A falange hoplítica na Grécia Antiga: transformações do período Arcaico (sécs. VIII-VI a.C.)





Tirteu, Fragmento II, 31-34 (=8 Diehl)
"Que ele se coloque pé contra pé e que force seu escudo contra um outro escudo,
Cimo contra cimo e elmo contra elmo.
Que ele aproxime seu peito de um outro peito e se bata contra seu adversário,
Cerrando firmemente em sua mão sua espada ou sua lança."

Calinos, Fragmento, I, 5-19
"Que ele possa arremessar sua lança uma última vez enquanto agoniza,
Pois é honroso e glorioso que um homem combata
Por seu país, seus filhos e sua amada esposa
Contra o inimigo. A morte virá
Quando o destino quiser,
Mas todos, humildes e grandes, portam o mesmo luto quando um guerreiro sofre.
O sofrimento desse homem de alma forte alcança todo o povo,
Caso ele morra. Se ele vive, ele recebe as honras devidas aos heróis."

Os versos dos poetas elegíacos Tirteu e Calinos parecem evocar, abstraindo-se o seu valor puramente poético ou estético, a questão fundamental do despertar de uma nova forma de combate no mundo grego, do combate em massa de um grupo ordenado e coeso, isto é, a falange hoplítica arcaica. Tirteu foi, ao que parece, contemporâneo da Segunda Guerra Messênia, ocorrida na segunda metade do século VII a.C., por volta de 640-50 a.C. Calinos (séc. VII a.C.), como seu contemporâneo Tirteu, notabilizou-se pela composição das provavelmente mais antigas poesias do gênero elegíaco. Os versos de ambos os poetas permitem elucidar vários aspectos do combate hoplita e suas táticas guerreiras, já então ressignificadas em termos de inovações técnicas.

Mas é sobremaneira mais relevante a esta análise, para além dos aspectos estratégicos de guerra, situar os eventos em relação ao grande momento de transição no qual se inserem, momento crucial e notavelmente marcado por profundas vicissitudes nas sociedades helênicas, e que corroboram no sentido de apontar um novo eixo organizacional de importância inconteste na história grega que se lhe segue: a realidade da pólis, da cidade-estado por excelência. Não se trata aqui de sugerir qualquer relação de monocausalidade entre a chamada Revolução Hoplítica e o tipo de comunidade política que ela reflete, como se uma fosse necessariamente a razão para a existência da outra; nem tampouco poder-se-á dizer que um conjunto de causas definidas possa esgotar o processo. Mais interessante para este estudo será perceber os fenômenos históricos que permitem entrever a passagem de uma época para outra onde os elementos organizadores da vida social e da política são visceralmente distintos, fenômenos que carregam em si a vantagem de explicitar a problemática complexa de transição histórica, ainda que eles sejam só uma manifestação parcial desse processo.

