O Paradoxo do direito positivo no ensaio Zur Kritik der Gevalt de Walter Benjamim



Título: O conceito de violência-poder e o caráter paradoxal do poder jurídico em Walter Benjamin.
Orientação: Maria Terezinha Callado.
Autor: José Gilardo Carvalho. (Licenciatura plena em Filosofia ?UECE; Especialista em Filosofia ? Faculdade Faria Brito; Professor de filosofia do Estado e do Município.)
E-mail: [email protected]

RESUMO: Na presente comunicação pretendemos apresentar o conceito de violência-poder em Walter Benjamin (1892 ? 1940), com base no ensaio intitulado Crítica do Poder, Crítica da Violência [Zur Kritik der Gewalt]. Utilizamos como ponto de partida da crítica aqui em questão, a consideração da violência-poder no movimento próprio do texto benjaminiano. Nesse sentido, esta exposição tem a seguinte seqüência: a) A recusa crítica dos pressupostos metodológicos do jusnaturalismo e do positivismo jurídico; b) A definição do procedimento da filosofia da história para estabelecer os critérios para uma avaliação do poder-violência; c) A identificação de dois princípios inerentes ao direito: a violência instauradora da lei (rechtsetzende Gewalt) e a violência mantenedora da lei (rechtserhaltende Gewalt). A partir daí, estabelecemos as seguintes suspeitas ou hipóteses: 1) O direito ou poder jurídico possui uma forma paradoxal de atuação, segundo as dimensões instituidora e mantenedora do poder-violência, ou seja, na medida em que ele se faz valer, ele cria a sua própria suspensão, produz a exceção. 2) Essa contradição não se explicita na letra da lei, não se explica pelo seu caráter formal, mas apenas na realidade no sentido histórico abordado por Benjamin.

Palavras-Chave: Walter Benjamin; Poder-violência. Direito.

1. A proposta de crítica imanente da violência.
Este artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de compreensão do conceito de violência-poder em Walter Benjamin (1892 ? 1940), com base no ensaio intitulado Crítica do Poder, Crítica da Violência [Zur Kritik der Gewalt] , publicado em 1921. Benjamin, segundo o próprio título da obra, visa a realizar uma "crítica" da violência-poder. Mas, como podemos entender essa tarefa? O primeiro ponto a ser esclarecido é a concepção de "crítica" de Benjamin. O segundo ponto, também referente ao título do ensaio, é a ambigüidade do termo "Gewalt", que pode significar tanto "violência" quanto "poder". Segundo Willi Bolle, essa ambigüidade é proposital, na medida em que se apresenta no decorrer do ensaio como um princípio estruturador de todo texto. Para Bolle, a "intenção" de Benjamin é apresentar a tese da origem do direito (poder judiciário) a partir do espírito da violência .
À primeira vista, a afirmação de Bolle poderia oferecer um ponto de partida para o nosso empreendimento, pois, aceitamos, de imediato, a afirmação de que a crítica em Benjamin é imanente, ou seja, ela se desenvolve no sentido de compreender o espírito daquilo que é examinado. Nesse sentido, a crítica deve encontrar as mediações conceituais em que a violência-poder pode apresentar-se como um princípio, ou seja, como critério absoluto que se encontra na base de sua crítica.
O que levanta suspeita na afirmação de Bolle é a compreensão de que a crítica se desenvolve por uma "intenção". Benjamin compreende a crítica fundamentalmente como algo objetivo, com validade universal, isento da particularidade e subjetividade de uma "intenção". Nesse sentido, a crítica deve dar conta de apresentar (darstellen) a verdade, não com uma intenção exterior à coisa, mas, em suas articulações imanentes. Para Benjamin, "a verdade é uma essência não-intencional, formada por idéias. O procedimento próprio à verdade não é portanto uma intenção voltada para o saber, mas uma absorção total nela, e uma dissolução. A verdade é a morte da intenção" .
Com base nas ponderações acima, nosso trabalho tem como ponto de partida da crítica aqui em questão, a consideração da violência-poder no movimento próprio do texto benjaminiano, de modo que os vários estratos de sua significação possam ser contemplados como uma totalidade articulada de modo imanente; e isso não pode se dá tomando uma linha geral norteadora da interpretação, logo de princípio, como acontece se levarmos em consideração a afirmação de Willi Bolle.
Sabemos que Crítica do Poder, Crítica da Violência não é um ensaio ignorado. Basta citar alguns autores reconhecidos da filosofia social e política contemporânea que o referenciam como Carl Schmitt, Hannah Arendt, Jacques Derrida, Giorgio Agamben e Slavoj Zizek. Sem falar, dos vários estudiosos e comentadores de Walter Benjamin. Contudo, este artigo pretende, de princípio, realizar apenas uma leitura imanente da obra, não a inflacionando com os pressupostos políticos e metodológicos de outros autores. Com isso, esta apresentação propõe per si as questões e não as toma de outros, que podem, no entanto surgir como interlocutores futuros à própria interpretação a que este empreendimento visa a constituir .

