TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: PRÁTICA EDUCATIVA LIBERTADORA




CLARICE FÁTIMA DAL MÉDICO

TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: PRÁTICA EDUCATIVA LIBERTADORA



Monografia para obtenção do titulo de Especialista em Ensino Religioso

RESUMO

O presente trabalho analisa a relação da religiosidade popular com a formação de valores e ideologias de segmentos sociais. Estuda elementos teóricos e ideológicos presentes no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e sua origem, a qual ocorreu com a intervenção de agentes de pastoral identificados com a Teologia da Libertação no meio social que gestou o Movimento. De outra parte, identifica as práticas educativas do MST e sua correspondência com os valores característicos da religiosidade popular. Observa a relação existente entre a religiosidade popular e a constituição de valores sociais, éticos e ideológicos no processo educativo. Nessa perspectiva, o Ensino Religioso possui uma significativa responsabilidade com a discussão de valores identificados com a transformação social.

Palavras Chave: Religiosidade popular - Educação popular - Ensino religioso

AGRADECIMENTO

Ao finalizar esta relevante etapa de minha vida, é indispensável destacar as pessoas que contribuíram de alguma forma para a efetivação do presente projeto de estudo. Assim, firmo os meus agradecimentos ao Emerson, meu esposo, dedicado ao estudo e grande incentivador da minha pesquisa. Aos colegas, em especial a Marilene e a Lorena, pelo apoio e cumplicidade. Ao professor Mário, sempre próximo aos estudantes, e a professora Maria de Lurdes, pela contribuição dispensada a este trabalho.


M489t

Médico, Clarice Fátima Dal
Teologia da libertação: prática educativa libertadora. / Clarice Fátima Dal Médico. - - Cachoeirinha: CESUCA / Instituto Superior de Educação, 2007.
51p.

Orientadora: Maria de Lourdes Cônsul
Monografia (especialização) ? CESUCA / Instituto Superior de Educação, 2007.

1. Religiosidade popular. 2. Educação popular. 3. Ensino religioso. 4. Ensino religioso - Monografia. I. Cônsul, Maria de Lourdes. II. Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha, Instituto Superior de Educação, 2007. III.Título.

CDU: 37:2



SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 07

1 RELIGIOSIDADE E TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA CULTURA LATINO-AMERICANA ........................................................................................................... 09

2 A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E A FORMAÇÃO DO MST ............................... 17

3 O ASSENTAMENTO INTEGRAÇÃO GAÚCHA E A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: EDUCAÇÃO MEDIADORA DA REALDIADE ................................. 24

4 ASSENTAMENTO INTEGRAÇAO GAÚCHA E A EDUCAÇÃO LIBERTADORA COMO MEDIADORA DA REALIDADE .................................................................... 29

5 A EDUCAÇÃO NO ASSENTAMENTO INTEGRAÇÃO GAÚCHA ........................ 40

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 47

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 50


Introdução

A espiritualidade é inerente ao ser humano. No decorrer da história da humanidade há um elemento recorrente na identidade dos homens e das mulheres: a mística. Na pré-história e antiguidade, a natureza era cultuada como sinônimo de divindade. A dificuldade em explicar fenômenos da natureza e a origem do ser humano valorizou o mito.
A partir do desenvolvimento da consciência humana, a espiritualidade avança na perspectiva do paradigma da solidariedade, o qual é gestado pelo cristianismo primitivo. Esse é constituído pela ação social enraizada na superação das demandas do coletivo. A preocupação com todos e todas é o centro da vida social.
Sendo assim, todas sociedades exercem sua espiritualidade. No entanto, de forma distinta. Algumas estão próximas ao paradigma da solidariedade, outras estão mais distantes, como, por exemplo, os grupos sociais que escravizam o trabalho e abusam sexualmente de crianças.
Na atualidade, existem movimentos sociais que possuem uma rica experiência com a espiritualidade solidária, a qual move a construção de ações culturais, políticas e sociais alternativas à sociedade excludente que aí está. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é uma prova disso. Organizado a partir da ação pastoral identificada com a Teologia da Libertação, a elaboração e efetivação da sua proposta pedagógica é permeada pela mística libertária da Teologia da Libertação.
O presente trabalho analisa a relação histórica do MST com a Teologia da Libertação e a correspondência dessa teologia na construção da pedagogia do Movimento. Para tanto, apresenta a experiência do Assentamento Integração Gaúcha, localizado no município de Eldorado do Sul, o qual em seu processo de organização contou de forma efetiva da práxis educativa do MST para constituir-se.


