A primeira meditação de Descartes a luz da obra de Scribano



Apresentação

Na primeira meditação Descartes anuncia que para se chegar a alguma fundamentação que garanta a estrutura das ciências não há possibilidade de construí-las em opiniões, pois isso poderia levá-lo ao engano. Assim, o filósofo entende que para construir serão necessárias bases sólidas e isenta de qualquer dúvida.

O projeto

O projeto cartesiano propõe sua construção baseada em dois aspectos: ser construída em bases sólidas que não apresente nenhuma dúvida e que não precise ser revista. Para isso o ceticismo no século XVI na Europa foi de certa maneira refutado, pois não agregava nenhuma certeza que poderia fundar uma nova filosofia, mas por outro lado a dúvida oriunda do próprio ceticismo ajudaria na estruturação desse novo saber.

A dúvida no sistema cartesiano apresenta dois papéis fundamentais: servir como instrumento para retirar todas as incertezas ou prejuízos do que se alcançou e, ao encontrar algo como verdadeiro não torná-lo alvo de dúvida, pois isso resultaria em contradição na proposta apresentada.

Enfim, a dúvida cartesiana apresenta como direção à manifestação do conhecimento indubitável, não apenas no sentido de não poder duvidar de algo que já foi duvidado (aspecto psicológico), mas, de fato não apresentar qualquer possibilidade de dúvida no argumento apresentado (aspecto formal). Isto significa ter encontrado o conhecimento seguro, tratando a dúvida de maneira sistemática. E para isso são descartadas duas formas "artificiais" de duvidar: tratada no seu mais alto grau, isto é, duvidar de tudo e não encontrar nenhuma verdade e, a dúvida praticada como algo gratuito, duvidar simplesmente das coisas sem dispor de um cuidado com o próprio pensamento (insensato).

Desta forma, Descartes mediante as suas crenças busca duvidar de todas as coisas. Conhecida como a dúvida "hiperbólica" o filósofo coloca suspenso todas as suas opiniões adquiridas até o momento. Segundo Scribano (2007) a argumentação para ser válida é sempre voluntária (parte da vontade e não há contestação), porém inapropriada em crê-la pelos sentidos, por exemplo, ao colocarmos um bastão sobre a água poderíamos afirmar que ele está quebrado e com isso a ideia de verdade estaria na afirmação em que foi construída através da experiência, não no seu enunciado (dedução lógica). O que aconteceu é que, o bastão não foi quebrado antes de colocá-lo na água e muito menos dentro da água. E isso se revelou para Descartes como um engano em aceitar algo como verdadeiro obtido pelos sentidos, pois o bastão não estaria quebrado de fato, apenas seria uma imagem refletida na água por algo distorcido da realidade. Então, a vontade alinhada a algo verdadeiro estaria submetida a um único caso, a razão (verdades matemáticas). As relações em que não apresentam contradições (distorções da realidade), por exemplo, ao pensarmos sobre quanto é dois mais três, conseqüentemente imaginaríamos cinco, sem duvidar.

Por outro lado, a vontade não sendo projetada no sentido racional da busca pela verdade de fato, serviria como forma de negar ou suspender o juízo (duvidar das coisas) e estaria livre de afirmar ou negar qualquer coisa duvidosa. Sobretudo, mesmo sendo falsa uma argumentação que imaginássemos ser verdadeira, isso não estaria baseado na razão, mas, em informações que os sentidos nos enganaram. Assim, a dúvida cartesiana é o resultado da verdade encontrado pela razão, o conhecimento isento de qualquer contestação ou dúvida que venha derrubá-lo, a relação das informações é projetada para o entendimento livre de qualquer hipótese que venha ser duvidado.

Caso a vontade se adequasse a percepção (sentidos), isto resultaria em aproximidades com a verdade, denominado de verossimilhança. Eles são entendimentos fundados em enganos que não poderiam oferecer êxito em ter uma resposta segura e precisa. Mas, mesmo sabendo que este modelo é bem próximo da verdade (coisas prováveis), Descartes apresenta cautela em desmistificar algo enquanto falso. E, para que não seja enganado pelos sentidos, pois inevitavelmente faz parte do seu corpo, postou-se a duvidar de todas as coisas e fazer uso da razão para encontrar suas verdades. Com isso, Descartes entende que esse momento de duvidar de todas as coisas é justamente para reorganizar a sua mente e deixar um espaço para encontrar um conhecimento seguro e desenvolver o seu projeto de algo indubitável e desenvolver a sua filosofia.