2. A recusa do jusnaturalismo e do positivismo jurídico pela filosofia da história.
No começo do ensaio Crítica do Poder, Crítica da Violência, a violência-poder é apresentada em uma determinação muito geral, a saber, a de que, independente de quais fins ela sirva, só se efetiva enquanto objeto para a crítica, quando interfere em relações éticas . Com isso, Benjamin não parte de um ponto de vista abstrato que isola a categoria e insere predicados nela colhidos de modo arbitrário, mas, compreende o conceito de violência em suas implicações na multiplicidade das relações humanas. A esfera em que se dá essa multiplicidade é delimitada por dois conceitos que a designam de modo abrangente, a saber, os conceitos de direito e justiça. Nesse sentido, Benjamin busca compreender como a violência-poder pode ser explicada a partir de uma esfera de relações constituída tendo os conceitos de direito e justiça como base.
Dentro do direito podemos perceber que a relação elementar de toda ordem jurídica é a de meios e fins. Se a violência está na ordem dos meios, parece que o critério de sua crítica se encontra imediatamente disponível. Segundo Benjamin, tal critério se impõe com a pergunta: A violência é, em determinados casos, meio para fins justos ou injustos? Assim, a critica poderia estabelecer-se na inserção da violência-poder em um sistema de fins justos. No entanto, a natureza hierárquica e classificatória desse sistema só tomaria a violência em conta nos casos em que ela fosse aplicada. A violência mesma não se constituiria como princípio, e não poderíamos responder a questão se a violência é em-si moral, ainda que fosse meio em vista a um fim justo. Logo, por causa da unilateralidade daquele critério, Benjamin considera a necessidade de um critério mais exato, no sentido de poder distinguir na esfera dos meios . Para tanto, ele vai, primeiramente, buscar compreender os princípios que estruturam duas correntes da filosofia do direito, a saber, o jusnaturalismo e o positivismo jurídico.
A corrente jusnaturalista elimina, de partida, a necessidade de uma distinção na esfera dos meios. Nesse sentido, ela não pode oferecer o critério da crítica, pois para o direito natural, o uso da violência como meio para fins justos é até mesmo desejável, a não ser que aja abuso em seu uso para fins injustos. Para Benjamin, esse ponto de vista não oferece um critério independente para a avaliação da violência-poder, e se revela mais dogmático na medida em que prepara uma forma grosseira da teoria do direito que afirma ser legítimo todo poder-violência quando este se dá inteiramente de acordo a fins naturais .
Diferentemente, o positivismo jurídico busca compreender não a naturalidade do poder-violência, mas como ele foi constituído historicamente e atua sob a forma da lei instituída. Nesse sentido, ele não descarta, de antemão, a necessidade de uma distinção na esfera dos meios, mas visa exatamente a determinar a legitimidade dos meios, para então, justificar os fins a que estes servem. Aqui, a ênfase recai sobre a legitimidade dos meios e é quase indiferente se os fins são naturais, porque devem sempre se por como fins jurídicos. Para Benjamin, ao questionar a legitimidade da violência como um meio, o positivismo jurídico se encontra à frente do jusnaturalismo. No entanto, a diferenciação oferecida pelo positivismo jurídico, não atribui valor ao uso da violência-poder, de modo, que o critério até serve para avaliar o sentido, ou seja, se é ou não legal de acordo com os fins determinados juridicamente, mas não para determinar o valor da aplicação, ou seja, se é ou não justo. Nesse sentido, afirma Benjamin:
Para Benjamin, existe um dogma elementar comum em ambas as correntes: fins justos podem ser obtidos por meios justos, meios justos podem ser empregados para fins justos. Nesse sentido, "o direito natural visa pela justiça dos fins, ?legitimar? os meios, o direito positivo visa ?garantir? a justiça dos fins pela legitimidade dos meios" . Assim, a crítica do poder-violência precisa encontrar uma perspectiva que ultrapasse tanto o direito positivo, quanto o direito natural, já que ambos se revelaram unilaterais, insuficientes e dogmáticos.
O sentido da distinção do poder em legítimo e ilegítimo não é tão evidente assim. Deve ser recusado terminantemente o mal-entendido dos partidários do direito natural de que tal sentido consistiria na distinção da violência para fins justos e injustos. Pelo contrário, ficou claro que o direito positivo exige de qualquer poder uma explicação sobre sua origem histórica, a qual, sob certas condições recebe sua legitimação, sua sanção. Uma vez que o reconhecimento de poderes ocorre, em princípio sem resistência, pode-se tomar, como base hipotética para a classificação dos poderes, a existência ou falta de um reconhecimento histórico geral de seus fins. Os fins que carecem desse reconhecimento podem ser chamados fins naturais, os demais, fins jurídicos.
Como visto na citação acima, a história emerge como a base hipotética de onde a crítica pode estabelecer critérios tanto para a avaliação quanto para a classificação das diversas formas de poder-violência. A filosofia da história é apresentada por Benjamin, como a única perspectiva de ultrapassagem dos pontos de vista jusnaturalista e positivista. Para Benjamin, a compreensão histórico-filosófica de determinadas relações jurídicas oferece a explicação da origem das categorias fundamentais para a crítica da violência-poder. Nesse sentido, Benjamin escolheu algumas relações jurídicas presentes na Europa de seu tempo, no sentido de identificar dois princípios inerentes ao direito: a violência instauradora da lei (rechtsetzende Gewalt) e a violência mantenedora da lei (rechtserhaltende Gewalt).