1 RELIGIOSIDADE E TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA CULTURA LATINO-AMERICANA.
A cultura mexicana e brasileira é permeada pela religiosidade popular. Comum à América Latina, a forte presença da Igreja Católica na formação social e cultural da região influenciou a constituição ideológica da população local. Dessa forma, comportamentos, idéias, concepções de mundo e ações sociais são legitimadas por princípios e práticas teológicas incrustadas no tecido social.
Nessa perspectiva, no sertão baiano, em 1894, surgiu uma "cidade" denominada de Canudos, formada por homens e mulheres desprovidos de terra e de condições de prover a sua própria subsistência. O fator de coesão e articulação do grupo era a liderança do beato Antônio Conselheiro, que interpretava o contexto de transição da monarquia para a república como responsável pelo desajuste e degradação das condições de vida da população pobre da região. De fato, Canudos constituiu-se num lugar bem peculiar, que contrastava com a organização oligárquica do nordeste. A apropriação comum da produção do trabalho coletivo e os laços de ajuda mútua estavam em consonância com a orientação teológica defendida por Antônio Conselheiro: cristianismo popular.
Não cabe aqui aprofundar a análise do processo de organização e de conflito dos integrantes de Canudos, mas apenas utilizá-lo como exemplo para ilustrar a recorrência histórica da relação da religiosidade popular com a intervenção política de determinados grupos sociais.
Nessa perspectiva de análise, José de Souza Martins destaca a pertinência da apreensão da cultura popular para compreendermos os movimentos sociais brasileiros: "(...) os movimentos camponeses não são compreendidos no país, pois não se leva em conta a cultura popular. De outro lado, surgem a partir da desordem, da alteração das relações sociais de dependência, possuem um fundo de messianismo." .
Assim, a análise histórica do MST não pode ser apartada do exame da cultura popular a qual está inserida e é representativa. Na realidade, são esses elementos cultuais que substanciam as ações sociais do Movimento e, por conseguinte, a constituição do ideário.
De outra parte, no caso do México, esse fenômeno também se faz presente, basta observar o processo de independência do país, que contou com a participação significativa de Hidalgo e Morelos, dois religiosos, e destacar a prática do Frei Bartolomeu De La Casas, o qual, mesmo inserido no contexto colonial, questionou a subjugação dos indígenas.
Assim sendo, os estudos históricos dos movimentos sociais latino-americanos não devem prescindir do exame da cultura popular, particularmente da percepção teórica dos segmentos sociais acerca da religião.
Nessa perspectiva a Teologia da Libertação, incrustada na realidade social e cultura latino-americana, deve ser compreendida como uma resposta social ao contexto de modernização conservadora e de agravamento das contradições sociais na região.
De forma recorrente, a Teologia da Libertação é apresentada como um referencial teórico elaborado para ordenar ações pastorais no meio eclesial e social, vislumbrando a alteração da estrutura socioeconômica da sociedade. Essa leitura simplista homogeneíza o processo de constituição teórica da Teologia da Libertação, não observa a participação relevante das lutas sociais e as "novas" práticas pastorais, que surgiram a partir das décadas de 1950 e 1960, como geradoras do novo referencial teológico. Na realidade, a Teologia da Libertação é a reflexão teórico-teológica do processo de renovação religiosa do catolicismo latino-americano, o qual emergiu de baixo, ou seja, a partir da ação "espontânea" de leigos e religiosos na luta pela organização da sociedade civil frente aos governos autoritários e a realidade socioeconômica excludente da América Latina.
No Brasil, no inicio da década de 1960, a conjuntura política controvertida, na qual a ampla mobilização social em torno do estabelecimento de políticas sociais constituía-se a raiz dos conflitos, possuía como ponto de tensão principal a problemática agrária. A reforma agrária, uma questão não resolvida na história brasileira, de forma cristalina, passa ser reivindicação de segmentos sociais marginalizados do acesso a terra e submetidos às transformações do trabalho no campo. De outra parte, o governo de João Goulart recorria a "participação popular" como estratégia política para legitimar e implementar o seu projeto de desenvolvimento nacional alicerçado no mercado interno.
No cenário eclesial, a Igreja Católica Romana envolvera-se na disputa da luta social no campo, disputando essa base social com o Partido Comunista do Brasil. Na área urbana, leigos e religiosos ligados também a Ação Católica têm intervenção sóciopolítica na perspectiva da transformação social. Nesse contexto, situa-se o Movimento de Educação de base, coordenado por Paulo Freire, que se ocupou do processo de alfabetização de adultos, sobretudo, nas zonas rurais do nordeste do Brasil, e contou com a ampla participação de religiosos e leigos. Assim sendo, representou uma experiência educativa da posterior reflexão teórica denominada pedagogia da libertação.
Neste panorama de conflito político e social na América Latina, surge a renovação pastoral e eclesial. A postura tradicional da igreja de não se envolver nas questões sociais, assumindo a defesa dos setores empobrecidos da sociedade, foi alterada. Dessa forma, a religiosidade tradicional, que percebia a pobreza e a realidade social como desígnio divino, transita ao campo oposto: como uma imperfeição do mundo dos homens e uma injustiça teológica. Assim, a intervenção pastoral devia se ocupar com o processo de conscientização da população pobre, com o objetivo de adequar o meio social aos princípios da "releitura" teológica.
Dessa forma, a atuação dos integrantes da Igreja Católica Romana e Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB) desenvolveu uma prática pastoral que, na década de 1970, a partir dos estudos de teólogos, foi caracterizada como a Teologia da Libertação. No entanto, não é uma teoria empírica, mas o produto da análise do fenômeno social da renovação das práticas pastorais do período. Assim, como movimento religioso, a Teologia da Libertação pretendia adequar a Igreja Católica Latino Americana à realidade social e cultural autóctone. O ápice dessa nova prática pastoral foi o Concilio Vaticano II (1962), a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medelín, Colômbia (1968) e a III Conferência do Episcopado Latino-Americano em Puebla, México (1979).
A partir do Concilio Vaticano II, da II e III Conferência do Episcopado Latino-Americano, houve uma ruptura "oficial" da Igreja latino-americana com a teologia tradicional, identificada com a mentalidade colonizadora. Podemos dizer que amplos setores da alta hierarquia da igreja passaram a identificarem-se com as camadas subalternas latino-americanas, que eram fustigadas em sua realidade social e econômica pelo capital.
Nesse sentido, a simples missão de evangelizar redimensiona-se ao considerar como essencial no processo de professar a fé cristã, o conhecimento e valorização da cultura popular. Ou seja, o trabalho pastoral com os oprimidos tem que partir do diagnóstico da sua linguagem, conforme enfatiza o documento da III Conferência Episcopal: "Será a evangelização um trabalho de pedagogia pastoral, no qual o catolicismo popular seja assumido, purificado, completado e dinamizado pelo Evangelho. E por isso é necessário conhecer os símbolos, a linguagem silenciosa, não verbal do povo".
Portanto, a partir dessa inclinação, o catolicismo representante dos conceitos da Teologia da Libertação, legitimado pela hierarquia da igreja latino-americana, aprofundou o processo de aproximação com o cotidiano social das camadas menos favorecidas. Passou a organizar e participar de suas mobilizações contra as conseqüências do processo de modernização conservadora e expansão do capitalismo internacional na América Latina.
De forma efetiva, a teologia da libertação consubstanciou-se num paradigma para a organização de movimentos sociais e à participação política dos oprimidos. Conectado a esse fenômeno, cristãos e cristas, organizadas em grupos denominados de Comunidades Eclesiais de Base (Cebs), refletiam sobre o Evangelho e a sua correspondência com a participação protagonista e sócio-transformadora da população pobre na sociedade. As Cebs, no Brasil, como em toda América Latina, se tornaram um espaço de mediação política da intervenção social, ou seja, o estudo bíblico servia como ponta de lança para a ação política dos populares. Outro símbolo dessa nova práxis religiosa é o método de trabalho utilizado pelas lideranças das Cebs: ver, julgar e agir. Os estudos e discussões acerca da realidade socioeconômica da América Latina partiam do diagnóstico dos problemas e da conjuntura, analisavam conforme as reflexões bíblicas e elaboravam as atividades a serem executadas pelo grupo naquele contexto. Configura-se, assim, a idéia de autonomia e conquista da libertação social e religiosa da população empobrecida. Compreende-se a transformação estrutural da sociedade latino-americana como um componente no processo de libertação espiritual. Nessa perspectiva, as Cebs implementaram uma nova forma de tratar a política. Conforme Fernando Calderón, as Comunidades Eclesiais de Base são organizações que lutam contra formas tradicionais de fazer política e que se chocam com as tradições centralistas e verticalistas das próprias tendências partidárias e estatais. De fato, estabeleceu-se um conflito entre duas concepções de política: a prática tradicional, alicerçada na alienação da cidadania da população pelos segmentos hegemônicos do Estado, e os grupos opositores a essa realidade, os quais vislumbravam a luta política como a busca da democratização do Estado, indispensável à democratização socioeconômica e a valorização da Dignidade Humana .
Fiel ao contexto de mobilização social, as Cebs difundiam, através da metodologia de trabalho, a leitura da realidade e intervenção social baseando-se na defesa do projeto popular e democrático, o qual delimitava qual o modelo de sociedade pretendida, opondo-se radicalmente ao Estado autoritário.
Assim sendo, foram espaços ricos para a socialização política e construção da organicidade dos grupos subalternos. Nestes micro-espaços, eram desenvolvidos o conceito de autonomia e libertação a partir de leituras de passagens bíblicas e da análise da problemática social na qual os integrantes estavam inseridos.
Nessa perspectiva, a Teologia da Libertação compreende que a alteração do status social do oprimido depende exclusivamente da sua intervenção autônoma no meio social. Nas conclusões da Conferência de Puebla foi destacado o compromisso da Igreja Católica em contribuir para a formação de condições subjetivas para o incremento da organização popular, a qual era indispensável para a mudança da realidade social excludente. Sendo assim, esse processo é denominado de promoção humana.

A promoção humana implica atividades que ajudam a despertar a consciência do homem em todas as suas dimensões, a valer-se de si mesma para ser protagonista do próprio desenvolvimento humano e cristão. Ela educa para a convivência, dá impulso à organização, fomenta a comunicação (sic!) cristã dos bens, ajuda de modo eficaz a comunhão e a participação.


