caras, que mandam pra ele de barco. E esses outros caras já tinham comprado quem sabe de quantos outros caras, até chegar lá nus caras que fizero o açúcar e depois nus caras que plantaram as canas pra fazer açúcar.
CELSO:- É memo, acho que nós somu parece caminhão que vai levando as coisas de um lugar pro outro.
TONHO:- Isso, cara. Manja só, os cara que ficam rico são os cara que não carregaram nada, eles só ficam mandando. Um rico manda plantá a cana e depois manda colhê, ele vende pro dono da fábrica de açúcar, que depois
vende o açúcar pro outro cara, assim vai até chegá no velho Nazareno e a bruaca da Filó vai lá comprá, faz chopinho e tu vai vendê.
CELSO: - Mas quem num trabalha e só manda é por que tem dinheiro pra pagá.
TONHO; - Isso, isso isso, otário, a gente tem que ter dinheiro. É por isso que vou ficar rico. .. Vou ser capitalista.
CELSO; - Capitá... O quê?
TONHO: - Capitalista, ouvi uns caras falando essa palavra aí num boteco. Ca-pi-ta-lis-ta é o cara que tem grana, tá sabendo? Eu vou ter grana.
CELSO: - Mas como, se tu nem trabalha?
TONHO:- Olha o otário, disque! Tu tá doido, pensando que trabalho faz alguém ficá rico. Tem que aprendê a ser capitalista. Eu tô observando como os rico faz. Eles roubam, só que não falam roubá, eles falam aproveitá oportunidade. Sabe como é, aproveitá as ocasião quando os outros tão precisando então a gente toma tudo o que os otário tem. Nosso pai é um que só trabalha pros outro, ele precisa du emprego, compra tudo lá na cantina da serraria e depois fica devendo. Lá tudo é mais caro, então ele deixa tudo lá a merreca dele de salário. Só se gastando que nem máquina quando num é lubrificada. Vai até se acabá lá nu trabalho e ainda vai morrer lá
CELSO: - Vamu é dormir que é, que eu ainda tenho que acordá pra ir lá pra fila.
TONHO: - Tu já viu esses caras que trabalham na construção. Eles fazem uma fila e vão jogando o tijolo um pro outro, até que o tijolo tá tudo lá onde vão montando as paredes. Depois que o prédio fica pronto, eles são tudo mandado embora, ficam na rua até arranjá outro emprego. O dono do prédio vai
vendendo tudo e vai ganhando um montão de grana sem te pregado um prego lá na obra.
CELSO: - Mas de onde ele arranjou a grana pra pagar os trabalhador?
TONHO: - Isso é o capitá, ouvi um cara falando no boteco de emprestá dinheiro do governo, depois paga os trbalhador e os gasto tudo. Quando vende dá pra pagar o governo e ainda sobra um montão pra ir ficando rico. É tudo uma máfia.
CELSO: - Mas como tu vai pegá dinheiro do governo? Tu não conhece o governo.
TONHO: - É isso que eu tô querendo aprendê. Tô olhando por aí, fico de olho lá no banco e fico escutando os caras falando dessas coisa. Mas eu também tô vendo que tem gente ficando rico pondo os outros pra vendê coisa. Tu já viu aqueles camelô lá da praça, eles vende bagulho que vem do estrangeiro e disco de artistas famoso, só que essas coisas são tudo falsificadas, num são original. Aí eles vendem e ganham dinheiro, mas quem ganha mesmo é quem entrega essas coisas pros camelô, só tem o trabalho de fazê conta. Tem gente pra trazê do estrangeiro, gente pra distribuir pros camelô e gente pra cobrá. Quem num paga leva porrada. Assim esse cara que comanda é que fica rico. Tô pensando em começá ficá rico vendo coisa falsificada ou roubada.
CELSO: - Roubada? Mas tu vai ser ladrão e não capitalista.
TONHO: - Isso se chama pirataria, babaca! Eles mesmo lá na praça falam disco pirata. Isso é pirataria. Pirata toma coisa dos outros e assim fica rico. Tu num já ouviu história de pirata. Pois é, mais pra ficá rico tem que sê o chefe dos pirata, que a gente manda os otários fazê o trabalho e a gente fica com tudo.
CELSO: - Então tu quer sê capitalista e pirata?