3. A greve operária e o princípio da violência mantenedora da lei.
Segundo Benjamin, a história mostra que o poder jurídico tende a cercear, através de fins jurídicos, os fins naturais . Nesse sentido o poder jurídico visa a se constituir como o detentor de um monopólio sobre a violência. Como isso se dá? Para Benjamin, o direito busca através de seus aparelhos coercitivos, constantemente retirar do indivíduo o poder. Assim, para o direito, a manifestação de qualquer poder "individual" ? ou seja, que pretenda ir além do ordenamento instituído - é considerado como uma ameaça ao poder jurídico.
Mas, como se torna visível, em termos históricos, o temor do poder que se manifesta como ameaça contra o direito? Segundo Benjamin, a ameaça "sentida" pelo direito ? e que é seguida de uma atuação preventiva do poder ? manifesta-se, do modo mais paradoxal, nos casos em que o emprego da violência é admitido pelo ordenamento jurídico. Noutras palavras, o direito teme exclusivamente o poder que se manifesta em declarada contraposição a ele, a qual ele denomina ilegal, e, além do mais, o direito se sente ameaçado por todo poder que não seja efetuado por ele próprio, inclusive aqueles admitidos pela letra da lei.
O primeiro exemplo dado por Benjamin no sentido de explicitar essa ambigüidade do direito é a greve operária. A greve operária, sob certas condições, pode ser considerada uma violência contra o direito, na medida em que através dela novos direitos podem ser instituídos. Por outro lado, a greve operária, de certo modo é considerada uma omissão da ação, e portanto um meio puro, não-violento. É por isso que ela é legitimada pelo poder do Estado, porque segundo o direito, ela não é um exercício, mas uma subtração do poder. Paradoxalmente, em determinadas circunstâncias, a greve é considerada violência pelo direito, no sentido de que ela pode fazer valer o poder de criar uma nova forma de organização que não foi instituída pelo poder vigente. Nesse sentido, o poder do Estado deve se manifestar contra a greve operária no sentido de conservar-se. Essa função do poder-violência foi denominada por Benjamin de poder mantenedor da lei (rechtserhaltende Gewalt). O paradoxo não pode apresentar-se de maneira lógica, mas tão somente através da compreensão da realidade histórica objetiva. Somente assim, é possível explicitar a contradição do direito, quando este suspende a concessão de legitimidade para preservar-se.