De forma emblemática, a Igreja Católica rompe com as concepções do Concilio de Trento, adequando-se a conjuntura mundial de efervescência política e cultural do período. Enquanto paradigma, a opção preferencial da igreja latino-americana pelos pobres não é uma elaboração exclusiva das conferencias episcopais citadas, mas representa o reconhecimento teológico e adesão ao movimento de renovação popular do cristianismo latino-americano.
De outra parte, o alto escalão hierárquico da igreja do Estado do Rio Grande do Sul, mesmo "comprometido" com a deposição do Presidente João Goulart, coerente com a tradição do Ensino Social, questionou a política agrária dos governos militares, em especial pós 1968, por impedir o desenvolvimento do homem. Como exemplo dessa postura crítica, Zilda Iakoi destaca:

Em julho de 1968, realizou-se o encontro da Regional Sul 3 da CNBB sobre a importância da Reforma Agrária. O resultado do encontro traduziu-se numa carta enviada ao Presidente Costa e Silva pedindo a aplicação do Estatuto da Terra na parte que diz respeito à Reforma Agrária (arts. 16 e 30). Pela carta, assinada por D. Vicente Scherer, D. Aloísio Lorscheider e mais doze bispos, a Igreja do sul defendia a formação de uma vigorosa classe média rural, constituída por propriedades familiares. Em defesa dessa proposta, relembrava aos militares que o compromisso de Castelo Branco com a reforma agrária estava colocado no texto que embalava os fundamentos do Estatuto da Terra. P. 75.


2 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E A FORMAÇÃO DO MST
Os setores progressistas da Igreja Católica e Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB) tiveram um papel ímpar na formação do MST. Os agentes de pastoral representantes dessas instituições religiosas politizaram os conflitos sociais decorrentes das contradições agrárias que se salientaram com o modelo agrícola dos Militares.
Na análise a seguir será abordado especificamente o trabalho desenvolvido pela Igreja Católica com os sem-terra por compreender ter sido um envolvimento bastante estreito com o Movimento e que perdura até a atualidade, sobretudo no Estado do Rio Grande do Sul.
A atuação dos integrantes da Igreja Católica foi fundamentada na Teologia da Libertação que surgiu na década de 1960 como movimento teológico que pretendia adequar a Igreja Católica Latino Americana à realidade social e cultural autóctone. O paradigma para essa nova prática pastoral foi o Concilio Vaticano II (1962), a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medelín, Colômbia (1968) e a III Conferência do Episcopado Latino-Americano em Puebla, México (1979).
Com a adequação teológica à realidade social, a Igreja Latino Americana rompeu com a postura evangelizadora reformista, até então hegemônica, identificada com o sistema capitalista. Esse fato determina o contraponto Igreja representante da práxis pastoral moderna e capitalista e da teologia dos oprimidos que professa a igualdade social. Vejamos a análise de Leonardo Boff sobre a ligação da teologia reformista e capitalismo:

A Igreja mesma se modernizou em suas estruturas, adaptadas à mentalidade funcional da modernidade, secularizou-se em muitos de seus símbolos, simplificou a liturgia e tornou-se adequada ao espírito do tempo. Neste nível não apresentava uma perspectiva alternativa, mas reformista, aquilo que era suportável pelos grupos modernos da sociedade.


De forma efetiva, a teologia da libertação consubstanciou-se num paradigma para a organização de movimentos sociais e à participação política dos oprimidos. Para isso, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) foram espaços ricos para a socialização política e construção da organicidade dos grupos subalternos.
Sendo assim, a Teologia da Libertação compreendia que a alteração do status social do oprimido dependia exclusivamente da sua intervenção autônoma no meio social. Nas conclusões da Conferência de Puebla foi destacado o compromisso da Igreja Católica em contribuir para a formação de condições subjetivas para o incremento da organização popular, a qual era indispensável para a mudança da realidade social excludente. Processo, esse, denominado de promoção humana.

A promoção humana implica atividades que ajudam a despertar a consciência do homem em todas as suas dimensões, a valer-se de si mesma para ser protagonista do próprio desenvolvimento humano e cristão. Ela educa para a convivência, dá impulso à organização, fomenta a comunicação (sic!) cristã dos bens, ajuda de modo eficaz a comunhão e a participação.

No Brasil a influência da prática pastoral orientada pela Teologia da Libertação foi responsável pelo surgimento de vários movimentos sociais entre eles o MST.
Ao final da década de 1970, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), criada em 1975, faziam o trabalho de conscientização política dos camponeses. Através de suas atividades procuravam capacitar o sem-terra a ser sujeito autônomo e participativo com condições de compreender a raiz estrutural da sua exclusão.
As Cebs foram um espaço de pastoral que possibilitaram primeiras elaborações teóricas dos sem-terra, que expressavam o caráter de sujeito histórico do sem-terra, a reflexão acerca da necessidade de se organizarem para conquistar a terra e no desenvolvimento de novos valores. Portanto, as Cebs tiveram o caráter de proporcionar uma síntese popular que servia de referência para outros segmentos sociais. Nesse sentido, José Ivo Follmann ressalta a importância histórica das Cebs:

Por fim, no que diz respeito ao relacionamento das Comunidades Eclesiais de Base com os Movimentos Populares, Organizações Sindicais e Políticas, a par de, em situações especificas, algumas iniciativas terem se originado também dentro das Comunidades, é sobretudo de incontestável importância a função de apoio, de "ampliação popular" e de "reforço de fé", que estas exerceram e exercem com relação às diferentes lutas por melhores condições de vida e por uma nova ordem social.

No trabalho de base realizado com os sem-terra pelos agentes de pastoral era chamada a atenção para dois conceitos, até então estranhos à realidade do camponês brasileiro: democracia e participação. Em geral, nos encontros, os sem-terra discutiam coletivamente e decidiam quais os encaminhamentos a serem tomados pelo grupo. Nesse sentido, era rompida, nas Cebs, a lógica de dependência política do camponês na medida em que conquistavam sua cidadania, ou seja, exercitavam a democracia direta e a ampla participação, fato esse que determinou o surgimento de uma organização de sem-terra imbuída do compromisso de resistir à conjuntura desfavorável.
O MST foi gestado a partir da conscientização política promovida pelas Cebs e grupos da CPT. Percebe-se, ainda hoje, na organização do Movimento, elementos teóricos e objetivos identificados com a teologia da libertação como, por exemplo, a democracia direta e participação autônoma dos militantes. Conforme destacamos anteriormente a Teologia da Libertação tinha a intenção de refletir a cultura popular para professar a fé cristã e libertar o povo. De acordo com Leonardo Boff essa prática determinou um novo paradigma organizativo capaz de desconstruír a lógica do poder centralizado:

(...) a comunidade eclesial de base significa mais que um instrumento mediante o qual a Igreja atinge o povo e o evangeliza. É uma forma nova e original de se viver a fé cristã, de se organizar a comunidade ao redor da Palavra, dos sacramentos (quando é possível) e dos novos ministérios exercidos por leigos (homens e mulheres). Há uma nova distribuição do poder na comunidade, muito mais participativo, evitando-se toda centralização e dominação a partir de um centro de poder.

Nesse sentido, a formação do MST, a partir do diálogo com a Igreja progressista desenvolveu dois princípios organizativos: a ampla participação do militante na estrutura do Movimento e a heterodoxia teórica, ou seja, o estudo da cultura popular, da realidade social e econômica como ponto de partida para a elaboração teórica. Esse último princípio constituiu-se no fator que mais distingue o MST de outras experiências anteriores e atuais, segundo a análise do próprio Movimento. Vejamos a exposição de João Pedro Stédile acerca da influência da Teologia da Libertação para a heterodoxia do Movimento:

O segundo fator que nos influenciou veio, digamos, da teologia da libertação. A maioria dos militantes mais preparados do movimento teve uma formação progressista em seminários da igreja. Essa base cristã não veio por um viés do catolicismo ou da fraternidade. A contribuição que a Teologia da Libertação trouxe foi a de ter abertura para várias idéias. Se tu fizeres uma análise crítica da Teologia da Libertação, ela é uma espécie de simbiose de várias correntes doutrinárias. Ela mistura o cristianismo com o marxismo e com o latino-americanismo.

