A LIBERDADE EM KANT



A LIBERDADE EM KANT
Geovane Mariano de Siqueira

Resumo: O presente artigo remonta a questão da liberdade em Kant, que deve ser vista na relação com a filosofia prática do direito. Portanto, interessa precisar o conceito de liberdade interna e externa, relacionando a primeira com o princípio da autonomia, bem como a distinção entre moral e direito. Inicialmente, para mostrar que a liberdade é um conceito racional puro que se encontra completamente desconectado da experiência. Segundo, para enfatizar que o conceito de liberdade comprova a sua existência através de leis derivadas da razão pura para efetivação de escolhas, que são oriundas de princípios práticos. Concluirei que a liberdade é ponto fundamental de todo o sistema kantiano e condição da lei moral, e que o estado na qualidade de liberdade externa garante a coexistência das liberdades individuais.
Palavras-chave: Kant, liberdade, direito, moral, estado.

Abstract: This article relates to issues of freedom in Kant, which must be seen in relation to the practical philosophy of law. Therefore, it is interesting to define the concept of freedom internal and external, relating to the first principle of autonomy as well as the distinction between morality and law. Initially, to show that freedom is a pure rational concept which is completely disconnected from the experience. Second, to emphasize that the concept of freedom proves its existence by laws derived from pure reason for the execution of choices, which are derived from practical principles. Conclude that freedom is a fundamental point of the entire system and condition of the Kantian moral law, and that the state as guarantor of freedom outside the coexistence of individual liberties.

Key words: Kant, freedom, law, moral, state.







1 Introdução
De início, faz-se necessário ressaltar que a liberdade é um conceito racional puro, ou seja, isso significa que ela se encontra completamente desconectada da experiência. No uso prático da razão, o conceito de liberdade comprova a sua existência através de leis derivadas da razão pura para efetivação de escolhas, que são oriundas de princípios práticos, os quais independem de quaisquer condições empíricas, demonstrando uma vontade pura no sujeito, da qual nascem os conceitos e as leis morais.
A liberdade é um conceito que se torna o ponto nodal de todo o sistema kantiano, ao passo que a sua realidade é denotada por uma lei irrefutável da razão prática. Portanto, Kant denota a partir daí que outros conceitos, como o de Deus e da imortalidade, enquanto simples ideias continuam no âmbito da razão especulativa, somente adquirindo consistência e realidade objetiva quando ligados com o conceito de liberdade, a qual é revelada através da lei moral.
A função da liberdade externa, que é representada pelo estado, é a de garantir a coexistência das liberdades individuais. Enquanto a constituição da doutrina do direito é configurada quando o estado, através do seu poder coercitivo, isola o sujeito que esteja ameaçando a liberdade do outro.
O que aqui se busca é a questão da liberdade em Imannuel Kant, pois tal liberdade deverá ser vista na relação com a filosofia prática do direito. Portanto, interessa precisar o conceito de liberdade interna e externa, e o interesse destas para uma fundamentação de necessidade na constituição de uma doutrina do direito, capaz de coagir o arbítrio individual através de normas jurídicas representadas pelo poder estatal.
Para Kant, as leis da liberdade chamam-se morais para distinguir-se das leis da natureza. Enquanto se referem somente às ações externas e à conformidade à lei, chamam-se jurídicas; se, porém exigem ser consideradas em si mesmas, como princípios que determinam as ações, então são éticas. A ação moral é, pois cumprida, não em virtude de um fim, mas tão somente pela máxima que a determina. Ela é posta em movimento por uma inclinação interior, que é o imperativo categórico. Assim, a legislação que erige uma ação como dever, e o dever ao mesmo tempo como impulso, é moral. Aquela, pelo contrário, que não compreende esta última condição na lei e, que consequentemente, admite também um impulso diferente da idéia do próprio dever, é jurídica.