4. A violência instauradora da lei e os casos da guerra e do grande bandido.
Benjamin apresenta dois exemplos que podem demonstrar a tese de uma origem violenta do direito. O primeiro é a violência de guerra, que é vista enquanto primitiva e arquetípica de toda violência para fins naturais. Toda violência de guerra possui inerentemente um caráter legislador, ou seja, ela é instituidora do direito. Para Benjamin, o poder-violência na sua função instituidora tem como característica legislar, ou produzir o direito, com base na vitória, com base nos vencedores. Nesse sentido, a violência de guerra seria o modelo de origem de todo ordenamento jurídico. Então, perguntamos: o direito é constituído sempre de maneira assaltante? Se o direito tem uma camada privilegiada como sua instituidora, não é contraditória essa origem com a forma pretensamente universal em que aparece? Se o direito premia e cristaliza a vitória, ele não se constitui como um obstáculo para a criação humana, para a formação de uma diversidade de formas de vida que lhe ultrapassa?
O segundo exemplo a demonstrar o caráter instaurador da lei pelo poder-violência é o caso grande bandido. Neste caso, o direito vê-se confrontado com a sua origem, pois, o comportamento violento do grande bandido poderia instituir um novo direito. Nesse sentido, o grande bandido é tão temível quanto a greve operária. Com a figura do grande bandido é possível perceber que o fundamental para a função mantenedora do direito não é a legitimidade da ação, mas o seu caráter ameaçador para a ordem jurídica instituída. O grande bandido realmente pode instituir um novo direito? Benjamin afirma que não. Mas, não exclusivamente pela eficácia do direito, mas sim pela ação do destino . Assim, o destino poderia oferecer uma ordem que pode favorecer ao direito, que pode ser apropriada pelo poder-violência. O problema do destino retornará mais a frente, mas sob um novo ponto de vista, a saber, sob a ultrapassagem e independência em relação ao direito, porque esse conceito tem, segundo Benjamin, o divino em sua origem. Nesse sentido, o destino é apropriado pelo direito, mas não na sua integralidade, e sim em uma forma deturpada, desfigurada e mítica.