TONHO: - É tudo a mesma coisa.
(Os dois meninos deitam no chão para dormir. Passam pela cena o Industrial e o Jornalista).
JORNALISTA: - Veja só esse bairro pobre. O número de pobre está aumentando muito, isso tá se tornando uma calamidade nacional, precisamos fazer alguma coisa. Eu tava pensando em fazer uma campanha no meu jornal e também na TV e rádio por uma melhor distribuição de renda. Vamos fazer uma série de reportagem sobre a pobreza. Essa gente que mora sem as minhas condições.
INDUSTRIAL: - Boa idéia, mas não esquece de que isso só se resolve com mais emprego e mais emprego precisa de mais investimento do governo na indústria.
JORNALISTA: - Onde tu queres chegar?
INDUSTRIAL: - Elementar, meu caro, subsidio, renúncia fiscal, empréstimo a juros privilegiados. O senhor sabe que o governo tem fundos pra isso. Agora mesmo o governo não vai criar um fundo para combater a pobreza? Então, no que ele vai investir esse dinheiro? Vai distribuir pros pobres? Não vai resolver o problema.
JORNALISTA: - Realmente, o senhor tem razão. Dinheiro na mão de pobre gera inflação, melhor gerar emprego na indústria.
INDUSTRIAL: - Isso companheiro. O senhor faz a campanha no seu jornal, o governo sente a pressão da opinião pública, a gente fala com os deputados, eles fazem discursos, dão entrevistas, daqui a pouco a gente tem dinheiro no caixa.
JORNALISTA: - Isso mesmo, vai ser como aquela do bug do milênio, lembra?
INDUSTRIAL: - Claro, como poderia esquecer, ganhei uma fortuna vendendo aparelhos com garantia anti-bug do milênio. (rindo) Teve uma prefeitura que trocou todos os aparelhos de computador e vídeos cassetes das escolas pelos novos com anti-bug. Foi uma coisa maravilhosa.
JORNALISTA: - Por aí o senhor ver o poder da imprensa. Todo dia se falava no bug do milênio. Depois dessa campanha o governo gastou milhões com programas anti-bug e ninguém reclamou, tava todo mundo convencido da existência do bug.
INDUSTRIAL:- Agora é só repetir a dose com a campanha contra a pobreza.
JORNALISTA: - Isso mesmo, vamos mostrar todo dia pobres passando fome, moradores de casas de papelão. Ninguém vai conseguir pensar outra coisa a não ser que a única solução é o governo liberar dinheiro para investimento na geração de empregos.
INDUSTRIAL:- É aí que a gente entra. Fábricas, construção civil, estradas, extração de madeira, tudo com o dinheiro barato. Como a mão de obra também é barata nessas áreas, o resultado será um lucro maior. Dinheiro nunca é demais.
JORNALISTA:- Maravilha. Só nos resta dá um viva a pobreza.
INDUSTRIAL E JORNALISTA (juntos) - Viva a pobreza! (saem abraçados e rindo)
(Entram o homem comum e o policial armado de revólver).
HOMEM: - É aqui, ta vendo eles? É aqui que aquele ladrãozinho de botijão mora. Ta vendo ali? tem dois moleques dormindo.
POLICIAL ( arma em punho): - Vamo lá, vamo acabar com essa raça!
(Policial chega perto dos garotos, chuta Tonho e grita)
POLICIAL: - Levanta, safado, que a lei chegou!
(Tonho e Celso levantam assustados)
TONHO: - Lei? Lei de quem?
POLICIAL: - A lei dos home, otário!. (solta uma gargalhada)
TONHO (para Celso) - Vamo fugir mano, vamo, foge, foge!
(Tentam correr. O policial atira e acerta Celso que cai morto. Tonho consegue escapar).
HOMEM: - Ih! Cara, acho que tu acertou no moleque errado. Esse daí é o vendedor de chopinho.
POLICIAL:- Não tem errada não meu chapa, tudo é ladrão. Esse se ainda num era ia ser. Já abortamo ele da sociedade. É isso que tem que ser feito: abortar, ante que vire marginal.
HOMEM: - Vamo embora que tá vindo gente.
POLICIAL: (faz mais dois disparo pra cima) - E´a lei. Tô avisando, em boca fechada num entra formiga. Tô avisando. É a lei.