. Portanto, é dever externo manter as próprias promessas em conformidade com um contrato, por exemplo, mas o imperativo de fazê-lo unicamente porque é dever, sem levar em conta qualquer outro impulso, pertence somente à legislação interna. Temos, pois, em conformidade com a perspectiva adotada por Kant, que a distinção entre moralidade e juridicidade é puramente formal, pois diz respeito à forma de obrigar-se, e não ao objeto das ações.
2 O conceito de liberdade
A doutrina moral kantiana está fundada sobre a liberdade, a que se chega por constrição do mundo causal. A liberdade é encontrada na razão prática, ou seja, na vontade. Portanto a vontade é a própria razão prática. Isso implica afirmar que a liberdade pode ser explicitada a partir do conceito de vontade. Nesse viés, assinala Kant:
O conceito de liberdade é um conceito racional puro e que por isto mesmo é transcendente para a filosofia teórica, ou seja, é um conceito tal que nenhum exemplo que corresponda a ele pode ser dado em qualquer experiência possível, e de cujo objeto não podemos obter qualquer conhecimento teórico: o conceito de liberdade não pode ter validade como regulador desta e, em verdade, meramente negativo. Mas no uso prático da razão o conceito de liberdade prova sua realidade através de princípios práticos, que são leis de uma causalidade da razão pura para determinação da escolha, independentemente de quaisquer condições empíricas (as sensibilidade em geral) e revelam uma vontade pura em nós, na qual conceitos e leis morais têm sua fonte (MC, III. p. 64).
Para Kant, o homem encontra-se subordinado às leis da natureza, de onde advém o determinismo e, concomitantemente, as leis da liberdade que originam a moral. Esse argumento redunda no fato de o homem possuir condições de autolegislar-se, bem como de que ele é quem motiva os fenômenos existentes no mundo. Dotado de razão, capta que essa moral, é livre e determinante, e é isso que o diferencia dos animais. É justamente no âmbito da razão que podemos perceber que a liberdade prática ou a independência da vontade pode ser vista quando a razão nos propicia regramentos. E aí vem à tona o que devemos ou não fazer. Essa experiência interior remonta à ideia de liberdade independente da vontade de motivos empíricos, como causa da razão capaz de determinar a vontade de agir ou não através de impulsos, sensíveis isto é, eivados de interesses.
A independência da vontade de motivos empíricos está integralmente relacionada com a fundamentação da moralidade kantiana, em razão da moralidade implicar o conceito de autonomia, pois para Kant todo homem é autônomo. Isso resulta na existência de uma vontade livre de motivos sensíveis. E a partir de então, relaciona-se a ideia de liberdade com a de autonomia. Essa relação é percebida como liberdade referente a direcionamentos desconhecidos pelo homem e como liberdade da faculdade da vontade capaz de permitir a autolegislação.
Indubitavelmente, Kant precisou dessa liberdade, relacionada à dimensão racional do homem, para construir a sua teoria moral. O seu argumento encontra fundamento na ideia segundo a qual sempre que nos pensamos como livres, reconhecemos a consciência da possibilidade de autonomia. Por conseguinte, como ser racional, o homem é dotado de uma vontade livre, capaz de elevada função a fim de permitir a moralidade.
2.1 A liberdade interna e a autonomia
A doutrina moral kantiana encontra-se alicerçada na liberdade. Assim sendo, na introdução à Metafísica dos costumes, a liberdade é um conceito racional puro, que independe da experiência, isto é, um conceito tal que nenhum exemplo que corresponda a ele pode ser dado em qualquer experiência possível de cujo objeto não se pode obter qualquer conhecimento teórico (Cf. Kant, 2003, p. 64). Destarte, o conceito de liberdade não pode ter validade como princípio constitutivo da razão especulativa, mas exclusivamente como seu princípio regulador. Já no uso prático da razão, o conceito de liberdade comprova sua existência por meio de princípios práticos, que são leis de causalidade da razão pura para determinação de escolhas, independentemente de quaisquer condições empíricas que denotam uma vontade ? que origina conceitos e leis morais ? pura em nós. Por isso a liberdade interna encontra-se determinada na moral. Ela se oriunda da nossa liberdade interior, de onde se determina o dever, ocorrendo uma situação autônoma, em que o sujeito está munido de uma liberdade que apresenta impedimentos que se originam dele mesmo
Um imperativo categórico que objetiva mencionar o que é uma obrigação, pode ser assim contemplado: "age com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei moral". Nessa esteira, o sujeito deve obedecer a um parâmetro que seja aceito pelos demais, caso contrário não agirá moralmente. Vislumbra-se aqui a idéia do exemplo dado a fim de ser seguido; porém há limitações numa máxima, encontrando-se uma limitação da liberdade, isto é, a liberdade para ser liberdade tem que ter um parâmetro, não é ilimitada.