5. A origem mítica do direito e os casos do serviço militar e da pena capital.
Como vimos acima, podemos vislumbrar uma articulação das funções instituidora e mantenedora do direito nos casos da greve operária, da guerra e do grande bandido. Mas, existe uma figura muito boa segundo Benjamin para explicitar essa articulação: o serviço militar obrigatório . A instituição da obrigatoriedade do serviço militar apresenta essa duplicidade das funções da violência-poder. Neste caso, cada indivíduo conta para o militarismo apenas no que serve à ordem de destino imposta pela violência-poder. Ou seja, cada indivíduo deve atuar no sentido de manter, ao mesmo tempo faz valer, institui, a ordenamento político vigente. Com isso, uma crítica do serviço militar obrigatório não pode decair em um mero pacifismo, pois de nada vale reivindicar paz e se ausentar pura e simplesmente da luta política, sem criticar o todo do poder judiciário, legal e executivo. No extremo oposto do pacifismo está o anarquismo. Para Benjamin, o anarquismo também condena o serviço militar sob a alegação de que o indivíduo não pode ser submetido a um aparelho estatal que aliena a sua vontade. Ora, o anarquismo promulga ser válido tudo que advém da vontade individual não passa de uma infantilidade, se o seu norte não for uma crítica do poder mediada por uma reflexão ética e histórica. Pacifismo e anarquismo pecam por efetuaram, em contraste, uma abstração da realidade na qual a ação se insere.
Como visto, para Benjamin, o interesse da humanidade consiste na apresentação e conservação de uma ordem de destino. Esta se encontra na base de toda ordem político-jurídica e ao mesmo tempo, cabe à crítica tomá-la do ponto de vista mais abrangente do que aquele circunscrito pela ordem. Ora, como visto acima, a violência não é pura e simplesmente aquilo que interfere nas relações éticas que constituem a normalidade. Pelo contrário, a violência é imanente à normalidade instituída e mantida pelas relações éticas sustentadas pelo ordenamento jurídico e político. A interpelação por essa ordem de destino é totalmente impotente, quando não questiona o próprio corpo da ordem jurídica, mas apenas leis ou costumes jurídicos isolados. A infantilidade do anarquismo se apresenta em abstrair a realidade na qual a ação se insere. Esse comportamento é o fundamento de todo individualismo ético, do tipo que se baseia em Kant e na boa vontade. O liberalismo é outro exemplo dessa postura abstrata. Os liberais vêem no poder mantenedor do direito apenas uma intimidação. Para Benjamin, esse não se dá conta dos liberais, os faz passar, no mínismo, por desinformados, na medida em que, não eles não consideram que a indefinição da ameaça do direito corresponde à indefinição da ordem de destino da qual o direito se origina.
Para Benjamin, um indício mais precioso que corroboraria a tese de uma origem violenta do direito se encontraria na área das punições, no exemplo da pena de morte. Neste caso, é manifesta a origem do direito pela violência, a violência coroada pelo destino. Fica patente que na instituição do poder sobre vida e morte, expresso sob a forma jurídica da pena capital, é explicita a origem do poder-violência, na sua interferência significativa na ordem existente, manifestando-se deste modo terrível.

6. Polícia, contrato e parlamento: da necessidade da contestação.
Como visto anteriormente, o poder instaurador defende o direito sob o ponto de vista de uma legitimação da vitória, enquanto o poder mantenedor visa a não permitir novos fins. Segundo Benjamin, a polícia se libertou dessas duas condições que foram tão importantes para compreendermos a origem do direito. Nesse sentido, a polícia se apresenta como uma mistura espectral contrária à natureza. A polícia, embora se possa considerar que defende a ordem jurídica, atua, por princípio para além do direito. Para Benjamin, a polícia não tem situação jurídica definida, e muitas vezes simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência a fins jurídicos. Para Benjamin, ao contrário do direito que reconhece uma categoria metafísica, a saber, a ordem de destino, graças à qual pode se estabelecer uma crítica, a polícia não encontra nenhuma essência, nenhuma forma, sendo um verdadeiro espectro onipresente na vida dos países civilizados.
Com base, na compreensão de que todo direito possui em sua origem uma violência, Benjamin mostra a natureza violenta do contrato e do parlamento, que poderiam ser considerados aparentemente não-violentos. Para Benjamin, a solução de conflitos totalmente não violenta não pode jamais desembocar em um contrato jurídico, porque tanto o resultado (a ameaça de uma punição), quanto a origem de todo contrato se remete a violência oriunda do direito. Do mesmo modo, o parlamento não pode ser considerado uma forma não-violenta, na medida em que todas as suas decisões estão aparadas também no direito. Para Benjamin, o que o parlamento consegue alcançar em assuntos vitais, só podem ser as mesmas ordens jurídicas marcadas, tanto na origem quanto no resultado, pela violência. Para Benjamin, o pressuposto objetivo da não-violência é a linguagem. A linguagem é o meio pelo qual se expressa um poder muito diferente do poder mítico. O poder que os homens têm de resolver seus problemas através da linguagem é da ordem do divino!