(O homem pega o botijão de gás e os dois saem) .
(Entram por um lado João e por outro Dolores. Os dois, chorando, juntam o corpo de Celso e colocam-no sobre a mesa. Sentam-se cada um de um lado e baixam a cabeça. choram com uma das mãos sobre o corpo do menino.
Entram três rezadeiras vestidas com manto preto - uma tira a reza, as outras duas respondem. Vão repetindo a mesma ladainha e saem com o corpo e os pais num cortejo)
1 - Morreu mais um menino na favela
2 - Não foi nada
1- Morreu mais um menino baleado
2- Não foi nada
1- Morreu mais um menino pobre
2- Não foi nada
TODAS:
- Era só um menino da favela
Era só um menino pobre
Era um menino sem nome.

1- Se era pra viver tão pouco
2- Antes não tivesse nascido
1- Se era pra não ser criança
2- Antes não tivesse nascido
1- Se era pra não ser livre
2- Antes não tivesse nascido
1- Se era pra não ter futuro
2- Antes não tivesse nascido.
1- Morreu mais um menino na favela
2- Não foi nada
1- Morreu mais um menino baleado
2- Não foi nada
1- Morreu mais um menino pobre
2- Não foi nada.
TODAS:
- Era só um menino da favela
Era só um menino pobre
Era um menino sem nome.

(Depois voltam João e Dolores. Ela senta-se a mesa)
DOLORES:- Ai, meu Deus, não sei como posso suportar tanta dor, tanto desgosto nesta praga de vida. Num faz três dia que o menino morreu e a irmã dele a Julieta não me aparece mais em casa. E a Alice que fugiu da casa da cumadri Guida.
JOÃO: - Falei com o Tonho. Ele está escondido com uns amigos dele. Vive pela rua guardando carro, pedindo, batendo carteira, essas coisas. Um desgosto de pai criá um filho pra essa vida.
DOLORES: - Vida ? Isso não é vida. Pode até ser meia vida, como essa roupa velha que a gente vai remendando, aquelas pilhas velhas que o seu Lineu esquenta no sol pra ainda ouvi o radinho dele. Mas o que foi que tu falou com o Tonho.
JOÃO: - Perguntei sobre a Julieta. Ele me falou que ficou sabendo que ela se mandou com o tá de Bené Caiado.
DOLORES; - Mas é o Bené Caiado aquele safado que namorava com a Kátia, amiga da Julieta.
JOÃO: - E que já tem uns dois filhos por aí. Um com a Celeste da Carmensinha, que eu sei. È um safado mesmo, embucha filha dos outros e depois larga.
DOLORES: - Ah!, minha filha, coitada! E pra onde ela foi com esse Caiado?
JOÃO: - Disque foram pra Recife. E a Alice? Que que tua cumadri disse?
DOLORES: - Alice num quis ficá lá na casa da dona Guida de jeito nenhum.
Fugiu naquela noite mesmo que eu deixei ela lá. Num sei pronde ela anda. Disque também tá pela rua parecida com o Tonho, virou menina de rua.
JOÃO: - Toda nossa família se acabou de repente. Se a gente tivesse um dinheirinho pra ajeitar essa casa pelo menos. (olhando em volta desolado) Ah! Mas essa vida é mesmo uma pilha fraca. Um salário mínimo que eu ganho, pra que que dá? Pra nada. Malamá pra levar essa meia vida, essa vida mínima.
DOLORES: - Depois que eu tiver esse filho vou operar. Vai ser o último.
JOÃO: - Operar, mas como?
DOLORES: - No hospitá público eles opera de graça. Isso eles faz com maior prazê.. Digo que é pra não nascê mais pobre. Já tem pobre demais no mundo, então, eles tão operando tudo quanto mulher pobre pra não nascê mais pobre. Já num tá cheio de desempregado no mundo?
JOÃO: - Bom, vamos vê se pelo meno este últimozinho a gente cria direito.... Bem, eu não queria nem ti falá, mas é que agora lembrando de nossos filho, me bateu a lembrança de Celso, coitado, morrer inocente assim não deve de ficá sem justiça... Pois é, eu procurei a delegacia pra pedir providência.