Na obrigatoriedade moral em Kant, o sujeito não é forçado a prestar contas à liberdade dos outros. Somente é necessário que admita que cada semelhante faça uso do seu livre-arbítrio. Para Kant, a pessoa que age de acordo com a legislação moral não impede o livre-arbítrio de outrem, porque o preponderante é o seu uso sem a necessidade de uma pessoa adentrar na esfera de liberdade interna de outra, uma vez que tal liberdade é de cunho estritamente íntimo, em que o agir moral é atribuído ao uso do puro dever de forma autônoma. Consequentemente, só age moralmente quem age por puro dever.
Não posso mencionar sobre a liberdade interna sem levar em consideração o princípio da autonomia, que é a qualidade que a vontade tem de ser lei para si mesma (independentemente de uma qualidade qualquer dos objetivos do dever), (FMC, 2007, p. 67). Isso se deve ao fato da vontade moral ser indubitavelmente uma vontade autônoma que não se permite determinar por inclinações ou interesses de fornecer leis a si mesmo. Por intermédio da vontade, o sujeito é dotado de razão e por isso age somente segundo leis dadas naturalmente. No tocante às inclinações assinala Kant:
[... Enquanto o prazer prático, a determinação da faculdade apetitiva, que necessariamente deve ser precedida por esse prazer como causa, se chamará apetite, e o apetite habitual, inclinação. E como a união do prazer e da faculdade apetitiva, enquanto o entendimento julgue essa união válida, segundo uma regra geral (porém, em todo caso, somente para o sujeito), se chama interesse, o prazer prático é, neste caso, um interesse da inclinação...] (DD, 1993, p. 20)
O princípio da autonomia, portanto, exige que a lei não seja dada pelo objeto e que a vontade não seja determinada por inclinações sensíveis, sob pena de não ser mais legisladora, tornando-se heterônoma (Cf. Leite, 2007, p. 115). A autonomia é entendida como a faculdade de fornecer leis a si mesmo.
A autonomia possui dois componentes. O primeiro é que nenhuma autoridade externa a nós é necessária para constituir ou nos informar sobre as demandas da moralidade (Cf. Perez, 2005, p. 172). Cada um de nós sabe, sem que seja dito, o que deveria fazer porque as exigências morais são exigências que impomos a nós mesmos. O segundo é que na autolegislação podemos efetivamente nos controlar. Por conseguinte, nenhuma fonte externa de motivação é necessária para que nossa autolegislação seja eficiente em controlar nosso comportamento.
Assim sendo, em sentido estrito, a autonomia exige não apenas que a lei não seja dada como objeto, como também a vontade não seja determinada por inclinações sensíveis. Isso implica que a autonomia deixa de ser legisladora e passa a ser heterônoma. A vontade, se é autônoma, só pode ser determinada objetivamente pela lei moral e subjetivamente por respeito a esta lei. O móbil da vontade deve ser a própria lei. Por esta razão, no plano ético, a ação é realizada não apenas conforme o dever, mas por dever, uma vez que o móbil é incluído na lei.
2 Distinção entre moral e direito no pensamento kantiano
Na doutrina kantiana o ponto fundamental da distinção entre moral e direito é o móbil pelo qual a legislação é obedecida. Nesse viés, tem-se o motivo absoluto do dever pelo dever concernente a legislação moral, considerada interna, e outro motivo empírico referente à legislação jurídica, que é externa.