A alteração subjetiva do ideário dos sem-terra foi produzida inicialmente por vários fatores ligados à ordem econômica, no caso a crise da pequena agricultura que sofria com o novo padrão modernizante de produção capitalista no campo. Também por fatores de ordem política, com a crise de legitimação do Regime Militar e ascensão dos movimentos populares, e de ordem ideológica com a fundamentação da Teologia da Libertação para a construção de um agente (movimento) popular para conquistar melhores condições de vida com caráter permanente e radical .
A alteração subjetiva foi essencial para o surgimento do MST, pois proporcionou o convencimento político que o sem-terra necessitava para atuar através da identificação da sua história com a religião. A concepção de mundo do sem-terra, assentada na manutenção da ordem, foi desconstruída e ela passou a analisar a sua subordinação econômica e política a partir da lógica da injustiça social difundida pelos agentes de pastoral. Portanto, a perspectiva de visão imobilista tradicional relativa a acumulação foi transferida para uma nova dinâmica que mobilizou os sem-terra: a distribuição.

A Igreja começa a trabalhar o problema não na perspectiva da acumulação, mas na perspectiva da distribuição. É isso que vai marcar toda a posição dela até hoje, trabalhar com a idéia do pobre e da pobreza, e não com a idéia da acumulação que é o que está presente muitas vezes nas posições dos partidos políticos de oposições, os partidos de esquerda em geral.

Outro elemento presente no MST decorrente da Teologia da Libertação é a mística. Para os agentes de pastoral identificados com a Teologia da Libertação mística é sinônimo de mistério, aquilo que é revelado por intermédio da simbologia e permite a identificação do indivíduo com o grupo.

A pessoa é levada a experimentar, por meio de celebrações, cânticos, danças, dramatizações e realização de gestos rituais, uma revelação ou uma iluminação conservada por um grupo determinado e fechado. Importa enfatizar o fato de que mistério está ligado a essa vivencia/experiência globalizante.


O MST realiza a mística para promover a identificação ideológica e cultural dos sem-terra. Nesse processo, a simbologia (danças, dramatização, cantos, rituais) representa aquilo que não é expressado corriqueiramente pelo diálogo verbal. Ou seja, o sentimento de crença na mudança da sociedade é socializado pela totalidade do grupo, o Movimento, através de símbolos sínteses, que pode ser uma música que fale da luta histórica do camponês, ou as ferramentas de trabalho do camponês, ou uma dramatização que remonta a uma passagem histórica do grupo ou de uma liderança relevante para o MST, como Paulo Freire ou Che Guevara. A mística para o MST é uma prática social que possibilita a unidade interna e é inovadora na sociedade brasileira. Acreditamos que o Movimento adaptou a mística desenvolvida pelos agentes de pastoral à sua necessidade de expandir a capacidade de mobilização da militância para dar conta dos desafios enfrentados pelo MST, que será o objeto de análise no próximo capítulo.
Em linhas gerais pode-se afirmar que a relação de parte da Igreja Católica, segmento progressista, influenciou a retomada da luta por terra ao molde que foi realizado, ou seja, os sem-terra organizaram-se para conquistar a terra e não mais aceitaram a política de colonização do governo militar que utilizava essa estratégia para destensionar a mobilização. Além disso, a Teologia da Libertação realçou algumas características ideológicas, como a defesa dos valores democráticos, a participação, a autonomia do movimento e a mística.


3 O ASSENTAMENTO INTEGRAÇÃO GAÚCHA E A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: EDUCAÇÃO MEDIADORA DA REALIDADE

No final da década de 1980, centenas de famílias da região norte do Estado do Rio Grande do Sul, sobretudo da região do Alto Uruguai, organizaram-se em núcleos de base em seus municípios para discutirem a política agrária que os excluía do campo. Todos eram filhos de pequenos agricultores, arrendatários e meeiros. Conforme destacamos no primeiro capítulo, a agricultura familiar era o setor social mais afetado pela modernização da produção rural introduzida pelos militares, cujo novo paradigma tecnológico era inacessível aos pequenos estabelecimentos agrícolas. Dessa forma, a hegemonização da agroindústria no processo produtivo e a retração do financiamento público para agricultura familiar determinaram uma forte crise no campo brasileiro.
No período de 1988 a 1989, a inflação deteriorava rapidamente os salários e degradava o padrão de vida dos trabalhadores assalariados e da classe média. Esse contexto social gerou, também, movimentos sociais intensos de mobilização, marcada por greve geral, ocupação em massa de latifúndios improdutivos e insatisfação popular frente à crise econômica. Esse período findou em 1989 com a eleição do Fernando Collor de Mello para Presidente, estabeleceu a introdução das políticas econômicas e sociais ancoradas no neoliberalismo, o que implicou numa derrota dos movimentos sociais. O MST, então, como já destacamos, teve que se reorganizar internamente para encarar a nova conjuntura de repressão política e econômica empregada pelo Governo.
Todavia, interessa-nos nessa parte do trabalho o cenário pré 1989. O grupo de sem-terra que optou por organizar-se em núcleos nos municípios do norte do Estado a fim de conquistar terra inseriu-se nesse contexto de tensão social e as áreas rurais caracterizadas pela agricultura familiar geraram um expressivo contingente populacional para o conflito. Ou seja, o assentamento analisado tem sua origem histórica na crise produtiva de parte significativa do espaço geográfico do Alto Uruguai, devido à atualização capitalista efetivada pelos militares, apresentando a alternativa de um modelo popular onde estava colocada outra proposta de organização política e econômica, mais "democrática".
A partir do trabalho de base em vários municípios do norte do Estado, que consistia na reflexão dos sem-terra acerca da sua realidade social, 1500 famílias ocuparam a Fazenda Bacaraí em 19 de setembro de 1989 no município de Cruz Alta. Esse ato marca o salto qualitativo na consciência do grupo de sem-terra e substitui a postura passiva pela intenção de organizar-se para conquistar terra. Com esse feito, o grupo obteve o cadastramento das famílias pelo INCRA e a destinação de uma área provisória para acamparem.
Em março de 1990 o grupo, em concordância com a jornada dos movimentos populares, fez várias mobilizações para pressionar o Presidente da República, empossado em Janeiro daquele ano, no sentido da efetivação da reforma agrária. O grupo ocupou, então, a Fazenda Santa Fé no município de Fortaleza dos Valos/RS. A saída da área foi negociada e pacífica.
A seguir, a inquietação voltou ao grupo a partir de propostas não cumpridas por parte dos órgãos governamentais, determinando, assim, a ida de parte do grupo de acampados a Porto Alegre onde em agosto de 1990, participou de manifestação na Praça da Matriz com outros grupos de sem-terras vindos de diversas áreas do Estado do Rio Grande do Sul. A Brigada Militar reprimiu violentamente a manifestação que resultou na morte de um policial militar e na prisão de vários sem-terra, quatro dos quais foram acusados de assassinato e condenados em julgamento controverso, no qual a defesa dos réus argumentou a ausência de provas substanciais que comprometessem os acusados. Os quatro acusados foram condenados. Um dos sem-terra condenados, José Jowalski, seria assentado no Assentamento Integração Gaúcha se não ocorresse a prisão.
A repercussão desse incidente fez com que o INCRA reabrisse a negociação com o MST. Uma área de 1000 hectares, na cidade de Bagé, foi destinada, então, para assentamento do grupo. Entretanto, a proposta do INCRA de construir um Centro de Treinamento Agrícola (CTA) não foi efetivada pelo governo. Dessa forma, o grupo retomou a mobilização: ocupou a Fazenda São Pedro, na cidade de Bagé, houve o confronto com a Brigada Militar e integrantes da União Democrática Ruralista (UDR), resultando na morte do trabalhador rural Neuroni Machado. O grupo manteve essa área ocupada por 54 dias, até que conquistou a segunda área para assentamento, com 1700 hectares em Santana do Livramento. Mesmo assim, em virtude do tamanho do grupo muitas famílias estavam sem terra ainda.
Em continuidade a mobilização para que fosse conquistada terra para a totalidade do grupo, foi realizada uma caminhada do novo assentamento, na cidade de Santana do Livramento, até Bagé. Os sem-terra acamparam à margem da BR 116, 5 Km distante da cidade de Bagé. Uma parte do grupo, 500 pessoas, caminharam a Porto Alegre, para somarem-se à Jornada dos Movimentos Populares (SOS Vida). O restante do grupo ocupou a área da Embrapa, de Bagé. Essas atividades visavam sensibilizar a sociedade acerca da importância da reforma agrária.
A partir desse quadro de conflito agrário, em 1991, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, com a intenção de destensionar o conflito no campo, enviou um Projeto de Lei à Assembléia Legislativa no qual cedia 4000 hectares de terras em todo o Estado para reforma agrária. Assim sendo, 08 áreas foram destinadas à reforma agrária, e através da metodologia de sorteio o Governo escolhia as famílias a serem assentadas nos municípios de Guaíba, Eldorado do Sul, Piratini, Capela de Santana e Charqueadas. No sorteio foram indicadas 80familias para serem assentadas numa área do Instituto Rio Grandense do Arroz (IRGA), na cidade de Eldorado do Sul, formando o Assentamento Integração Gaúcha.
Este Assentamento constituiu-se, portanto, a partir da luta do grupo de 1500 famílias oriundas do norte do Estado, cuja peregrinação de três anos viabilizou, em 1991, o assentamento definitivo da totalidade do grupo. Essa conquista não é um fenômeno isolado no meio social, está interligada a múltiplos fatores de ordem política, cultural, econômica e social. Em 1988 as famílias, frustradas com a realidade de falência da agricultura familiar, começaram a discutir com o MST nas cidades uma nova forma de tornar possível a permanência do pequeno agricultor e do trabalhador rural no campo. Nesse período o contexto era de ascenso dos movimentos populares, o que facilitou a organização das famílias, num quadro de intensificação da crise econômica na agricultura, sobretudo, a familiar. Por outro lado, a ação de agentes de pastoral vinculados a Teologia da Libertação possibilitou os primeiros instrumentos teóricos para que os indivíduos saíssem da postura passiva e passassem a organizar o MST. Ou seja, a relação estabelecida entre o sem-terra e o Movimento é dialógica. A apropriação da proposta de reforma agrária do Movimento e sua atualização se deram a partir da superação de inúmeros problemas enfrentados pelo grupo, tais como fome, falta de água potável, doenças, problemas sanitários no acampamento, confronto com a policia e fazendeiros. Em síntese, a história da formação do grupo de sem-terra e sua mobilização pela conquista de terra para todas as 1500 famílias permeia a própria história do estabelecimento do MST e seu ideário, sendo o Assentamento Integração Gaúcha a continuidade desse processo dialético de construção histórica do Movimento.