A guerra hoplita é, sem dúvida, também reflexo de transformações consideráveis do ponto de vista militar. Tanto pelos progressos técnicos decorrentes da substituição progressiva do bronze pelo ferro na fabricação de armas e instrumentos, por exemplo, quanto pelas novas formas de guerrear num exército compacto, a falange hoplítica. A falange grega definia-se como tropa de infantaria disposta em várias fileiras, de forma a preencher os espaços vazios e formar um grupo compacto, o que, nas palavras de Tirteu, equivaleria a dizer "firmemente e lado a lado" (Tirteu, Fragmento II, 11-14); a imagem é de soldados combatendo juntos, a cada linha, as fileiras do exército inimigo. Os soldados parecem marchar a um só passo, unidos pela solidariedade e ensinados na disciplina guerreira. A fuga do homem de guerra é vergonhosa não por ele mesmo, mas por romper com os laços estreitos que solidificam a ética de guerra, valores que são estranhos e transcendentes à bravura individual do guerreiro não vinculado a um corpo definido coletivamente. Assinale-se como referência a esclarecedora cena de batalha encontrada no Vaso Oinochoe Chigi, peça coríntia datada de cerca de 650-40 a.C., que nos ajuda a visualizar uma cena de combate entre dois exércitos, cujos guerreiros parecem avançar em conjunto. É claramente a falange hoplítica que podemos detectar nessa representação, feita quase contemporaneamente aos versos de Tirteu e Calinos de que aqui nos ocupamos, e onde os elementos marcadores da individualidade guerreira entre membros do mesmo exército são praticamente nulos ou absolutamente secundários. Chama-nos a atenção, na cena representada, a existência de um homem sem armas no centro do combate, diferenciado dos outros pelos trajes e pelo fato de estar tocando uma flauta. Significa dizer que os acordes desse instrumento de sopro deveriam marcar o ritmo da marcha dos guerreiros, mantendo a coesão dos integrantes da falange e incitando-os para a batalha iminente. E isto porque lhes caberia combater juntos, instruídos na disciplina de grupo e encorajados pelo mérito das batalhas valorosas, por uma recompensa que não é a glória enobrecedora dos heróis: "é um bem que pertence em comum à cidade e ao povo inteiro" (Tirteu, Fragmento 1213-1220 (= 9 Diehl)). Ainda que a derrota sobrevenha, que o luto das perdas e o sofrimento alcance todos os combatentes (e o sofrimento de um homem de "alma forte" alcança todo o povo, segundo Calinos, mostrando que a identidade do "herói" é coletiva), mostrar-se-á "honroso e glorioso que um homem combata/Por seu país, seus filhos e sua amada esposa...".

O estilo da guerra homérica, estilo que vemos diluir-se perante as modificações apontadas acima, pode oferecer-nos as possibilidades de contrastabilidade entre duas épocas tão distintas. Uma que já se despede, deixando velhos traços e apagando outros, e outra que paulatinamente se erige em torno do ideal da coletividade. Com efeito, a atividade guerreira no período Homérico não pode ser desvinculada da tessitura social que lhe envolve e das suas relações com o exercício do poder, da autoridade propriamente dita. E isso porque aqui (no período Homérico) estamos no patamar das realidades domésticas, por excelência o universo do oikos, o nível das grandes unidades familiares sobre as quais se equaciona toda a organização social. A tônica desde então, desde o início do período Homérico e que continuará caracterizando o universo das pólis (no sentido de jamais se reunirem sob um macro-estado territorial grego, no entender do século XIX), será a fragmentação e pulverização do exercício da autoridade. As famílias aristocráticas têm um raio de atuação relativamente curto, e é justamente a articulação desses pequenos núcleos de poder que permite entrever os pilares organizacionais dessa sociedade: as relações de parentesco e reciprocidade (ou de hospedagem) que cimentam os núcleos que são por natureza desagregados. É essa razão interna e orgânica às relações sociais que mantém o equilíbrio das unidades, de modo que seu rompimento pode significar justamente o esgarçamento do tecido social: eis uma justa razão para a guerra.

E a guerra não ocupa de modo algum um papel marginal na vida da aristocracia homérica. Boa parte dos fatos centrais narrados nos poemas homéricos remete ao período Micênico, como é o caso da Guerra de Tróia, mas são também ricas fontes informativas do período que se lhe segue, da sociedade grega da "Idade das Trevas". Seus poemas também podem ser importantes no sentido de levantar aspectos da vida da aristocracia guerreira, certamente a camada mais rica e poderosa da sociedade, a quem cabia tomar as decisões relevantes no tocante à coletividade. À guerra homérica correspondiam idéias, valores e comportamentos que eram essencialmente aristocráticos. A atividade bélica não se restringia ao fito de derrotar exércitos inimigos, mas identificava-se intimamente com o código de valores aristocrático a que servia: a guerra é um caminho em direção ao prestígio e a glorificação no campo de batalha, atributo da heroicidade individual que se conquista pela bravura e pela honra. Não necessariamente a vitória, mas a entrega viril e despojada que converge para a morte, quando se defende bravamente os valores e a ancestralidade, não é de somenos importância para outorgar a glória regozijante da batalha. As palavras de Homero refletem essa forma de guerrear, como nos ensina a aspiração de Heitor durante a Guerra de Tróia: "Atirando sobre ele a terra, erguerão um túmulo sobre as bordas do imenso Helesponto. Assim, no futuro, ainda que longínquo, quando se atravessa o mar, exclamar-se-á: "Vede lá a tumba de um guerreiro morto outrora, de um valoroso que foi morto arrostando-se com o brilhante Heitor". Assim falarão, e minha glória jamais perecerá".