7. Poder divino e poder revolucionário: da possibilidade de ruptura.
A guisa de conclusão, gostaríamos de explicitar melhor a distinção levantada no tópico anterior entre poder divino e poder mítico. Nesse sentido, o texto benjaminiano revela além da existência do poder mítico e do poder divino, o poder puro por parte do homem. Este pode ser identificado como poder revolucionário. Como visto, o poder mítico, que dá origem ao direito, é definido como um poder sangrento sobre a vida. Esse poder busca ser um fim em si mesmo, submetendo o destino humano ao seu arbítrio. Ao passo que o poder divino é um poder puro sobre a vida toda. Não é um modo unilateral imposto violentamente como normalidade onde deve se dá as relações humanas, mas, para o poder divino a vida, em sua infinidade, é o seu fim. O primeiro poder exige sacrifícios, o segundo poder os aceita. Enquanto o poder mítico é instituidor do direito, o poder divino é destruidor do direito. O poder mítico estabelece limites, o poder divino rompe os limites. O poder mítico é autor da culpa e da penitência, enquanto, o poder divino absolve da culpa. Por fim, o poder mítico é ameaçador e sangrento, o poder divino é golpeador e letal, de maneira não sangrenta.
A manifestação mítica do poder mostra-se idêntica a todo poder jurídico, de modo que não podemos deixar de levantar a suspeita de sua função histórica possuir um caráter nefasto. Nesse sentido, o desenvolvimento do poder jurídico tem na sua origem um processo de culpa da vida pura e natural, a qual entrega o ser humano inocente e infeliz à penitência. O poder divino, pelo contrário "expia" a vida de sua culpa e também absolve o culpado, mas, não exatamente de uma culpa, mas sim do próprio direito. Benjamin acredita que podemos encontrar o poder divino não apenas na revelação, e na vida religiosa, mas também na educação. Benjamin acredita que através da educação, o homem não submete totalmente o seu ser ao direito, porque a sua alma se mantém livre.
Nosso artigo buscou mostrar que a dupla função do poder-violência na institucionalização do direito utiliza de um lado a violência como meio de instauração; e de outro lado, a transforma imediatamente em uma violência mantenedora do direito, que por sua vez não tem um fim livre e independente da violência (Gewalt) mas um fim compulsório e intimamente vinculado à violência, sob a designação de poder como força (Macht). O poder enquanto meio é instituidor ou mantenedor de direito. Não reivindicando nenhum desses dois atributos, renuncia a qualquer validade . Nesse sentido, a força é a origem, o meio e o fim do direito, e não a justiça, como muitos haveriam de supor. A justiça retorna ao centro da crítica da violência, sob o conceito de poder divino. É através da justiça que podemos apontar as rupturas nas trajetórias do poder. Para além do direito, e com base na justiça, a crítica pode ter realmente um efeito modificador da realidade. O poder (Macht) deve ser abolido, na medida em que é o princípio de toda institucionalização mítica do direito, enquanto a justiça, deve valer não somente para a crítica, mas também para o poder revolucionário do homem como princípio de toda instituição divina de fins válidos universalmente.

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Autor: José Carvalho


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