Portanto, a decisão de duvidar de todas as coisas dubitáveis estabelece o critério de verdadeiro. E passa a marcar o limite em que a dúvida se apresenta para construção de uma ciência que não está fundada em base de coisas prováveis, mas em estruturas sólidas e permanentes. Objeto da dúvida

Descartes explica que a dúvida na qual venha fazer parte do seu projeto trata-se principalmente sobre as coisas materiais. E por meio deste caminho o filósofo acredita construir uma ciência perfeita. Ele põe em discussão suas crenças e ao mesmo tempo avalia os seus princípios e descobre que esse conhecimento que habitualmente pensava ser seguro, deriva-se dos sentidos.

Seu projeto apresenta dois aspectos centrais: o primeiro põe em discussão o modelo aristotélico, os fundamentos de sua ciência e refuta-o. O segundo aspecto, busca avaliar a consistência da ciência cartesiana alinhada com a matematização do mundo, trata-se do novo sistema que Descartes estava implementando em sua estrutura filosófica.

Para combater a ciência aristotélica Descartes faz uso do ceticismo, uma linha filosófica muito presente no período do século XVII na Europa, no qual havia uma onda de dúvidas sobre as crenças baseada na experiência. Por outro lado, Descartes percebia inicialmente viver um momento desafiador, pois sentia que para se desprender do conhecimento velho e adquirir novos princípios não o concebia algo com muita simplicidade, assim, a cada investida e descoberta o filósofo realizava suas ações com cautela.

Em primeiro lugar, Descartes invoca a experiência comum do engano dos sentidos de maneira simples e percebe que nesta circunstância ficaria muito distante do seu campo de atuação, ele estava em busca de analisar as coisas da natureza sob os aspectos gerais e macroscópicos. E neste caso seria um problema desmistificar os enganos por meio da dúvida das coisas mais próximas que estariam ao seu redor, por exemplo, como poderia negar que não esteja sentada agora nesta cadeira e próxima a esta lareira que o aquece? O filósofo entende que somente os insensatos defenderiam esta experiência.

Analisando com mais prudência, Descartes encontra uma possibilidade comum e cotidiana no ser humano que a experiência pelos sentidos o leva-o ao engano, a do sonho. Segundo Scribano (2007) Descartes percebe que nos sonhos em si apresenta algo vivaz em nosso pensamento, de maneira que se torna impossível distinguir o momento de estarmos dormindo ou acordados. Em linhas gerais o filósofo explica que nenhuma experiência tem condições de atestar algo fora do nosso pensamento.

Os nossos juízos definem que as coisas estão fora da nossa mente, são os entes experimentados. Por outro lado, para compreendermos algo a nossa mente busca semelhanças de objetos (representações) obtidos por meio de nossas percepções anteriores a deste objeto. E com isso a hipótese sobre o sonho se apresenta como algo devastador, pois toda construção da ideia não é oriunda do mundo exterior é obtido na mente, isto é, nada pode ser construído fora do pensamento.

Baseado na ideia de representação Descartes acredita que algo além da mente possa existir. Segundo Scribano (2007) menciona que se toda experiência fosse do sonho pelo menos os elementos essenciais não eram criados a partir da imaginação, por exemplo, o artista ao retratar seu quadro ele poderia elaborar criações reais, abstratas ou imaginárias, mas, o material utilizado para elaboração desta obra não fora construído dentro de sua mente, há uma natureza corpórea que se aplica a algo que não pertence à mente, mas ao mundo exterior, denominado de extensão, algo que pode ser medido, pesado e calculado.

Com isso o argumento do sonho permite algumas considerações, entre elas, a estrutura matemática permanece intacta e a experiência sensível se torna impotente, pois não há como atestar algo obtido pela experiência. A primeira consideração diz respeito à matemática permanecer a mesma diante do sono ou da vigília e, na segunda consideração a situação do sono não garante que estaríamos acordados nesse momento, e como isso poderíamos ser enganados por não poder controlar a situação vivida durante a vigília.