DOLORES: - Mas tu é doido home, tu sabe que foi polícia que matô o menino. Eles pode também te matá.
JOÃO; - Mas o que que tu queria? Deixá o menino sem justiça, um inocente?
DOLORES: - E o que que a gente pode fazê? Me diz? Nesse mundo por acaso tem justiça pra pobre? Só se fô de Deus. É o que te digo, melhor entregá pra Deus, sempre há de existi uma justiça.
JOÃO: - Sempre se tem de lutá. Sempre se tem de enfrentá as injustiça, senão como nós vai vivê? Debaixo do jugo dos home cada vez mais humilhado? Mataram esse filho nosso, vão matá outros. Sempre há de tê injustiça, mas
sempre havemo de lutá, senão a vida não vale de nada.
DOLORES: - Bom, nossa vida num vale de nada memo. É vida mínima, vida de nada. Mas ti alembra que nós ainda tem outros filho pra cuidá. Ai, meu Deus, eu tenho memo que sofrê, até meu nome já é Dolores. Nossa Senhora sofreu, mas agora tá lá no céu reinando, mandando e desmandando ao lado de Nosso Senhor, filho dela.
JOÃO: - Num ti precupa. Me deixa ir andando. Preciso de trabalhá por que já fartei dois dia. Um com aquela história de certidão de nascimento que acabei num conseguindo nada, outros dois com a morte do menino Celso, nosso filho, e o patrão lá é bem capaz de me botá na rua.
DOLORES: - Essa semana será que tu vai recebê algum dinheiro?
JOÃO: (Saindo) - Mas quando já! Tô devendo tudo na cantina da firma. Tudo lá é mais caro, mas a gente tem que se assujeitá. Vô vê se eles me aviam pelo meno um quilo de farinha.
(Quando João sai, houve-se tiros fora. Entra Kátia, a vizinha, assustada gritando).
KÁTIA: - Mataram, mataram teu homem, mea mana!
DOLORES: - Meu Deus do céu! Num me diz uma coisa dessa!
(Saem as duas por onde Kátia entrou. Dolores vai gritando e chorando)
DOLORES: - João! João, meu João!... Ai, meu Deus do Céu! É a minha sina, esta vida dolorosa, essa meia sola, pilha fraca, vida mínima. Ai meu Deus, Minha Nossa Senhora!
(Entra o homem-sanduiche )
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(Sai o Homem-sanduíche e entram Tonho, Alice e Julieta)
TONHO: - Vamu esperá que hoje nossa mãe sai do hospitá com o novo filho dela.
JULIETA: - Eu também tô grávida. Já de dois mês, eu acho.
ALICE: - Tu vai ter um nenê do Bené Pintado?
JULIETA: - Num é pintado, é caiado.
ALICE: - E cadê ele?
JULIETA: - Sei lá, sumiu o desgraçado. Me abandonou lá no Recife. Eu tive que me virá pra vortá pra cá. Quase que os home do juizado me pega.
TONHO: - Bem que eu ti falei. Se a gente num se virá a gente se queima só dum lado. Bené Caiado deve é de tá preso, aquele otário. Além de negociar as putas ele também vivia metido com venda de pó. Um dia eu vi o álbu de foto que ele levava pros freguê do hotel quando ele tava aqui. Ele tinha até uma foto da Kátia pelada. Nuazona, a Kátia, deitada numa cama redonda.
ALICE: - Tinha foto da Julieta também?
TONHO: - Não, nesse tempo ele ainda não vivia atrás da July.... Mas eu quero sabê o que que tu vai fazê com esse filho, July?
JULIETA: - Bom, vô ter de tirá ele, já acertei com a Kátia. Ela vai me levá numa mulher que ela conhece.
ALICE: - Uma mata anjo?
JULIETA: - Que mata anjo, menina? É uma mulher que sabe fazê aborto.
TONHO: - Mas tu vai ter corage?
JULIETA: - Que que tu queres? Se eu tiver ele, ele num vai morrer sempre aí na rua, como nosso irmão Celso, nosso pai também? Num vai sê sempre abortado, memo depois de nascido?
ALICE: - Credo, eu que num queria ser abortada.