Analisar a relação da moral com o direito exige que se precise o sentido desses termos, que possuem, às vezes, uma acepção ampla e outra restrita. Ao distinguir as leis da natureza das leis da liberdade, o termo moral em Kant adquire sentido amplo. As leis da liberdade são denominadas leis morais e enquanto, segundo Kant, dizem respeito apenas às ações exteriores, e sua legalidade: denominam-se jurídicas; mas, se exigem também que estas leis devam ser os princípios de determinação das ações, elas são éticas.
Na Metafísica dos costumes, Kant esforça-se na clássica distinção entre a legislação moral e a jurídica. E como ponto de partida indica o problema inicial da filosofia do direito, que é a distinção entre ambas. Nesse sentido, o que efetivamente distingue as duas legislações não é apenas o fato de uma legislação ser interna e a outra externa, mas especificamente a idéia do dever como impulso. Portanto, para se entender melhor essa idéia, deve-se considerar que toda legislação possui dois elementos constitutivos, quais sejam: o elemento objetivo que significa a representação da lei como necessária à ação e que desta forma converte a ação em dever, e um elemento subjetivo que liga a representação da lei ao fundamento de determinação do arbítrio para realização de tal ação. No primeiro momento, tem-se o que Kant denominou de conhecimento teórico da possibilidade da regra prática e, no segundo, o dever como impulso. A implicação mais imediata desta distinção é o fato de que os deveres característicos da legislação jurídica são externos, pois não exigem a idéia de um dever interior.
Moral em sentido amplo compreende a doutrina dos costumes englobando tanto o direito quanto a ética, o primeiro é a própria a legalidade, a correspondência à lei jurídica; a segunda a moralidade, a consciência ética. Para Kant alguns conceitos são comuns às duas partes da metafísica dos costumes, entre eles, o dever e a obrigação. Dever entendido como a ação na qual alguém é obrigado. A distinção dos dois campos vai se localizar na diferença do móbil, isto é, a legislação que faz de uma ação um dever e, ao mesmo tempo, deste dever um móbil, é ética; mas aquela que não inclui o móbil na lei, e por via de consequência, admite também um outro móbil que não a ideia do dever, é jurídica. Na ética, o móbil, que é o princípio de desejar, é o próprio dever. A ação é realizada não apenas conforme um princípio objetivo de determinação válido universalmente, mas também é realizada pelo dever, com um sentimento de respeito pela própria lei moral. Assim, o móbil é o respeito pela lei moral, sendo este móbil basicamente ético.
A legislação que erige uma ação como dever, e o dever, ao mesmo tempo como impulso, é ética. Aquela, pelo contrário, que não compreende esta última condição na lei e que admite também um motivo diferente da idéia do próprio dever é jurídica. No que diz respeito à esta última, vemos facilmente que estes motivos, diferentes da idéia do dever, têm que extrair-se de fundamentos patológicos da determinação do arbítrio, das inclinações e aversões e, dentre estas, das últimas porque tem que ser uma legislação que obrigue, não um chamado atraente. (KANT, MC I, 2004, p. 28)
A lei jurídica, entretanto, admite outro móbil que não a ideia do dever, no caso, móbiles que determinem o arbítrio por sentimentos sensíveis que causam aversão, pois a lei deve obrigar de alguma maneira eficaz. Em síntese, no plano jurídico há legalidade, isto significa a correspondência da ação com a lei, mesmo que o móbil seja determinado por sentimentos sensíveis que causem ojeriza; e no plano ético há moralidade, onde esta correspondência não é suficiente, sendo exigido ainda que o móbil da ação seja o respeito à lei.
Segundo a legislação jurídica, os deveres são exteriores, e seus móbiles também, o que possibilita o julgamento do cumprimento ou não da ação e também os meios de forçar sua realização. Como a legislação ética exige que o móbil seja o respeito à lei, ela não pode ser uma legislação exterior, pois não se pode determinar a intenção por leis exteriores, visto que a intenção não pode ser controlada por um julgador que não seja o próprio sujeito. Entretanto, a legislação ética pode admitir deveres de uma legislação exterior e fazê-los seus; assim, todos os deveres pertencem de alguma forma à ética.
