Humor e viuvez



Humor e viuvez


O humor desce ao real
pela minúcia descritiva,
a desnudá-lo.
(Afrânio Peixoto)

A viuvez declarada no título é a viuvez de uma das viúvas que povoam os romances de Machado de Assis e creio já haver mencionado alhures que ando lendo o livro intitulado "Figuras Femininas em Machado de Assis" de Ingrid Stein.
Antes de conhecer o ensaio de Ingrid Stein eu já conhecia e amava as viúvas machadianas, por minha conta e risco. Mas devo à ensaísta o acicate que me põe a escrever sobre elas.

Diz Ingrid Stein que as viúvas somam "um quinto das figuras femininas do escritor"; que, por isso, estuda-as sob três aspectos: a) o da independência na decisão de questões pertinentes ao próprio destino; b) o da aceitação de viver a sua "viuvez"; c) e o do exercício da influência social.

De leitura sedutora o livro de Ingrid Stein conclui: " Portanto, sou de opinião que, para Machado de Assis, uma das raras possibilidades técnicas de construir personagens femininas em torno das quais a ação gire, que influam com energia no mecanismo da historia ...como Fidélia... é concebê-las viúvas."
Não sei se entendi bem. De todos os modos, o que me parece, pelo menos no caso da viuvinha Fidélia, é que, a viuvez da moça não é apenas meio de projeção de uma personagem feminina mas, ao contrário, é substantiva, autônoma e, como tal, serve de pilar a toda a estruturação estética do "Memorial de Aires".

E isto não é novidade. A obra de Machado de Assis pauta-se na análise minuciosa da alma dos seus personagens. Eis o que diz em "A Mão e a Luva" : "uma história em que o autor se ocupa de desenhar um ou dous caracteres, e de expor alguns sentimentos humanos ...porque outra cousa não se animaria a fazer..."

Não tenho a menor intenção de polemizar. Quem sou eu? Demais, ninguém, senão raros olhos repousados, lê o que escrevo.

A intenção é apenas deixar registrado que me deliciei com a viuvinha Fidélia de outro ponto de vista.

A questão é que há viúvas e viúvas. Se eu fosse estudá-las, fá-lo-ia não sob três, mas sob dois aspectos. Viúvas cumulativamente jovens, ricas, belas e talentosas, de um lado ; demais viúvas de outro, podendo este segundo grupo ser desdobrado em caso de necessidade.

Abracemos o primeiro grupo, no qual se insere Fidélia, "a adorável e encantadora Fidélia", viuvinha de vinte e três anos de idade, rica, saudável, prendada, grande talento; viúva aos vinte e um, vinda de um casamento momentoso, noiva aos dezenove.

Melhor ainda: abracemos Fidélia. De minha parte eu a abraço com a mesma paixão das primeiras leituras. Um abraço certamente influenciado pelo depoimento do Conselheiro Aires, que acompanhou de perto, passo a passo, a evolução do drama existencial da viuvinha.


Dona Ingrid Stein que me desculpe, mas estudar Fidélia sem levar em conta essa peculiaridade essencial me pegou de surpresa, porquanto a mim me entra pelos olhos que Machado se esmerou na sondagem da alma da viuvinha. E a tal ponto o fez, e com tal elegância e cuidado o fez, que me leva a considerar insuficiente a conclusão de Stein, segundo a qual Machado se vale das viúvas para possibilitar às mulheres maior independência no cenário social de suas histórias.

Ora, pois, já é tempo de dizer afinal em que consiste, no caso de Fidélia, essa história de analisar a alma da personagem.

De mim eu mesmo direi muito pouco. Limitar-me-ei a mostrar os sinais emitidos pelo estado de espírito da moça, à proporção que a vida flui.

Assim, convido o leitor a acompanhar estas observações do Conselheiro Aires:

Registro de 10.01.1888

- Não quer dizer que não venha a casar outra vez. ? diz o Conselheiro
- Aquela não casa. ? responde a irmã dele.
- Quem lhe diz que não?
- Não casa. Basta saber as circunstâncias do casamento, a vida que tiveram e a dor que ela sentiu quando enviuvou.
- Não quer dizer nada, pode casar; para casar basta estar viúva.