4 ASSENTAMENTO INTEGRAÇAO GAÚCHA E A EDUCAÇÃO LIBERTADORA COMO MEDIADORA DA REALIDADE

A história do Assentamento Integração Gaúcha começou antes do estabelecimento da área na cidade de Eldorado do Sul. As várias ocupações, as caminhadas, as reuniões com representantes do Governo Federal e Estadual e a convivência cotidiana no acampamento são parte da história das famílias assentadas. O período no qual estiveram acampadas foi responsável pela alteração qualitativa de parte de sua cultura e ideologia, ou seja, o "acampamento" é um espaço onde as pessoas são impelidas pela realidade a estabelecer relações solidárias e coletivas entre si para transpor os limites adjacentes a organizações sociais com esse caráter, tais como a organização de grupos responsáveis pela alimentação das famílias acampadas, a saúde e a segurança. Além disso, nas assembléias a democracia direta possibilita a ampla participação de todos os integrantes na coordenação política do acampamento. A tensão permanente, a incerteza do futuro e a auto-organização dos acampados, a partir da Fazenda Bacaraí, delinearam o "espírito criativo" tão caro aos sem-terra para suplantar as adversidades do cotidiano do Movimento.
No dia 06 de Dezembro de 1991 o grupo chegou à área que lhe fora destinada no município de Eldorado do Sul. A bagagem histórica e disposição criativa para transformar a realidade, citadas anteriormente, foram de grande valia para as famílias organizarem o Assentamento Integração Gaúcha. O conflito e os limites sociais, no entanto, continuaram. A propriedade pertencia originalmente ao Instituto Riograndense do Arroz (IRGA), que havia arrendado a um fazendeiro da região. O grupo chegou, portanto, à área sem documentação de posse da terra. Os assentados permaneceram um ano sem poder plantar, não recebendo nenhum auxílio alimentar do Estado, vivendo com pequenas doações e uma horta. Essa situação gerou naturalmente um clima de insatisfação dos assentados com o Governo que não havia cumprido o acordo, ou seja, os sem-terra não possuíam a posse definitiva da terra, não podendo, portanto, utilizá-la. Além disso, a área estava arrendada a um fazendeiro, que por sua vez, fazia pressão sobre o Estado para que os assentados não obtivessem o título definitivo da terra.
A partir desse contexto os sem-terra, após analisarem a questão, optaram por mobilizar todos os assentados para pressionar o Governo a encaminhar a situação legal da propriedade.

Não tendo outra alternativa, cansados de esperar uma resolução do problema pelo estado, organizaram uma ação onde trancaram todas as entradas do assentamento, recolheram todas as máquinas da fazenda e todo o gado de corte existente. Imediatamente a polícia de choque chegou com mais de 200 policiais.