3 O conceito de liberdade externa
A liberdade externa, para Kant, está representada pelo estado a fim de regular as liberdades individuais dos sujeitos, necessitando da atuação desse órgão controlador estatal munido de poder coercitivo. Caracterizada pelo direito, a liberdade externa provém do dever jurídico, através do qual assumimos responsabilidades perante os outros. Vislumbra-se aqui, a nossa liberação exterior controlada por uma instância superior, que é o poder estatal.
Baseando-se no princípio kantiano do direito, a liberdade como direito inato exclusivo, significa que cada homem é simultaneamente independente e igual em relação ao arbítrio de qualquer outro. A limitação e a garantia simultâneas da liberdade de ação, apresentadas pela fórmula do imperativo jurídico: "age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa se conciliar com a vontade de todos segundo uma lei universal" (MC, p. 46), constituem um postulado da razão, não possíveis de serem provadas senão pela própria razão, que é utilizada por todos. O efeito vinculante que a lei geral do direito impõe como justiça intersubjetiva recíproca, obriga moralmente, possuindo caráter objetivo, motivo pelo qual não se pode exigir de ninguém que faça dessa vinculação objetiva o princípio de suas máximas para poder agir como queira. Se, pelo princípio do direito, tudo o que é compatível com a sua universalidade objetiva, também é permitido, todos os homens podem agir à vontade, já que nenhum deles impede o outro de agir, mesmo que todos sejam indiferentes à liberdade alheia ou desejem cerceá-la reciprocamente em seu íntimo.
No direito não se realiza a autonomia da vontade, pois aquele comporta móbiles que introduzem a heteronomia. Isto não significa que o direito seja alheio à autonomia da vontade. Ao contrário, desde que toda heteronomia do arbítrio não fundamente por si mesma alguma obrigação, a obrigação jurídica, bem como a exigência da coexistência das liberdades segundo uma lei universal, devem basear-se na razão prática (CRPr, V, p. 33). Apesar dos móbiles do direito o impedirem da realização da autonomia por inteira, como a virtude; a coerção jurídica não impede a liberdade, ao contrário, ela serve de impedimento ao obstáculo que queira impedir a liberdade. Portanto, abstrai-se que há uma vontade jurídica, que é heterônoma, em razão de não encontrar em si mesma a sua lei, mas por recebê-la exteriormente.
3.1 O direito como liberdade externa
Para Kant, o direito, como lei da liberdade externa, como ordem de coexistência de liberdade simétrica para seres humanos que vivem em relações espaciais, define o domínio que cada um pode considerar individualmente seu, ocupar tal como queira e defender contra invasões de suas fronteiras (Cf. Guyer, 2009, p. 402), uma vez que o direito encontra-se relacionado analiticamente com a autorização da coerção como permissão para a defesa de domínios universalmente compatíveis de liberdade, sendo um elemento constitutivo do conceito de direito. Nesse viés, a lei jurídica também pode ser representada como princípio universal de coerção no sentido de uma coerção recíproca universal em consonância com a liberdade de cada um segundo leis universais. Nesse sentido afirma Kant:
A resistência que frustra o impedimento de um efeito promove este efeito e é conforme ele. Ora, tudo que é injusto é um obstáculo à liberdade de acordo com leis universais. Mas a coerção é um obstáculo ou resistência à liberdade. Consequentemente, se um certo uso da liberdade é ele próprio um obstáculo à liberdade de acordo com leis universais (isto é, é injusto), a coerção que a isso se opõe (como um impedimento de um obstáculo à liberdade) é conforme à liberdade de acordo com lei universais (isto é, é justa). Portanto, ligada ao direito pelo princípio de contradição há uma competência de exercer coerção sobre alguém que viola. (MC, § D)
A ordem da liberdade do direito racional e do mecanismo recíproco de coerção demonstra as mesmas características estruturais de igualdade, simetria e reciprocidade. A coerção mútua é o meio externo pelo qual a ordem da liberdade do direito racional é representada e como ela ganha realidade.