TONHO: - Tudo nós já somo. Somo memo, aborto memo, da sociedade. Um dia eu tava no banco duma igreja esperando passar uma chuva. O padre lá tava falando de aborto pra um bando de gente grã-fina. Ele dizia que o feto já tem uma alma que se abortá vai tá matando uma alma.
ALICE: - Alma?
TONHO: - É! Ele quer dizer que, disque, o beibe que ainda tá na barriga já é gente. Já sente dor, porque a alma é a parte da gente que sente as dores desse mundo. Mas menino de rua quando matam dizem bem-feito, acham que
a gente não tem alma.
ALICE: - Que a gente não é gente?
JULIETA: - É, é isso memo. Se a nossa mãe tivesse abortado esse que ela teve não ia ter problema nenhum, já vai nascê pobre memo, com essa mema vida mínima que a gente leva.
(Entram duas socialites, passando pela frente da cena. . Uma delas falando ao celular)
SOCIALITE 1 (ao celular): - Mas é claro que eu vou, minha querida, pode contar comigo. Acha que eu ia perder um evento desse. Vai ser chi-queer-ríii-mo. É claro que eu vou.
(desliga e fala para a amiga)
Era a Márcia Cristina Vasconcelos de Medeiros me avisando que vaí me mandar convite para o chá beneficente do Womem Club. Você também Vai, não vai, amiga?
SOCIALITE 2: - Evidente, ela também já me falou, imagine, eu ia perder? Já até acertei com minha personal fashion pra gente ver roupa.
SOCIALITE 1:- Olha, por mim eu prefiro Patrick Puré. É a grife da moda. Quem não veste Patrick Puré não é gente.
SOCIALITE 2: - Concordo com você, amiga. Mas eu gosto de diversificar. Olha que Cristhian Menu também é chiquérrimo, não acha?
SOCIALITE 1: - Caro, amiga, claro. Olha, tenho dois no meu guarda roupa. Mas pra esse chá vou de Patrick Puré, não abro mão.
SOCIALITE 2: - Olha que você gasta mais do que vai doar para a obra de caridade.
SOCIALITE 1: - Mas pra que serve obras de caridade, amiga, se não for pra
gente desfilar nossas jóias e nossos vestidos? A colunista Camille Fire vai está lá. Eu não vou perder a oportunidade de sair na coluna dela. Ah! Adoro me vê no jornal.
SOCIALITE 2: - Eu não compreendo como ainda tem gente que consegue viver sem essas coisinhas básicas: telefone celular, carro importado, grifes da moda, personal treiner...
SOCIALITE 1: - Bem, amiga, acho que não é gente não. (pausa, medita). Mas por outro lado, pensando melhor, imagina se não houvesse gente assim sem essas coisinhas básicas, digamos pobre. Se não houvesse essa segunda classe de gente, quem ia ser porteiro? Quem ia cozinhar? Limpar a casa? Ah! Deus me livre de viver num mundo sem empregados?
SOCIALITE 2: - É, vendo a coisa por esse lado, você tem razão. Sorte nossa de ter nascido no primeiro mundo. E também se não tivesse pobre, como que a gente estaria aqui agora planejando um chá beneficente?
SOCIALITE 1 (rindo): - É o que te digo, amiga, todo mundo tem sua serventia. Deus sabe o que faz. Falar nisso, vamos, que ainda tenho que ir ao salão. Vou alisar um pouco meu cabelo e também preciso fazer as unhas.
(Saem as duas, Entra Dolores com o bebê)
DOLORES: - Ah! cês tudo por aqui? Olhem, venham conhecê o irmão de ocês?
ALICE: - Como é o nome dele? Já tem nome o bichinho?
DOLORES: - Jesus? O nome dele é Jesus?
TONHO: - Jesus? Mas que nome é esse já?
DOLORES: - É que tinha uma mulher lá no hospitá falando tanto que Jesus era a última esperança da humanidade. Este zinho aqui é meu último filho, minha última esperança, então, tive essa idéia de chamá ele de Jesus.
JULIETA: - É, pode ser que ele tenha mais sorte que a gente.
TONHO: - Com um nome desse?
(Todos ficam ao redor da mãe com o bebê. Os outros personagens entram na cena para vê de perto a criança. - Luz centraliza na mãe com o bebê.

FIM





Autor: Jose Luiz Pena Pereira


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