Com o conflito iminente em que possivelmente seriam danificados os patrimônios do arrendatário e os sem-terra teriam sua integridade física atingida, sobretudo porque receberam a solidariedade de 150 sem-terra da região que se incorporaram ao protesto consolidando a disposição do grupo de radicalizar a ação, o Estado retomou as negociações, a partir das quais a Secretaria da Agricultura forneceu um documento concedendo o uso da área. O arrendatário deixou então a fazenda.
Entretanto, a partir da autorização para o plantio, os sem-terra do Assentamento Integração Gaúcha se depararam com um novo problema: as características geográficas e geológicas da área. O solo está classificado como planossolo eutrófico, ou seja, solos de aluvião, com afloramentos arenosos, sendo próprios para a produção de arroz irrigado uma vez que as várzeas são predominantes. "O lençol freático é alto, tendo um baixo consumo de água. Os solos são mal drenados, de baixa drenagem de percolação. A vegetação é arbustiva, predominando a espécie marica".
Assim sendo, a área não possibilita o trabalho com as culturas agrícolas às quais os assentados estavam habituados. Os assentados tiveram, portanto, que se adaptar à realidade física do território, dominando outras culturas agrícolas como o arroz, e novas relações de produção para viabilizar economicamente o Assentamento.
Outra questão conflituosa na organização do Assentamento Integração Gaúcha foi o apego do sem-terra à cultura do trabalho individual, típica da agricultura familiar em que o agricultor e a agricultora dominam todo o processo de produção e a divisão social do trabalho é mínima e obedece ao sexo, ou seja, algumas atividades são desempenhadas apenas por mulheres, como o plantio da horta para a casa, outras são estritamente realizadas pelos homens, geralmente aquelas que requerem mais força física. No estabelecimento do Assentamento, esse componente residual na cultura do grupo foi um dos mediadores da síntese produtiva em que vários elementos, como a cultura residual, a inexperiência no trabalho com o arroz, a dificuldade de adaptação técnica à área colaboraram para o estabelecimento da atual organização produtiva do Assentamento. Ou seja, devido às características do solo, a viabilização econômica do Assentamento dependia do nível de divisão social do trabalho empregado, pois a organização da produção familiar tradicional em que de forma individual cada agricultor produz, não cabia como paradigma para o Assentamento Integração Gaúcha, uma vez que esse modelo rebaixaria o nível de vida dessas famílias.
A organização do trabalho foi e continua sendo uma problemática à parte. Está articulada com a questão cultural exposta anteriormente, mas também há outros fatores que contribuem para a delimitação da organização produtiva. Esse problema basicamente tem duas pontas, uma, o processo produtivo, a outra, a expectativa de geração de renda das famílias. O descompasso entre o "trabalho empregado" e o retorno financeiro determina a formatação do trabalho no Assentamento Integração Gaúcha, ou seja, a questão é econômica. Esse conflito é incrementado pela característica do solo que não oportuniza a produção agrícola variada e pela conjuntura desfavorável da economia que beneficia as grandes empresas rurais. Tal realidade acarreta ausência de um aporte de capital significativo capaz de viabilizar a elevação da qualidade de vida dos assentados e a dificuldade de comercialização, pois o mercado consumidor limita a produção.
As questões expostas contribuíram efetivamente para a organização do Assentamento Integração Gaúcha, e por conseguinte do MST, em que a partir do diálogo dialético entre assentamento e MST o arcabouço teórico do Movimento teve atualização. A seguir analisaremos como historicamente o Assentamento Integração Gaúcha relacionou-se com o corolário do MST.
O Assentamento Integração Gaúcha constituiu-se a partir de vários pontos de tensão, citados anteriormente. As respostas encontradas pelos assentados para suplantá-los coincidiram com a atualização do arcabouço do MST. Nessa parte do trabalho analisaremos esse processo histórico.
Para ocuparem a Fazenda Bacaraí em 1989, os sem-terra realizaram um período de preparação no ano anterior. Através do diálogo com agentes de pastoral vinculados à Teologia da Libertação e com representantes do MST optaram por organizar-se para conquistar a terra. O contato inicial com o Movimento ocorreu em meio ao contexto histórico de ascenso dos movimentos sociais, sobretudo do próprio MST, no final da década de 1980. Portanto, as famílias hoje pertencentes ao Assentamento Integração Gaúcha participaram do processo de consolidação do MST em que, nesse período (1988,1989), a proliferação de assentamentos colocou a questão da produção como estratégica para a organização do MST.
A partir da alteração da conjuntura política brasileira em 1990, com o Governo de Fernando Collor de Mello que iniciou o processo de introdução do neoliberalismo na economia nacional, o MST enfrentou dificuldades para continuar com o processo de organização do Movimento e de aquisição de novos assentamentos. A estratégia do Governo era neutralizar o Movimento através do isolamento político e da repressão policial, ou seja, "criminalizar a reforma agrária".
Na análise do estabelecimento histórico do Assentamento Integração Gaúcha percebemos que a experiência adquirida no período de acampamento foi muito dramática para as famílias assentadas. O período de acampamento corresponde aos anos de 1989, 1990 e 1991, sendo que os dois últimos foram os mais expressivos da política de Fernando Collor de Mello na lida com o conflito no campo. Assim, os assentados enfrentaram uma conjuntura desfavorável durante praticamente todo o percurso histórico do acampamento. Os sem-terra empregaram como alternativa para supera-lá marchas, ocupações e mobilizações com outros segmentos sociais com a intenção de protestar contra a política econômica e social do Executivo Federal. Ou seja, o Governo Federal havia restringido as negociações sobre os novos assentamentos, o que para os acampados refletia como uma situação de insegurança quanto ao futuro, aumentando a discussão do coletivo sobre a estratégia de organização a ser adotada. Nesse sentido, a tensão gerada pela demora em encaminhar novos assentamentos tensionou a luta no campo, tanto que no Estado do Rio Grande do Sul, o Governador Alceu Collares, no ano de 1991, disponibilizou terras do Estado para a reforma agrária a fim de refrear as mobilizações dos sem-terra que ocorriam. As famílias do Assentamento Integração Gaúcha fizeram parte deste contexto.
A organicidade do acampamento foi incrementada a partir da necessidade dos sem-terra de responder à realidade. A identificação com o MST por parte das famílias consolidou-se em meio àquela ordem social em que só podiam contar com a sua auto-organização, ou seja, a "construção" do MST. Essa relação de pertencimento ao MST, criada nos tempos de acampamento, está presente no Assentamento Integração Gaúcha. Vejamos o que diz Marinês:

Quero que o meu filho tenha estudo, mas que ele continue sendo agricultor, trabalhador e que continue fazendo parte do movimento sem terra. Eu não espero que o meu filho vá trabalhar, fazer faculdade e depois fique lá na cidade. Nós precisamos de pessoas com estudo, formado, para trabalhar na agricultura também. Como tudo está avançando, nossos filhos também tem que ter uma especialização.

A assentada expressa o desejo de que o filho dê continuidade à luta do MST, que faça parte do Movimento. Essa manifestação não é isolada, constatamos que grande parte dos integrantes do Assentamento Integração Gaúcha se identifica ainda com o Movimento e que a presença das lembranças do acampamento são, em parte, responsáveis pela identificação do sem-terra com o MST. Por outro lado, a organização do MST é o meio dos assentados buscarem soluções para seus problemas, como no caso da posse da área que ainda é provisória. Os assentados continuaram mobilizados para conseguir do Estado a posse definitiva.
As dificuldades de adaptação às características do solo, mencionada anteriormente, limitavam a geração de renda das famílias assentadas.
Nos primeiros anos de assentamento, os sem-terra cultivaram milho e feijão de forma extensiva uma vez que são culturas tradicionais dos pequenos agricultores, entretanto, devido à umidade da área as colheitas foram frustradas. Esse conflito na adequação dos assentados à nova realidade determinou uma fragmentação produtiva que analisaremos mais adiante.
A superação da problemática da geografia do terreno ocorreu com a alteração organizativa da produção no Assentamento Integração Gaúcha. A lavoura extensiva de milho e feijão foram descartadas e em seu lugar passou a ser cultivado o arroz. Entretanto, o arroz devido às oscilações do mercado, principalmente do valor dos insumos para o plantio que inviabilizava a comercialização também teve as expectativas frustradas de acordo com o relato do assentado José Mariano Matias: "(...) em 1998 fizemos uma boa safra de arroz que dobrou mais de 40 mil reais da lavoura. Em 1999 inverteu, deu prejuízo".
Assim sendo, o grupo criou outros caminhos para estabelecer a manutenção econômica das famílias. O assentamento mudou a linha de produção, deixou de investir no plantio do arroz como principal fonte de renda, para desenvolver a horta ecológica, investiu na produção de ovos sem insumos químicos possibilitando a agregação de valores ao produto. O leite é outra atividade relevante no Assentamento na atualidade e o arroz cultivado passou a ser o pré- geminado.
Nessa mudança histórica é relevante destacar dois fatores: o pioneirismo do Assentamento Integração Gaúcha no desenvolvimento da produção ecológica no MST, servindo inclusive como referência para outros assentamentos e possibilitando acúmulo teórico sobre o tema, que foi fundamental para o Movimento formatar a proposta de produção ecológica e a criatividade dos assentados em intervir no processo histórico sem dogmatismo, ou seja, não estavam presos a conceitos fechados e pré-estabelecidos, podendo, portanto, alterar suas práxis organizativa.
Outra mudança significativa ocorrida no Assentamento Integração Gaúcha simultânea com a dinâmica de construção teórica do MST foi a constituição da matriz produtiva do Assentamento, à qual me referirei mais adiante.
A cultura do trabalho individualizado presente na mentalidade dos assentados foi um dos elementos que tensionaram a organização da produção no Assentamento. Por outro lado, para a efetivação do Assentamento o Estado exigiu da parte dos sem-terra a organização de uma cooperativa de produção que englobasse todas as famílias. O trabalho coletivo, essencial nas atividades das cooperativas, encontrou, portanto, dificuldades de implementação no Assentamento por dois motivos: a dificuldade de adaptação à região e a baixa rentabilidade das culturas desenvolvidas nos primeiros anos do assentamento, ou seja, o fator sócio-cultural e o econômico.
A partir da cooperação agrícola, os assentados estabeleceram uma organização produtiva identificada com a realidade do Assentamento Integração Gaúcha. Na atualidade, existem no Assentamento uma cooperativa de produção agropecuária, associações, grupos coletivos e trabalhadores individuais. Esse arranjo da produção facilita a geração de renda. Os assentados, ao desenvolver atividades conjuntas com outros sem-terra conseguem melhores preços na compra de insumos e na comercialização da produção ficam menos "vulneráveis ao mercado", como no caso da Cooperativa de Produção Agropecuária LTDA (COPAEL) que distribui sua produção da horta ecológica diretamente ao consumidor em Porto Alegre, em feiras especializadas em alimentos ecológicos, conseguindo um valor pela mercadoria superior do que se fosse vendida de forma individualizada pelo agricultor ao atravessador.
Essa questão do mercado está demarcada pela conjuntura econômica. As políticas públicas do Governo Fernando Henrique Cardoso para a agricultura tiveram o objetivo de "modernizá-la", ou seja, facilitar as condições da reprodução do capital agroindustrial, sobretudo internacional, estimando reduzir a população rural do índice de 20% para 04%. Nesse contexto, a agricultura familiar e os assentamentos do MST estão na contramão do projeto governamental que vem sendo aplicado nos últimos anos. Para superar isso, o Assentamento Integração Gaúcha está participando da Economia Sócio-Solidária, desenvolvendo e diversificando a produção agroecológica .
Todas as iniciativas expostas contribuem para a atualização do arcabouço teórico do MST, os conflitos gerados pela problemática da posse indefinida da área e da história do acampamento colaboram para a organicidade do assentamento e da manutenção do sentido de pertença ao MST. Ao mesmo tempo, as características do solo e a conjuntura econômica e política desfavorável à pequena agricultura estimulam a produção agroecológica, ao mesmo tempo em que a cooperação agrícola é uma criação dialética em que dificuldades de adaptação cultural e econômica à nova região determinaram a elaboração de um novo paradigma produtivo. Esses processos incidiram na atualização do ideário por ser parte desse contexto, sendo criatura e criador.
A seguir analisaremos como ocorreu esse diálogo entre assentamento e MST a partir da questão da educação a fim de que consigamos visualizar a organização produtiva e formação humana e política no assentamento, e, também, as referências centrais para podermos constatar se houve criação ou reprodução.