Assim, percebemos que o modo de guerrear por si sofreu alterações consideráveis no período Arcaico, juntamente a uma série de transformações sociais e políticas profundas, não raro tumultuosas e explosivas. Não há mais espaço para heroísmos individuais; a glória já não pertence exclusivamente ao indivíduo. A guerra é planejada de forma coordenada e conjunta, de forma que todos e cada um participem na sua posição: "Se cedem é o fim da coragem (areté) de todos" (Tirteu, Fragmento II, 11-14), já que também a vida de cada um depende de seu companheiro. Não nos parece que o exaltado heroísmo dos aristocratas homéricos tenha desaparecido; como escreveu Calinos: "O sofrimento desse homem de alma forte alcança todo o povo,/Caso ele morra. Se ele vive, ele recebe as honras devidas aos heróis". Mas esse heroísmo, espécie de valentia ou bravura, se preferirmos, foi certamente ressignificado: já não é o heroísmo que glorifica o guerreiro, mas que é revertido para o usufruto da coletividade, de uma comunidade que é definida enquanto corpo de cidadãos e na qual as diferenças, em nível de direitos, são assombrosamente minimizadas. Já estamos em condição de dizer, dessa forma, que começa a despontar no período Arcaico uma razão política que se sobrepõe ao espaço restrito e familiar que constituía as relações do oikos, um princípio abstrato articulador de relações que antes só se fariam pelos privilégios do sangue e do parentesco. Podemos dizer que o espaço de organização guerreira típico da guerra hoplita é também similar ao das realidades cívicas: há uma igualdade muito grande entre os membros da falange, tanto no nível da vestimenta e dos armamentos quanto no nível organizacional e estratégico. Igualmente não se pode distinguir entre seus integrantes traços de superioridade econômico-social que permitam elevar suas posições em postos de comando ou em termos de honrarias particulares. Assim também se processa no corpo de cidadãos: há uma igualdade surpreendente no seu interior, no seio de seu espaço institucional e político (não necessariamente igualdade econômica; as desigualdades sociais convivem muito bem, até certo ponto crítico, mesmo com a democracia); é até difícil dizer-se se trata de realidades mais aristocráticas, como Esparta, ou notavelmente democráticas, como Atenas.

Não são mais apenas os grupos militares aristocráticos que dominam a guerra no período Arcaico; novas camadas da população, antes excluídas dos privilégios hereditários, são agora incorporadas na falange hoplítica. Isso não apenas como resultado de novas tecnologias e técnicas, mas de toda uma complexa miríade de transformações que vigorava no sentido de romper com velhos laços familiares, que agora geravam tensões e insatisfação entre setores populares: muitas cidades decidiram-se por uma opção externa, como a colonização, a fim de canalizar tais conflitos latentes. A economia crescia e diversificava-se, camadas ligadas à economia mercantil ascendiam por sobre a aristocracia tradicional (há que se colocar a ressalva de que boa parte dessa camada mercantil pode ser constituída de aristocratas "renovados"). Com isso queremos dizer que a Revolução Hoplítica se encontra no bojo de um processo amplo de modificação das realidades gregas e da própria identidade do guerreiro: já não é mais o aristocrata-guerreiro, o homem que luta por sua própria honra e glória, mas o cidadão-guerreiro, que revela pleno pertencimento à comunidade por meio do exercício da guerra. Diz-nos Luciano Canfora que "é cidadão, faz parte de pleno direito da comunidade através da participação nas assembleias deliberativas, quem é capaz de exercer a principal função dos homens adultos livres, isto é, a guerra" (CANFORA, O Homem Grego, p. 108). Acresce-se que a adoção da falange hoplítica faz parte de uma tendência para a constituição de uma sociedade isonômica (Christian Meier) no mundo grego, pela afirmação da "presença política por parte de todos os indivíduos armados e, por isso mesmo, "cidadãos"".

