Esperança num sonho bobo



Onze horas, o sol que banhava esta terra estéril já se retirou a tempos e agora visita como de costume a chamada terra do sol nascente, que por ironia não mais vê o sol, pois este foi encoberto por nuvens de fumaça e aranha céus medonhos, mas voltemos as onze horas, em bom e velho horário de Brasília. Ela rói as unhas enquanto aguarda ansiosa sentada em sua cadeira pseudo confortável diante da sua PA imunda pelo último telefonema do dia. Suspira novamente e inspeciona o relógio que descansa na lateral direita do monitor do seu computador, que na verdade é o computador da empresa e que não serve para muito, não tem joguinhos daqueles bem bobos mas que conseguem distrair e ajudar o tempo a caminhar depressa, nem acesso a internet, nada que possa distraí-la do seu trabalho importantíssimo...
Trabalha com telemarketing, tele atendimento, tele-qualquer-coisa, muito chata, que paga mal, emburresse e que nunca resolve nada para ninguém, há cinco anos, nunca tinha trabalhado em outra coisa, e não acreditava realmente que a vida lhe guardasse um futuro muito diferente desse.
As pessoas diziam que ela era uma menina muito inteligente e devia estudar. Estudar. Ela não era esperta o suficiente para conseguir bolsa de estudos e nem tinha dinheiro o suficiente para pagar pela educação. Estudar tornou-se assim um sonho tão impossível quanto todos os sonhos poucos que ousou sonhar em sua vida.
Lembrava-se assim do seu primeiro sonho: andar de carrossel. Ela tinha visto um carrossel numa novela na TV, TV esta que na época não era colorida, ou melhor, a tela tinha uma cor só, verde, então o carrossel era verde, e as crianças felizes que davam voltas sobre seus cavalos de madeira também, mas nos sonhos de menina pintou o carrossel de tantas cores quanto podia conceber.
Não teve muito sucesso em nenhum sonho subseqüente: nunca aprendeu a andar de bicicleta, nem a dar estrelinha, nunca conseguiu abrir espacate, e nunca aprendeu a surfar. Os sonhos eram poucos e eram só estes mesmo, e deles ela se lembrava, horas para se punir por ser o retrato fiel de uma fracassada, horas apenas porque de seus sonhos não podia se desfazer, e voltava a sonhar, e buscava informações de onde e como poderia andar de carrossel ou fazer aulas de surf. Vez por outra tentava juntar o dinheiro pra as tais aulas, ou para viajar até o parque, mas sempre surgia um imprevisto, era um botijão de gás que se acabava, ou um remédio que precisava, e como era sozinha e dela ninguém cuidava, gastava o dinheiro do sonho, e voltava a sonhar.
Tinha apenas duas alegrias na vida, seu gato vira latas que lhe dava carinho sem se importar com as calças jeans compradas por doze reais em um supermercado, ou seu pobre modelo de óculos que não custou mais que cento e vinte, e sua namorada, que não jurava que a amava, visto que essa nada fazia para tornar sua vida menos pesada, não lavava e não passava, para dizer que a ama era um custo, lhe negava beijos e vivia fazendo chorar, mas a menina se alegrava na namorada porque a amava e pronto, amava a outra menina com uma simplicidade doce: amava porque amava. E para ela escrevia os mais belos poemas de amor, melhores do que os poemas dos grandes que ela leu na época em que pode estudar, e cozinhava e lavava e passava e para ela guardava todos os seus sorrisos, que a esta altura da vida e com tanto cansaço eram tão poucos e cada dia mais escassos.
A menina tinha ainda outro sonho, dele me esqueci e só me recordei agora, era de um dia chegar numa casa linda, pelo menos dois cômodos distintos, e encontrar um sofá e um televisor colorido, e uma cozinha com geladeira e fogão, pia, mesa e cadeiras, especialmente as cadeiras, nunca tinha tido cadeiras, queria ainda uma cama onde pudesse dormir, e um banheiro só seu cheio de luxo! Com piso frio e pia para as mãos, e um chuveiro quente. Claro que a menina tinha uma casa onde morar, e morava aliás com sua namorada, apesar de se sentir tão sozinha e oprimida que as vezes se esquecia que sua amada cuidava dela também, e que as contas eram muitas, mas que estando as duas lado a lado, dividiam as contas do mês. Mas a casa, em cima da casa da sogra, não passava de uma obra, a parte de cima de uma casa que ainda esta em construção. Moravam assim em um único cômodo muito pequeno e ainda no bloco, a fiação exposta, a pia ao lado da cama, e ao seu lado a geladeira enferrujada que ganhou de um desconhecido, e o fogão também enferrujado, o forno não funcionava, mas as bocas ainda estavam boas, e graças a deus ou teria que comprar outro, tinha sim um banheiro mas nada comparado ao luzo que sonhava, seu banheiro estava no bloco, não tinha janela, mas apenas o buraco da janela aberto, era muito difícil de limpar e nunca parecia estar limpo de verdade. Sonhava ainda, isso quando ousava sonhar tanto, imaginava sua geladeira cheia de frutas. Lembrava-se ainda menina quando seus pais podiam se valer de tanto do sabor da pêra, e do perfume das maçãs, lembrava-se do acido do abacaxi e até da jaca. Evitava sonhar tanto porque isso sempre lhe trazia um certo nó no peito, uma tristeza boba. Uma saudade do que nunca teve. Mas se pegava sonhando essas coisas vãs quando sua casa se enchia de água, por outra ironia do destino, apesar de ser no segundo andar a casa era numa encosta e, como era uma obra, tinha um buraco na parede pelo qual entrava enorme quantidade de água e alagava seu pequeno e pobre lar inteiro.
Olhando agora para o relógio do seu computador, que nunca seria seu de verdade, a menina pensava numa musica do legião urbana: "mas seu dinheiro não dava para ele se alimentar", e o dinheiro dela não dava mesmo. Pagava água e luz para ela e para a sogra, em troca do favor de morar lá, pagava a água e pagava o IPTU, tinha ainda o vale transporte e o que sobrava, se sobrasse, comprava comida.
Queria ter filhos, mas isso ela não admitia, afinal quem é o louco que sonha em por filhos no mundo para criar numa situação dessas. Tinha tanto amor na sua casa, o suficiente para criar gerações e gerações de filhos em amor, mas nenhum dinheiro. E amor não se come, não se veste, enfim, amor só em amor não se vive.
O relógio finalmente marcou onze e meia e nossa pequena heroína se levantou frágil e indefesa de sua PA, bateu o ponto e desceu o elevado até o térreo. A passos apressados e curtos caminhou rumo a sua pequena casa e sua pequena família torta. "Pequena e torta mas é minha, e é boa", pensou.
Mas seu intento teve que ser adiado por alguns minutos e a menina teve que refrear seus passos e dar vazão as lágrimas. Pois contra todas as possibilidades financeiras diante da menina estava sua namorada segurando um imenso buque de seis rosas coloridas, e a menina que nunca tinha ganhado tal mimo se emocionou, eram tão lindas e sofisticadas que a menina sentiu algo, que não era novo, e que vinha banhado em amor, a menina pôde sentir novamente esperanças de ver todos os seus pequenos sonhos tolos se tornarem reais.

Autor: Viviane De Sousa Furtado


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