O fim último do direito é a liberdade externa. A razão pela qual os homens se reuniram em sociedade e constituíram o estado, é a de garantir a expressão máxima da própria personalidade, que não seria possível se um conjunto de normas coercitivas não garantisse para cada pessoa uma esfera de liberdade, impedindo a violação por parte dos outros. A coerção está de acordo com a liberdade porque ela é o obstáculo àquele que vai contra a liberdade, sendo justa a faculdade de coagir aquele que é injusto.
A função preponderante da ciência do direito em Kant é a faculdade de coagir. O insigne filósofo não argumenta como um teórico do jusnaturalismo, procurando saber se há justificativa moral para poder haver coerção legítima de homens sobre homens. Segundo o moralista Kant, a razão não apenas se efetiva como poder de julgar, mas também exerce a sua força sobre a vontade, quer impondo, quer constrangendo, quer coagindo.
A liberdade externa é condição fundamental para que o estado possa exercer através do direito a coerção do arbítrio individual. O estado tem a função de garantir a coexistência das liberdades individuais. Neste contexto, quando o estado pune o agente que se encontra ameaçando a liberdade de outro, retirando-o do convívio social, vislumbra-se, uma liberdade anulando a outra, ou seja, a liberdade externa através do estado, anulando a liberdade individual (interna) do agente.
A lei jurídica destina-se a seres racionais que não agem naturalmente em conformidade com ela, tendo no imperativo categórico correspondente a sua fórmula exemplar de execução. O homem está sob a lei jurídica de modo que sua liberdade encontra-se na idéia, submetida às condições da legislação externa, segundo a qual o arbítrio de um homem pode ser conjuntamente coexistente com o arbítrio de outro homem conforme uma lei universal. Ao conceber, na idéia, os limites da liberdade de cada homem com relação a todas as ações de seus semelhantes, recíproca e mutuamente compatíveis entre si, Kant fornece o fundamento intrínseco do direito que legitima moralmente a coerção física como motivação para a observância das leis jurídicas. Como minha liberdade está de antemão condicionada a ações alheias, subsistindo cada uma delas moralmente pela convivência da liberdade externa segundo leis universais, toda coerção que se opõe a qualquer uma de minhas ações, praticada em desrespeito a tal condicionamento, não é injusta. Isso significa que o ato coercitivo, delimitando fisicamente uma liberdade externa ao âmbito em que a liberdade de ação de cada homem encontra-se de qualquer maneira moralmente condicionada pelo imperativo categórico do direito, não prejudica o seu livre-arbítrio, por mais que possa afetar o seu físico.
Numa idéia de justiça, o ordenamento justo é somente aquele que consegue fazer com que todos os envolvidos possam usufruir de uma esfera de liberdade tal que lhes seja consentido desenvolver a própria personalidade segundo o talento de cada um. Neste sentido, o direito é concebido como um conjunto de limites às liberdades individuais, de maneira que cada um tenha a segurança de não ser lesado na própria esfera de liberdade até o momento em que também não lese a esfera de liberdade alheia.
Desta forma, não é suficiente, segundo o ideal do direito como liberdade, que o ordenamento jurídico estabeleça a ordem, nem é suficiente que esta ordem seja fundada na igualdade, pois uma sociedade na qual todos sejam escravos é uma sociedade de iguais, ainda que iguais na escravidão. Faz-se necessário, para que a justiça seja efetivada, que os membros da sociedade usufruam da mais ampla liberdade compatível com a existência da própria sociedade.
Kant teve como conteúdo do seu ideal de justiça, a liberdade, expressão da identidade entre o pensamento e a vontade, que ele chamou de consciência moral e, na esfera do direito, "vontade geral". A liberdade, como autonomia, é o centro da filosofia prática de Kant, não simplesmente a lei (ou o dever ser) como algo dela separado, ocupando lugar central do seu pensamento. A idéia de liberdade é colocada por Kant no centro do seu conceito de justiça, seguida de igualdade, em função das quais, somente, pode ser pensado o conceito de ordem na sociedade.
