Prerrogativa de função como regra de competência específica para o julgamento dos agentes políticos. Garantia ou privilégio?



Prerrogativa de função como regra de competência específica para o julgamento dos agentes políticos. Garantia ou privilégio?

Silvimar Eugênio Alves


Resumo

A prerrogativa de função, como regra de competência para a fixação do foro para o julgamento de agentes políticos, é uma garantia fundada no texto constitucional e no próprio Código de Processo penal, há muito questionada pela doutrina e chamada por muitos como um privilégio ultrapassado que não mais se coaduna com o nosso Estado Democrático de Direito, ferindo o princípio constitucional da igualdade ao diferenciar o local de julgamento de determinados indivíduos em razão do cargo público que ocupam.

Palavras-chave:
Direito Processual Penal. Direito Constitucional. Regra de competência. Prerrogativa de função.

1 INTRODUÇÃO
A discussão que pretendo levantar no presente artigo, sobre a prerrogativa de função como regra específica de competência para julgamento de agentes políticos, é a cada dia mais discutida na doutrina moderna. Como diz Guilherme de Souza Nucci, "se todos são iguais perante a lei, seria preciso uma particular e relevante razão para afastar o criminoso do seu juiz natural, entendido este como o competente para julgar todos os casos semelhantes ao que foi praticado".
Dessa forma, por que deve o agente político ter foro privilegiado em razão da função que ocupa, se a nossa lei maior, a Constituição Federal, traz a igualdade entre todos perante a lei, como um dos seus princípios fundamentais?
Nas linhas abaixo, pretendo demonstrar por que não há sentido para que perdure no Brasil o julgamento criminal por prerrogativa de foro, levando-se em conta a função do indivíduo, quando se deveria levar em conta a pessoa que cometeu o delito.

2 SOBRE O TEMA
Em razão do cargo público que ora ocupam, alguns cidadãos para serem processados criminalmente têm a prerrogativa de serem julgados por órgãos jurisdicionais superiores, diferentes do foro comum previsto para os outros cidadãos em geral. Tourinho Filho diz que "há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado e, em atenção a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria, gozam elas de foro especial, isto é, não serão processadas e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas, pelos órgãos superiores, de instância mais elevada". Continuando, Mirabete nos explica que tal diferença justifica-se "na utilidade pública, no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência dos tribunais superiores". Tal prerrogativa está prevista nos arts. 69, VII; 84 e seguintes do CPP e na Constituição da República de 1988.

2.1 O princípio constitucional da igualdade frente à prerrogativa de função
Diz o artigo 5º da CF/88: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (...).
Após a leitura do caput do art. 5º e do seu inciso primeiro, torna-se claro que todos os cidadãos brasileiros são iguais perante a lei, não podendo haver qualquer distinção, privilégio ou discriminação entre eles. Igualdade esta consagrada pela Constituição Federal Brasileira como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Dessa forma, todos os indivíduos deveriam, a partir princípio da igualdade, ser julgados no seu juiz natural, sem qualquer distinção ou privilégio decorrente de posição ou poder, sendo o mesmo, contrário à formação de uma sociedade justa e igualitária decorrente de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

2.2 Prerrogativa de função: Garantia ou privilégio?
Excetuados os casos de matéria específica, todos deveriam ser julgados pelo magistrado do lugar da infração ou do domicílio do réu, para que se observasse o princípio da igualdade previsto em nossa constituição e dessa forma não se assegurasse privilégios, mascarados de garantias com os mais diversos pretextos ditos como asseguradores de "uma ordem pública", de "não subversão da hierarquia" e outros mais.
Como podemos acompanhar pela mídia, não é o que acontece, por exemplo, com um prefeito de uma cidade do interior que ao cometer algum crime, tem o direito de ser julgado na Capital do estado pelo Tribunal de Justiça Estadual. Não há motivo suficiente para que isso aconteça, pois se todos prestam contas à Justiça no âmbito cível igualmente, sem qualquer distinção, o normal seria que isso também acontecesse no âmbito criminal.
Não há porque não se confiar numa decisão de um juiz de primeiro grau, temendo que este seja influenciado pela política ou pela mídia, pois ele está tão exposto como estaria outro Magistrado de instância superior, na mesma situação. Ademais, tanto o Magistrado de primeiro grau, quanto outro de instância superior, profere decisões jurisdicionais dentro do seu convencimento, fundadas em lei, não estando submetido a nenhuma autoridade superior e mesmo que seja influenciado por alguma pressão externa e venha a proferir uma decisão entendida como errônea ou injusta, contra esta decisão, do Juiz de primeiro grau, caberá recurso para a instância superior.
Nucci nos fala que "garantir que haja o foro especial é conduzir justamente o julgamento para o contexto do cargo e não do autor da infração penal", pois o Juiz ao julgar o Prefeito, não está julgando o cargo, mas a pessoa que cometeu um delito. Não podemos pensar que o Judiciário teria mais zelo em condenar um Prefeito de uma cidade e dispensaria este mesmo zelo ao condenar um cidadão comum, pois se partimos desse pensamento, haveria dessa forma uma postura discriminatória por parte do Poder que deveria primar pela Justiça.
A prerrogativa de função para julgamentos criminais de autoridades no Brasil é mais uma desigualdade que ainda permanece. Como diz Marcelo Semer: "Reproduzimos, com pequenas variações, a regra antiga de que fidalgos de grandes estados e poder somente seriam presos por mandados especiais do Rei. É um típico caso em que se outorga maior valor à noção de autoridade do que ao princípio de isonomia, com a diferença de que hoje a igualdade é um dos pilares da constituição. (...) Competência processual não se deve medir por uma ótica militar ou por estrato social. Autoridades que cometem crimes devem ser julgadas como quaisquer pessoas, pois deixam de se revestir do cargo quando praticam irregularidades". A partir de tal citação se percebe um resquício muito grande de uma tradição elitista de regimes baseados somente na força, que traziam privilégios pautados no cargo que o indivíduo ocupava, ou da família a qual pertencia.

3 CONCLUSÃO
Por todo o exposto, a prerrogativa de função, apesar de constitucionalmente prevista, não deve mais prosperar no nosso ordenamento jurídico, pois não é condizente com a nossa ordem democrática, sendo fruto de uma tradição conservadora e pautada num poder que valoriza a noção de autoridade em detrimento do princípio constitucional da igualdade. É um privilégio resguardado a alguns que leva em conta o contexto do cargo, quando deveria levar em conta o do autor da infração. Dessa forma, espera-se que num cenário futuro, com o amadurecimento da sociedade brasileira, possamos alterar tal situação e retirar do ordenamento jurídico a figura da prerrogativa de função como regra de fixação de competência.

Bibliografia

MIRABETE, Júlio Fabbrini, Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de processo penal e execução penal ? 5ª Ed. rev. e ampl. ? São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008;

SEMER, Marcelo. A síndrome dos desiguais. Boletim da Associação dos Juízes para a Democracia, ano 6, n.29, jul.-set.2002;

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado, 4ª.ed.São Paulo: Saraiva, 1999.v. 1 e 2;

Site: www.planalto.gov.br, acessado em 10/04/2011.

Autor: Silvimar Eugênio Alves


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