Sublinhe-se que em Atenas, por exemplo, a noção de cidadão-guerreiro por muito se identificou com a de rico; segundo Moses Finley, "os hoplitas deviam equipar-se de seu próprio bolso e não recebiam qualquer pagamento além de um modesto per diem quando prestavam serviço ativo. Por essas razões, eram recrutados do setor mais rico da população" (FINLEY, Democracia antiga e moderna, p. 97). O alargamento da cidadania, segundo esse autor, está intimamente ligado ao nascimento do império marítimo ateniense, cerca de um século após Sólon, elevando à condição de cidadãos-guerreiros até os que nada ou pouco possuíam como marinheiros da mais poderosa frota do mundo grego. Há que se chamar atenção para o fato de que Atenas não gozou da esplendida válvula de escape do mundo grego: não optou pela opção externa da colonização, tônica de muitas cidades durante o período Arcaico, mas aguerriu-se ao poder de reformulação das suas leis internas para solucionar a crise. Desde as reformas transformadoras de Sólon (que foram imprescindíveis, no sentido de substituir uma estrutura política oligárquica por um princípio fixo, baseado na lei) até o estabelecimento da democracia tal qual por Clístenes, o que se percebe é um acelerado processo de consolidação das novas instituições e valores decorrentes de certas tendências mais gerais e antigas que apontamos: a "isonomia" no mundo grego, a igualdade em relação ao nómos e as identidades comuns de uma coletividade (ou corpo de cidadãos) que se sente pertencente a uma unidade sócio-política maior, a cidade-estado. E à medida que essa cidade-estado se consolida como modelo político o combate coletivo na falange tende a consolidar-se; é um reflexo e um elemento constitutivo dessas transformações. Não demoraria muito para que as camadas participantes da guerra exigissem também a participação política. O próximo passo seria a isocracia, a democracia, a igualdade especificamente no nível das relações políticas... Mas isso pertence à outra discussão.

Enfim, o que queremos sublinhar aqui é a importância da formação da falange hoplita e das novas estratégias de guerra (refletidas nos versos de Tirteu e Calinos que brevemente observamos), não como fim em si, mas como correlativas a um movimento geral e imprescindível de formação da pólis que marcaria toda a história grega posterior. A cultura da cidade-estado estendeu-se surpreendentemente no tempo e no espaço, segundo Mogens Hermam Hansen, e pode-se dizer que cerca de 1500 póleis, nunca existindo ao mesmo tempo, tenham compartilhado das características essenciais desse tipo de formação sócio-política. Os próprios gregos tinham a firme convicção, como escreveu Hansen, que constituíam um único povo marcado por quatro características essenciais, segundo Heródoto: "common origin, common language, common sacred places and cults, and common customs and traditions" (HANSEN, Polis, p. 36). Ainda mais, como havíamos dito, os gregos mantiveram sua cultura da cidade-estado ao longo de quase toda a Antiguidade e não fizeram o menor esforço de reunir as pólis numa espécie de grande estado territorial no sentido do século XIX. A guerra hoplita é também, não apenas isso, uma instituição educada pelas realidades cívicas, uma de suas manifestações mais expressivas; assim como poderíamos falar das manifestações artísticas, como o teatro, das instituições religiosas, dos instrumentos de identificação comunitária, como a moeda... É a vida da pólis que vemos emergir com total vigor, e que revolucionaria as mentalidades e o modo de vida da coletividade. Assim, como escreveu Hansen, "the institutions of the polis educated and moulded the lives of the citizens, and to have the best life you must have the best institutions and a system of education conforming with the institutions" (HANSEN, The athenian democracy in the age of Demosthenes, p. 320).




Autor: Rodrigo Marzano Munari


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