Por conseguinte, a liberdade é o único direito natural reconhecido como igual para todo homem na humanidade. A liberdade de todos os indivíduos é limitada por um princípio de igualdade, no sentido de compatibilizá-la e tornar a sociedade organizada. Assim, é justa a lei que cada vez mais se aproxima do princípio de racionalidade e que origina uma legislação jurídica universal.
3.2 A faculdade da coerção como garantia das liberdades individuais na constituição da doutrina do direito
O ápice da doutrina do direito é a faculdade de coagir. Isso implica que o direito e a faculdade de coação são inseparáveis no universo kantiano. Assim, quando alguém tenta impedir outrem de agir moralmente, o direito atua como força coativa da liberdade externa, que é representada pelo estado, para anular a resistência oferecida. Nesse sentido assinala Kant:
A oposição ao obstáculo de um efeito é requerida por esse efeito e está em conformidade com ele. Ora, tudo o que é injusto contraria a liberdade, segundo leis gerais. A resistência é um obstáculo posto à liberdade. Logo, se algum uso da própria liberdade constitui um obstáculo à liberdade, segundo leis gerais (isto é, injusto), nesse caso a resistência que se lhe opõe, como se fosse destinada fazer ceder o obstáculo à liberdade, está conforme à liberdade segundo leis gerais, isto é, que é justa: por conseguinte o direito é inseparável segundo o princípio de contradição, da faculdade de obrigar ao que se opõe a seu livre exercício(DD, § D).
Faz-se necessário mencionar que houve uma aparente antinomia referente a relação de coerção e liberdade, que Kant esclarece ao enfatizar o nexo entre tais relações. Isso desemboca no seguinte questionamento: De que forma pode-se conciliar a liberdade, que deve ser respeitada para cumprir a lei jurídica, com a coerção ou coação, que possuo o direito de exercê-la? (Cf. Bobbio, 1997, p.78). Nessa perspectiva, o direito é uma liberdade "limitada" em virtude da existência da liberdade alheia. E sendo o homem um ser livre, pode acontecer deste ultrapassar os limites da liberdade de outrem, bem como tomando tal situação, pode ocorrer de eu transgredir a liberdade de outra pessoa. Assim, transformo-me em um empecilho para aquela pessoa possa agir livremente. Neste caso, a coação apresenta-se como um ato de "não liberdade" realizado, porém, tais situações confirmam que a liberdade deve ser inabalável. Quando Bobbio menciona que: "A coação é, pois, um conceito antitético com relação à liberdade, mas enquanto surge como remédio contra uma não-liberdade anterior, é a negação da negação e, então, afirmação. Portanto, ainda que seja antitética com relação à liberdade, a coação é necessária para a conservação da liberdade (Cf. Bobbio, 1997. p. 78).
Para Kant a noção de direito encontra-se literalmente ligada à noção de coação. A interioridade do dever moral atua de maneira que ninguém pode obrigar o outro a cumpri-lo, pois se alguém obrigasse o outro e este cedesse à coação, a sua ação, somente pelo fato de ter sido cumprida, não por dever, mas por causa da coação, não seria mais moral. Antagonicamente, o dever jurídico, sendo externo, no duplo sentido de que não impõe a ação pelo dever, mas somente a ação conforme o dever, e que impõe uma ação pela qual sou responsável frente aos outros, vislumbra aos outros o direito de obrigar e não exclui o fato de poder ser cumprido somente pelo impulso do medo da coação. Com isso, indubitavelmente, conclui-se que a coerção é necessária para o cumprimento do dever jurídico.
A faculdade de coagir encontra-se imediatamente ligada ao conceito racional de direito. Nesta faculdade coercitiva ele não vê uma força contrária à razão, muito menos a pretensão moral sem legitimidade de um ordenamento jurídico positivo, mas um elemento irrenunciável e válido a priori de todo o direito (Cf. Hoffe, 2005, p. 241). Mesmo denotando um antagonismo, não é possível conceber um ordenamento jurídico destinado a garantir a convivência das liberdades individuais, sem o exercício de uma faculdade coercitiva.