A partir daí, por todo o livro, o autor não perde de vista esse componente estrutural básico do "Memorial".

Pudera haver alguém que descobrisse vulgar curiosidade no Conselheiro. Pudera sim, mas pior para o descobridor, porquanto revelaria a sua completa cegueira. Assim:

Registro de 17.10.1888

... Fidélia entrou em uma fábrica de flores para encomendar as que levará no dia 2 de novembro à sepultura do marido.

Registro de 02.11.1888

Bastantes(flores); entre elas a do marido de Fidélia...bem dispostas...faziam grande efeito...O nome do marido estava cercado de perpétuas.

Ninguém me convencerá de que a escolha das perpétuas não é machadiana.

Registro de 11.11.1888

Os olhos de Fidélia encontraram os de Tristão.

Registro de 03.12.1888

...nenhuma lei divina impede a felicidade de ambos (Tristão e Fidélia), se ambos a quiserem ter juntos. A questão é querê-lo, e ela parece que não quer.

Registro de 05.12.1888

... se a viúva foge a si mesma, é que tem medo de cair e prefere a viuvez ao outro estado.

Registro de 09.01.1889 (se o Conselheiro tivesse voltado ao cemitério)

... quem sabe se não iríamos dar com a viúva ao pé da sepultura do marido, as mãos cruzadas, rezando, como há um ano?

Ainda o regustro de 09.01.1889

Se eu a visse no mesmo lugar e postura, não duvidaria ainda assim do amor que Tristão lhe inspira. Tudo poderia existir na mesma pessoa, sem hipocrisia da viúva nem infidelidade da próxima esposa.

Neste ponto chamo a atenção para o comentário complementar de 09.01.1889, em que o autor faz a síntese solidária do conflito vivido por Fidélia.

Era o acordo ou o contraste do indivíduo e da espécie. A recordação do finado vive nela, sem embargo da ação do pretendente; vive com todas as doçuras e melancolias antigas, com o segredo das estréias de um coração que aprendeu na escola do morto. Mas o gênio da espécie faz reviver o extinto em outra forma, e aqui lho dá, aqui lho entrega e recomenda. Enquanto pôde fugir, fugiu-lhe...

Registro de 15.05.1889

Enfim casados...

Registro de 30.06.1889

Vindo para casa acudiu-me em caminho uma idéia, indiscreta decerto, mas felizmente não a disse a ninguém, mal a deixo nesta folha de papel. A idéia é saber se Fidélia terá voltado ao cemitério depois de casada. Possivelmente sim; possivelmente não. Não a censurarei se não; a alma de uma pessoa pode ser estreita para duas afeições grandes. Se sim, não lhe ficarei querendo mal, ao contrário. Os mortos podem muito bem combater os vivos, sem os vencer inteiramente.

Registro de 18.07.1889
(despedindo os recém-casados no tombadilho do paquete que os levava a Portugal)

Eu, no tombadilho do paquete, imaginei o cemitério, o túmulo, a figura, as mãos postas e o resto.

E, fechando o Memorial:

...se os mortos vão depressa, os velhos ainda vão mais depressa que os mortos... Viva a mocidade! A mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se alegremente do extinto e do caduco.

Entendo que caberia estender um pouco mais o artigo, de modo a relacionar a cosmovisão do escritor com a concepção da personagem Fidélia, e justificar o título "Humor e viuvez" com que batizo esta edição.

Valha-nos, por ora, repetir a frase à epígrafe ? O humor desce ao real, pela minúcia descritiva, a desnudá-lo.

A frase ajusta-se à simpatia do escritor quanto ao drama existencial de Fidélia, que é universal, e certamente revela o amadurecimento filosófico de Machado.

O nojo das "Memórias Póstumas", afinal, ficara para trás.

Por fim. importa lembrar que Fidélia é um nome que tem tudo a ver com fidelidade e ironia.



Autor: Osorio De Vasconcellos


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