Você já ouviu falar nisto



Você já ouviu falar nisto


Hoje utilizei o transporte público de Salvador. O famoso buzu. Lastimável o transporte público desta cidade. O que eu peguei, por exemplo, quanta poeira, quanto barulho. As ferragens pareciam querer desmanchar-se. Na entrada não se vê olhos no cobrador. A famigerada obrigação do trabalho diário enfia as pessoas em atos tão distantes da interpessoalidade que, se ali estivesse uma catraca eletrônica, para mim teria o mesmo efeito. Bom, segui ouvindo no MP3 as passionais músicas do grupo mexicano Maná. Quantas palavras bonitas ecoadas ao som da prosódia espanhola... Sempre gosto de admirar a cidade em todos os seus aspectos. Fico alardeado com aqueles varais ornando cada cantinho de casa pendurado nos mais íngremes telhados. Confesso que há beleza fora do salão de beleza. Chegando em Ondina, comecei a mirar o atlântico. Uma moça vendedora de empadas, pede o ponto. Faz algazarras como quem quer chamar atenção e desce. Nisso um rapaz numa cadeira de rodas muito simples quer subir no ônibus. Naquele momento parei de olhar o azul do oceano e finquei os olhos no rapaz. O cobrador foi logo dizendo que o elevador do ônibus era uma porcaria e sempre dava problema. Sobem algumas pessoas, ele passa o troco e o rapaz lá à espera do elevador. Resmunga e dá alguns passos em direção à porta central sem acreditar muito que iria ajudar o cadeirante. Naquela hora todos no ônibus já olhavam a situação. O rapaz, já sem jeito, espera pacientemente. É notório que o cobrador não sabe mexer naquela engenhoca. Teria sido treinado? Elevador sobe, elevador desce e nada de a plataforma chegar próximo da calçada. Alguns olham no relógio e veem aquilo como um atraso na tão agitada vida urbana. Os compromissos nas poucas vinte e quatro horas oferecidas por Cronos são muitos, mas é assim que ele nos devora. Acabei olhando para o meu relógio também. Mas nem imaginava que tal atitude me colocaria num dilema: eu ali já dentro do ônibus, perto do meu ponto de chegada, preocupado com míseros minutos de meu dia, enquanto aquele rapaz sequer conseguia entrar no ônibus.
Não quis sentir compaixão dele. Tenho lutado para encarar certas situações com mais realismo. Nesse entrecruzar de ideias, o cobrador segue procurando ajustar a máquina. O cadeirante dá algumas dicas na tentativa do êxito, mas nada parece contribuir para que ele suba, enfim, no bendito ônibus. Retornei ao meu pensamento egoísta e isso me fez um mal danado. Como somos ridículos, às vezes! Como somos mesquinhos! Quase sempre acabamos por pensar na nossa própria causa. O mundo lá fora é um terreno estranho e não nos diz muito. Eu! Eu! Eu! Santo egoísmo! Perdido nessas divagações, voltei com a voz do rapaz gritando que esperaria outro ônibus, já que ninguém resolvia a questão. O cobrador foi gentil e disse que se alguém se prontificasse a ajudá-lo que daria para resolver o impasse. O possível passageiro pede a um rapaz que está subindo para lhe ajudar. Também quis fazê-lo, mas percebi que não havia necessidade. A força motora ali presente já era o suficiente! Com algum esforço, o homem foi colocado no ônibus e conseguimos seguir viagem. Passei alguns instantes pensando em Cronos/cadeirante/cobrador/eu. Um deus e três mortais. Quem estaria na posição mais confortável? Certamente não seria o cadeirante..... Não faz muito tempo, li uma matéria com o músico Marcelo Yuka que ficou paraplégico depois de tentar evitar um assalto. Ele dizia que são milhares de portadores de alguma necessidade especial no país. O número é expressivo e se faz necessário que as autoridades acordem para esta realidade. A situação que presenciei justifica muito bem o pensamento do artista. Passam-se anos para conseguir que os ônibus forneçam acesso aos cadeirantes e feito isso ainda encontramos rodoviários que sequer sabem movimentar os elevadores. Um descaso absurdo! Esse conjunto é uma minoria que não é minoria. Não dá para fingir a sua inexistência. É uma questão de obrigação de todos sugerir grandes e eficazes mudanças nesse aspecto. O acesso para essas pessoas ainda é limitado e o sagrado direito de ir e vir fica, então, condenado. Infelizmente a minha história não é a primeira. Infelizmente ela não será a única. Infelizmente você ainda vai ouvir falar sobre...


Ao correr do teclado, Salvador, 14/04/2011

Autor: Tiago Farias


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