5 A EDUCAÇÃO NO ASSENTAMENTO INTEGRAÇÃO GAÚCHA

A educação tem duas dimensões: uma pertencente à escola regular, responsável pelo conhecimento sistematizado, a outra, pelo processo de aprendizado e produção de saberes mais amplos, fora da escola e enraizado no cotidiano social. Essas duas estão presentes no Assentamento Integração Gaúcha, e são de valia para o estabelecimento do grupo de sem-terra no que tange à organização da produção, do trabalho e do relacionamento com o arcabouço teórico do MST.
Alguns meses após a chegada à área, em fevereiro de 1992, os assentados iniciaram a discussão com a Prefeitura do município para construir uma escola dentro do Integração Gaúcha. Como não houve acordo, pois a prefeitura não tinha interesse em construir a escola, "as aulas começaram em março de 1992 com um educador do assentamento, o qual tinha se formado no magistério na Fundação de Desenvolvimento, Educação Pesquisa (FUNDEP) na cidade de Braga, no Rio Grande do Sul" .
Em 1993 não houve alteração no funcionamento das aulas, que continuaram sendo ministradas em condições precárias, ou seja, sob a sombra de árvores. A partir de junho do mesmo ano, até o final de 1994, outra educadora lecionou nas mesmas condições, sem receber salário e com infra-estrutura inadequada ao funcionamento de uma escola.
No final do ano, 1994, a Secretaria Municipal de Educação de Eldorado do Sul não quis validar o ano letivo, ou seja, não reconhecia as aulas realizadas pelos educadores do Movimento, sobretudo, nas condições em que foram ministradas . As famílias se mobilizaram e após uma prova aplicada pela Secretaria Municipal de Educação para verificar o aprendizado dos alunos, em que todos educandos do assentamento foram aprovados, o ano letivo foi reconhecido.
Em 1995 os alunos foram transferidos para outra escola na cidade. A administração municipal argumentou que não poderia construir um prédio dentro do Assentamento por esse não estar legalizado.
Dessa forma, houve um retrocesso na constituição do acesso das crianças assentadas à educação, pois a dificuldade de adaptação ao meio urbano e o transtorno de caminhar 4km diariamente para ir à escola aumentaram sensivelmente a evasão escolar.
Mas, os sem-terra voltaram a articular-se para negociar com a Prefeitura a instalação da escola dentro do Integração Gaúcha. Assim sendo, em março de 1996 a Prefeitura aceitou reabrir a escola. Porém, surgiu um novo problema:

(...) as professoras que vinham de fora daquela realidade não se adaptavam. Foi o que marcou os educandos, foram trocadas três professoras. Vinha uma, não dava certo, a Secretaria mandava outra, também não dava. Então a última é que ficou mais tempo, cinco meses.

Apesar de ter havido uma melhoria na infra-estrutura da escola, na qual as aulas passaram a acontecer no Galpão da Comunidade e não mais no mato, o processo educativo continuava conflituoso, ou seja, não havia identificação dos educadores indicados pela rede de ensino municipal para lecionar no Assentamento Integração Gaúcha com a especificidade cultural dos assentados e desses com a metodologia empregada pelas professoras.
A contradição, presente nesse contexto histórico, é a de que as famílias se mobilizaram para conquistar uma escola acessível aos seus filhos, entretanto, a viabilização da escola por parte da Prefeitura, não garantia a identificação dos sem-terra com essa escola. A escola não estava integrada à dinâmica social do cotidiano dos assentados. A superação de limites econômicos e de costumes estava sendo enfrentada a partir da autonomia organizativo-teórica. Ou seja, a educação regular, sintetizada na escola, não estava em consonância com a práxis educativa dos assentados que instrumentalizava metodologicamente a intervenção social e o diálogo dos sem-terra com o ideário do Movimento.
Para superar essa contradição as famílias indicaram uma educadora que também era assentada para substituir a professora, ao mesmo tempo em que os pais se apropriaram da escola discutindo objetivos pedagógicos, metodologia, infra-estrutura.

Temos uma equipe de apoio pedagógico que acompanha, que são os pais. Não tenho filho na escola, mas também faço parte desta equipe, que ajuda a pensar o que é melhor para os nossos filhos, porque a gente vê o desespero das mães que tem filho que estudou aqui e já não tem mais escola aqui para eles. Então, tem que ir para a cidade. Então, é um desespero a preocupação porque rola muita a história de droga na escola. Então, a gente procura trabalhar a nossa realidade e preparar, mostrar que aí fora a coisa não é fácil.