A dúvida percorrida pelo campo da experiência vivida no século XVII diz respeito ao conhecimento aristotélico-tomista e suas características mais gerais (fundamentação), entre os seus princípios a dedução por meio de categorias oriundas da experiência. Desta maneira, da natureza corpórea Descartes pode deduzir o dualismo, de um lado a alma (pensamento) e do outro o corpo (extensão) sujeito a quantidade. A matemática permaneceu intacta à prova da dúvida oriunda dos sentidos, se tornou a única ciência duradoura e se viu obrigado a trabalhar com seus puros conceitos.

Tomás de Aquino irá evocar algo denominado de "matéria inteligível" no qual a matemática irá trabalhar, ela oriunda da experiência. Descartes descobre que as ciências composta (derivadas) apresentam diversas dúvidas em suas estruturas, mas a matemática continua com seus conhecimentos fundamentais intactos. Desta forma, Descartes define o seu caminho que irá seguir para encontrar as respostas claras e distintas, por meio das matemáticas, pois as experiências não transmitiam segurança enquanto sua possível credibilidade.

Descartes observando com mais cuidado percebe o nível a que se chegou sobre a dúvida dos sentidos, foi posto em discussão algo além do conhecimento aristotélico mais a nova ciência que estava emergindo. De maneira geral, o que se encontrava não correspondia a sua qualidade em si (coisas essencialmente particulares), mas os seus elementos primeiros, as estruturas matemáticas isenta de qualquer tipo de experiência.

A exemplo disso Descartes trata em sua obra Regulae ad directionem ingenii, a diferença entre duas formas de experiência. A experiência das coisas mais simples no qual são apresentadas como: distintas, não podem ser dividas na mente e não são experimentadas, por exemplo, a figura, o movimento, a extensão e etc. E a experiência das coisas compostas no qual são concebidas pelas coisas mais simples e seus entes são compostos. Deste modo, Descartes por estar em busca de uma fundamentação para a ciência e conseguir prever que as matemáticas se encontram como o último componente da experimentação ele irá se concentrar sob as propriedades quantificáveis.

Assim podemos dizer que, com essas argumentações Descartes rebate com sustentação o ceticismo clássico de duvidar de todos os resultados das experiências pelos sentidos. O filósofo demonstra que a partir do argumento dos sonhos que é uma experiência sensível a matemática continua intacta, revelando suas naturezas simples no qual encontramos as verdades indubitáveis. Segundo Scribano (2007) a argumentação das verdades matemáticas se sustenta unicamente pela dependência da prova da não contradição, são leis que regulam o nosso raciocínio e o pensamento. E isto, seria o sentido da independência sobre a experiência fazendo com que apenas as proposições matemáticas atestam as verdades ou falsidades das ciências, ou seja, a razão se apresenta como o juízo entre a verdade ou falsidade para o conhecimento seguro.

Mais ainda, a mente humana não concebe uma incoerência cognitiva, não aceita algo contraditório. Portanto, seria impossível duvidar da matemática (quantificável) e da geometria (forma). Assim sendo, retomando a ideia do ceticismo clássico que duvida das certezas sensíveis (experiência) não poderiam duvidar das certezas das matemáticas, assim, a ciência fundamentada nessa base racional poderia alcançar o seu reconhecimento pleno.

Para Descartes o ceticismo clássico aparentemente teria razão em acreditar que poderia duvidar de tudo, exceto das verdades matemáticas, mesmo porque a contradição não ocupa lugar na mente humana (razão). Porém, o filósofo busca sustentação para essa defesa, ele problematiza na intenção de buscar fundamentação e levanta a hipótese de que se a razão é limitada em não aceitar algo irracional e tem a matemática como algo indubitável, poderíamos então estar vivendo de aparências ou sendo enganados por uma mente superior a mente humana.

O único ser superior a mente humana e o criador de todas as coisas que há na natureza, Descartes pensa, e chega à conclusão de Deus. Assim, Deus ao ser onipotente poderia fazer que nada exista fora da nossa mente e as proposições matemáticas sejam apenas ilusões, ou seja, poderia ser enganado quando executasse as operações matemáticas quanto ao julgar qualquer realidade dos corpos.