Torna-se indispensável definir o conceito de direito em Kant, uma vez que tal definição não se encontra no campo empírico, no qual se pode extrair o estudo do direito positivo, pois se o direito fosse da esfera empírica, o critério de justo e injusto jamais poderia ser aferido, porque somente iria determinar juridicamente o que é lícito ou ilícito.
Por isso a única forma de se chegar à compreensão do direito como ideia de justiça, é extirpar o âmbito empírico e retornar à análise da razão pura. Assim Kant diferencia:
O jurisconsulto pode, certamente, conhecer e declarar o que venha a ser o direito (quid sit iuris), ou seja, o que as leis, num certo lugar e numa certa época, prescrevem ou prescreveram, mas se é justo o que estas leis prescrevem e o critério universal por meio do qual é possível reconhecer em geral o que é justo ou injusto (iustum et iniustum), permanece-lhe completamente obscuro, se não abandonar por um certo tempo aqueles princípios empíricos, e se (ainda que possa servir-se daquelas leis como excelentes fios condutores), não buscar as origens daqueles juízos na razão pura como único fundamento de qualquer legislação positiva possível. (MC, p 67)
Para Kant são três os elementos que compõem o conceito de direito: em primeiro lugar, este conceito diz respeito somente à relação externa e, certamente,
prática de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como fatos, possam influenciar-se reciprocamente; em segundo lugar, o conceito de direito não significa a relação do arbítrio como o desejo de outrem, portanto com a mera necessidade, como nas ações benéficas ou cruéis, mas tão somente com arbítrio dos outros, e em terceiro lugar, nesta relação recíproca do arbítrio, ao fim de que cada qual se propõe com o objeto que quer, mas apenas pela forma na relação do arbítrio de ambas as partes, na medida em que se considera unicamente como livres e se, com isso, a ação de um pode conciliar-se com a liberdade do outro de acordo com uma lei universal. Neste terceiro elemento, Kant defende que o direito quando regula uma relação de arbítrios, torna-se impertinente os fins individuais ou utilitários que os agentes envolvidos almejam, mas unicamente a forma que aquele fim dever ser galgado. Isso implica que a preponderância em um contrato de compra e venda, por exemplo, não se encontra na vantagem ou desvantagem do vendedor ou comprador, mas exclusivamente no rito do cumprimento contratual. Daqui surge a clássica definição de direito para Kant: "O direito é o conjunto das condições, por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro segundo uma lei universal de liberdade" (MC, p. 56 ).
Portanto, o direito por pertencer ao mundo das relações externas constitui-se na relação de dois ou mais arbítrios, e sua função primordial é a de determinar a maneira de coexistência dos arbítrios. Isso implica afirmar que o direito é quem possibilita tal coexistência em razão da liberdade recíproca, ou seja, a liberdade de um agente está limitada a liberdade de outrem.




4 Conclusão
O presente artigo tentou esclarecer a questão da liberdade em Kant. Aventou, inicialmente, o conceito de liberdade interna e a distinção entre moral e direito. Posteriormente adentrou na liberdade externa, a qual é representada pelo estado, que possui o poder de coerção para garantir as liberdades individuais, bem como abordou a faculdade da coerção como garantia das liberdades individuais na constituição da doutrina do direito.
Para Kant o homem á autônomo e por esta razão deve agir moralmente. Este agir não pode ser ameaçado pelos outros sujeitos, pois quem assim o fizer, estará adentrando na esfera da liberdade alheia. E nesse contexto, é que vem o estado para isolar aquele que perturba a liberdade do outro. Só pode haver liberdade se o arbítrio de um sujeito corresponder ao arbítrio de outro.
Com efeito, o conceito de direito com o de liberdade é extremamente compatível no universo kantiano, haja vista a liberdade, e nessa circunstância a liberdade externa, ser o objeto final do direito, do qual se constitui o estado, derivando um conjunto de normas coercitivas, com o intuito de garantir as liberdades internas de acordo com uma lei universal, que é representada pelo próprio estado.











Referências
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Autor: Geovane Mariano De Siqueira


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