A partir dessa sintonia entre educação regular e a "educação popular" desenvolvida pelos assentados, a escola passou a cumprir um papel a mais no devir histórico do Assentamento Integração Gaúcha: a formação humana balizada pelo paradigma da auto-organização. O educando deve ter acesso a um ensino que lhe proporcione o desenvolvimento de novos valores através da reflexão e execução de tarefas concretas. Na Escola Almirante Tamandaré, como se denomina a escola do assentamento, e que possui 48 alunos, distribuídos da pré-escola até a 5º série do ensino fundamental, há três grupos de trabalho formados pelos educandos que são responsáveis pelo

(...) embelezamento, cuidar do bem estar da sala de aula, organizar e recolher materiais no final da aula; pela alimentação, ajudar a servir a merenda, propor cardápio para o coletivo das mães, que fazem a merenda escolar, ajudar no controle da merenda; pela biblioteca, organizar livros por séries, distribuir livros, organizar jogos didáticos, cuidar da limpeza da biblioteca

Os grupos têm a função de estudo em sala de aula, tendo cada grupo um coordenador eleito, o qual integra a coordenação geral da escola. O comprometimento dos educandos com a direção e organização da escola, de acordo com as entrevistas, tem o objetivo de estimular a autonomia, fomentando a capacidade de intervenção social do educando, ou seja, formação de um militante do projeto no Movimento.
O sentido de militante imputado pelos assentados é a continuidade da luta pela reforma agrária em que a ocupação e estabelecimento de assentamentos viáveis economicamente são a única opção dos sem-terra para permanecerem no campo, além de ser uma experiência histórica essencial para a formação humana do individuo.

Quero que o meu filho tenha estudo, mas que ele continue sendo agricultor, trabalhador e que continue fazendo parte do movimento sem terra. Eu não espero que o meu filho vá trabalhar, fazer faculdade e depois fique lá na cidade. Nós precisamos de pessoas com estudo, formado, para trabalhar na agricultura também. Como tudo está avançando, nossos filhos também tem que ter uma especialização. Se ele tiver que acampar, eu faço gosto que o meu filho cresça e vá viver, um , dois, três anos debaixo da lona porque esta é a melhor escola.

No processo de constituição das condições para potencializar a manutenção social do Assentamento Integração Gaúcha os sem-terra valeram-se da práxis educativa, ou seja, a partir da reflexão acerca da problematização da realidade geraram novos saberes, tais como o desenvolvimento de linhas de produção agroecológicas e de cooperação agrícola.
Essa relação está presente desde as primeiras discussões acerca de como aplicar o trabalho no assentamento. O Laboratório Organizacional realizado no período de 22 de setembro de 1993 a 11 de novembro do mesmo ano instrumentalizou os assentados a se debruçarem sobre os limites postos pela realidade sócio-histórica, determinantes, como analisado no item anterior, do a atual arranjo do trabalho existente no assentamento. Esse ensaio prático não foi suficiente para garantir a permanência de todo o grupo na cooperativa, não se constituiu mais forte que as contradições econômicas e culturais, mas explicita a lógica metodológica dos assentados de ancorar-se sobre a realidade para traçar a estratégia a ser implementada, mesmo que em muitos casos não tenham êxito.
A produção de novos valores é imprescindível ao desenrolar da práxis educativa do Assentamento Integração Gaúcha, os assentados ao alterarem o paradigma produtivo, em que a cooperação agrícola e a agroecologia são os expoentes, revisaram o exercício da cultura do trabalho individual e os vícios residuais da Revolução Verde, tais como a utilização de insumos químicos e da indústria de máquinas. Ou seja, há uma reformulação cultural em dois níveis, o cotidiano do assentado e a atualização do ideário. O primeiro refere-se às mudanças ligadas à esfera do indivíduo, tais como a mudança no hábito alimentar da família a partir da opção pela agroecologia e a adaptação à divisão social do trabalho na medida em que o processo de elaboração da cooperação agrícola avançou; o segundo está ligado às alterações do ideário do MST que se efetivam a partir do diálogo do Movimento com as contradições presentes no Assentamento.
Tecer generalizações é sempre um risco teórico. É como caminhar sobre uma linha tênue e sinuosa, onde qualquer desvio do percurso leva-nos a conclusões que de nada valem, que não representam uma síntese científica, mas elucubrações subjetivas que não correspondem à objetividade. Entretanto, quando os passos são orientados pelo rigor metodológico, generalizar torna-se salutar na análise das partes de qualquer fenômeno social para caracterizarmos o movimento e tendências da história, ou seja, do contexto em que está inserido o objeto de pesquisa.
Nessa perspectiva o Assentamento Integração Gaúcha contribuiu para delimitarmos aspectos gerais, mas fundamentais, do consubstanciamento teórico do MST. A práxis educativa presente no assentamento analisado oportuniza o contato dialético entre realidade/prática com a teoria/reflexão. Entendo que essa metodologia não está restrita somente ao Assentamento, faz parte do arcabouço teórico do MST sendo um fenômeno presente em todos os assentamentos, mas variando conforme as características de cada grupo. No caso do Integração Gaúcha essa prática foi de grande valia para os assentados se adaptarem à nova realidade, rompendo as contradições culturais e econômicas discutidas anteriormente.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


De forma corriqueira a religiosidade é apartada do concreto. Todo assunto, tema ou fato analisado à luz da racionalidade é desconsidera elementos da religiosidade popular. Em sala da aula, conflito entre alunos, em geral, é decorrência da ausência de domínio de classe do professor, de características psíquicas do aluno ou um caso de rebeldia juvenil comum, sem maiores implicações ao processo constitutivo do caráter desse individuo.
O presente trabalho aponta na direção inversa a essa lógica. A religiosidade faz parte da cultura a qual os indivíduos se identificam, dessa forma, suas ações, reflexões, valores, moral, ética e expectativa de futuro são "repletas" de religiosidade.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), inscrito na cultua popular marcada pela religiosidade cristã, organizou-se a partir da mediação de agentes de pastoral da Igreja Católica, que a partir do estudo bíblico, seus integrantes refletiram sobre a alternativa de lutarem por terra no Estado do Rio Grande do Sul, recusando o projeto do governo federal de transferirem-se para a região Amazônica.
Cabe a interrogação: Por que os sem terra utilizaram o elemento religioso para organizarem-se? Por que não se valeram da etinicidade ou da simples e racional análise do problema da terra no Brasil, a qual concluiria que a única forma de trabalhadores terem acesso a terra é por meio da ocupação? No entanto, o elo aglutinador dos sem terra e de expansão de sua luta por terra foi uma reflexão religiosa.
A crença religiosa faz parte da cultura dos sem terra. Os valores e a visão de mundo representativa dos sem terra tem um profundo diálogo com a cultura religiosa cristã, em especial a Teologia da Libertação. Mais que fator de motivação da organização, a Teologia da Libertação influenciou o ideário do Movimento. Elementos como autonomia, participação e luta por direitos faz parte o espectro teológico do cristianismo popular, ou seja, das práticas identificadas com a Teologia da Libertação ou com o Ensino Social da Igreja.
A Educação Popular serviu como metodologia de interpretação do mundo. Os sem terra se partiram da cultura religiosa para chegarem a construção do Movimento, utilizando nesse caminho a Educação Popular como um meio. Essa prática educativa reconhecidamente está centrada na relação dialógica entre educador e educando e a valorização da cultura e realidade social no processo educativo.
O Assentamento Integração Gaúcha constituiu-se de elementos da cultura religiosa e da Educação Popular. A visão de mundo socialmente mais justo, onde todos tenham acesso a terra para trabalharem com dignidade e a capacidade de organização e reflexão interna é uma das heranças da religiosidade e do método da Educação Popular.
Analisar o MST sem levar em conta a carga de valores inspirados na cultura religiosa é desconsiderar a essência do Movimento. Sendo assim, o presente trabalho trouxe à discussão elementos da Teologia da Libertação que influenciaram em certa medida o Movimento, o qual não pode ser analisado apenas sobre o aspecto da luta pela terra. Mas também dos projetos de mundo que fazem parte do seu ideário, sendo a visão de sociedade cristã um paradigma para o horizonte do MST.


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Autor: Clarice Fatima Dal Médico


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