Desta forma, ao considerar a validade da hipótese do Deus enganador algumas considerações foram levantadas, entre elas, mesmo que esteja acontecendo essa articulação de um Deus enganador na esfera da sua capacidade racional Descartes não encontra respostas lógicas para isso acontecer, por exemplo, ao pensar que dois mais três não seja igual a cinco ou que as coisas que estejam ao seu redor não existam. Mas, o filósofo evoca a seguinte possibilidade em que todas essas questões podem se sustentar, no campo da persuasão (psicológico). No campo da ciência (formal) isso não é possível, ou seja, não há como provar por meio lógico e claro que tudo imaginamos que exista seja falso e somos enganados quando pensamos. Logo, se provar o que me parece indubitável pertença somente à esfera da mente humana, se conceber aquilo que entendo por verdadeiro não seja falso para os outros, encontro o conhecimento verdadeiro e alcanço a certeza mais que perfeita, servindo como base para nova ciência.

A aceitação psicológica para a verdade é referente à passagem de que não há como aceitar proposições lógicas e distintas que acontecem em meus pensamentos que não estejam em outras mentes humanas, por exemplo, que Deus é onipotente e criador de todas as coisas. Esse Deus poderia desejar que me engane em minhas razões matemáticas, mas, essa problemática diz respeito a algo além da ideia do próprio Deus poderosíssimo, a possibilidade ou não de minha existência. Portanto, a natureza da razão encontrada para construção da nova ciência trata-se de encontrar conhecimentos que corresponda ao âmbito da razão humana e que não deixe nenhuma possibilidade de dúvida.

Duvidar do indubitável

Conforme Scribano (2007) explica que, não há entendimento daquilo que a mente humana é incapaz de duvidar, é algo contraditório, mas, se deixarmos de lado as questões específicas da matemática, por exemplo, quando resolvemos uma conta simples e olhar de maneira abrangente ao ponto de considerar que estaríamos sendo manipulado por um Deus enganador em que criou uma mente que nos faz pensar algo certo que não fosse verdadeiro, isso seria possível. Contudo, Descartes não consegue duvidar que dois mais três não seriam cinco, porém, concebe a ideia de um Deus enganador e aquilo que lhe parece falso por outra mente. Essa possibilidade põe em questão os juízos sobre as ciências matemáticas como algo indubitável de fato e o Deus enganador quanto outra mente manipuladora seriam apenas encaradas como esforços ligados a persuasão de acreditar em algo.

Para ser compreendida a dúvida mais claramente Scribano (2007) distingue dois níveis da dúvida: a psicológica que corresponde à própria ação de duvidar de algo e a normativa em que a dúvida apenas venha existir se apresentar motivos válidos. Para efetuar a dúvida normativa é indispensável à dúvida psicológica, ou seja, é impossível duvidar quando pensamos que dois mais três não seja igual a cinco ou que um quadrado não tenha quatro lados, esses resultados se sustentam por apresentarem ideias claras e distintas ao pensamento, porém não é impossível pensar que esses resultados seja obra de um deus enganador (falsas). A diferença com relação à forma distinta da dúvida psicológica diz respeito a sua contradição, isto é, a não aceitação do pensamento humano (razão) em aceitar quando um resultado de três mais dois não seja igual a cinco. E isso atribui que, apenas a dúvida formativa passa ser o instrumento para aferir a validade das ciências, isto é, mecanismos para eliminar as incoerências ou contradições e encontrar conhecimentos claros e distintos.

Descartes ao pensar na hipótese da existência de um Deus enganador remete a dúvida no seu nível mais profundo e inaugura uma discussão que está além da própria ideia entre o ceticismo clássico, o filósofo coloca em prova a própria existência de Deus. E para isso, Descartes para se desfazer a ideia desse Deus enganador ele apresenta as seguintes proposições: Deus não apresenta ideias contraditórias e ele é verdadeiro, logo Deus não poderia ser enganador, pois se fosse apresentaria ideias confusas.

Para o filósofo o início de sua jornada resulta que, a todo o momento o seu esforço se constitui em exercícios árduos. Em seus pensamentos preservam muitas ideias antigas alinhadas aos costumes do que foi ensinado, e isto de uma forma acaba conduzindo-o a acomodação.



Referência bibliográfica:

SCRIBANO, Emanuela. Guia para leitura das meditações metafísicas de Descartes.Tradução: Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola. 2007.

Autor: Kleber Marin


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