A intervenção social da Pastoral Operária e a construção da Economia Popular Solidária



A intervenção social da Pastoral Operária e a construção da Economia Popular Solidária

Clarice Fátima Dal Médico

Em pleno processo de desenvolvimento da primeira fase da Revolução Industrial (1760 a 1850), o elevado índice de desemprego, o crescente êxodo rural, a proliferação de péssimas condições de vida nas cidades e as degradantes condições de trabalho nas indústrias, serviu de contexto para o surgimento de uma nova idéia de organização do trabalho. Na Inglaterra e na França multiplicaram-se sociedades de ajuda mútua, constituída por trabalhadores e trabalhadoras para resistirem às desigualdades sociais em decorrência da modernização produtiva.
Embasados nesse espírito, em 21 de dezembro de 1844, no bairro de Rochdale, na cidade de Manchester, Inglaterra, foi fundada, por 27 tecelões e uma tecelã, a primeira cooperativa de consumo da história, denominada de "Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale". Constituída com a doação mensal de uma libra de cada participante durante um ano, tinha o claro objetivo de ser uma alternativa econômica para enfrentarem o sistema capitalista de então.
Mesmo não sendo levada a sério pelos capitalistas que a ridicularizavam, dez anos após sua fundação, a "Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale" já contava com 1400 cooperativados, provando que a economia dos pobres, longe de ser uma utopia, é um real caminho aos segmentos sociais explorados pela economia do grande capital.
Na atualidade, a modernização tecnológica tem possibilitado a reestruturação produtiva da sociedade. O trabalhador e a trabalhadora é vitimado. A elevação do desemprego, a concentração de riquezas a níveis jamais vistos na história da humanidade e a precarização do trabalho contribuem para o aprofundamento das injustiças sociais.
A Economia Popular Solidária (EPS) cumpre o relevante papel de ser uma alternativa socioeconômica ao capitalismo. Desafiadora e solidária como a experiência pioneira de Manchester, a EPS é o caminho pelo qual trabalhadores e trabalhadoras se valem para construir uma nova sociedade, na qual o lucro não esteja acima da dignidade humana.
Nos últimos anos, multiplicaram-se grupos de EPS pelo Brasil todo. O elemento aglutinador desses é a defesa da vida, o exercício de relações sociais cooperativas e solidárias e o estabelecimento de uma rede econômica orientada pela ajuda mútua.
É mais que uma experiência histórica. Milhares de pessoas espalhados por todo o território brasileiro, colocados à margem da sociedade brasileira pela modernização e exploração capitalista, vivem de forma digna com a renda gerada em grupos de EPS. A EPS faz parte de um projeto de desenvolvimento econômico e social, o qual submete o capital à manutenção das necessidades do cidadão. Dito de outra forma: a paz social e o fim da violência urbana passam pela priorização da dignidade humana em detrimento dos interesses dos grandes capitalistas.
Existe algo de novo no cenário nacional. Muito tem se comentado. A Economia Popular Solidária é uma experiência social de organização do trabalho alternativa a lógica capitalista e uma opção real a superação do desemprego.
O propósito do presente trabalho é apresentar a experiência da Pastoral Operária do Rio Grande do Sul com a Economia Popular Solidária. A ação sócio-transformadora da pastoral perpassada pela mística do evangelho libertador promove grupos de EPS por acreditar no protagonismo social dos grupos de geração de renda, os quais são laboratórios efetivos do resgate da cidadania dos desempregados e excluídos do sistema econômico que aí está.
A Pastoral Operária do Estado do Rio Grande do Sul tem realizado, no decorrer da última década, a gestação e acompanhamento de diversos empreendimentos solidários.
O acompanhamento é sistemático. As lideranças visitam os grupos, para junto aos seus integrantes refletirem acerca das dificuldades e estratégias de trabalho. Os grupos de produção e comercialização demandam um maior acompanhamento. Por outro lado, alguns grupos têm como participantes lideranças da PO, as quais contribuem de forma efetiva para o processo de organização do grupo.
Destaco que a nossa função junto aos empreendimentos solidários é de acompanhá-los, rejeitamos a idéia de monitoramento, somos parte do processo, não queremos estabelecer uma relação de subordinação, na qual o agente de pastoral, externo ao grupo, dita as normas, regras e caminhos a serem seguidos.
A articulação é parte essencial na constituição dos grupos, que enfrentam o mercado capitalista e a cultura do individualismo. Para efetivá-la é vital a parceria entre os próprios grupos, os quais devem ser companheiros e não concorrentes, para que haja algo diferente e inovador, não basta ser um grupo de produção alternativa, tem que estar aberto a um novo paradigma de relacionamento social.
Sendo assim, incentivamos os grupos a participarem dos movimentos sociais, em especial, o movimento de trabalhadores desempregados e dos Fóruns da Economia Popular Solidária. De outra parte, são oferecidas oficinas de formação humana: relacionamento inter-pessoal, análise de conjuntura, gênero, consumo solidário, ecologia e proteção ao meio ambiente.
A Pastoral Operária, através de suas diversas instâncias, incentiva a participação dos grupos nos fóruns locais, regionais, estaduais e nacionais de EPS, a fim de pressionar os governos para tornarem a EPS uma política pública. Compreendemos que a organização de grupos alternativos deve se tornar uma política pública de responsabilidade do Estado, sendo indispensável a ação dos grupos nessa perspectiva.
No decorrer dos últimos anos, alguns grupos conquistaram a consolidação econômica e política, não necessitando mais de um acompanhamento sistemático, tornaram-se protagonistas. Em muitos casos, algumas lideranças passaram a integrar a PO.
As feiras de EPS dão visibilidade aos resultados socioeconômicos obtidos pelos empreendimentos solidários, oportunizam a comercialização, a troca de experiências e fortalece a intervenção dos integrantes dos grupos na perspectiva da construção de políticas públicas que viabilize a expansão da EPS.
Em torno de 30% das pessoas que integram os grupos de geração de renda têm como única fonte de renda o trabalho solidário. Dessa forma, a EPS não é uma experiência assistencialista, longe disso, promove a cidadania e o protagonismo social. Esses grupos são instrumentos de identidade social e desenvolvem a auto-estima dos participantes. Conforme Dona Lúcia, integrante de um grupo de artesanato, no município de Pelotas, "o grupo faz eu me sentir gente novamente, sei que tenho pessoas aqui que gostam de mim, assim como sou" (sic). A experiência de organização social responde as demandas econômicas, mas também culturais e sociais da população envolvida.
As mulheres são as mais beneficiadas pelos projetos alternativos. A reflexão sobre relações de gênero estimula o diálogo familiar e a independência da mulher. Tivemos casos de mulheres vítimas de violência que a partir da participação no grupo alternativo conseguiram enfrentar o problema, saindo da situação de submissão ao homem.
O cotidiano do grupo proporciona um novo olhar sobre a vida. A formação acessada proporciona conhecimentos que libertam a mulher da opressão do machismo e conscientizam-na de que é portadora de direitos sociais, políticos e econômicos. As mulheres que participam dos grupos alternativos também acessam conhecimentos da área de saúde, justiça e direitos humanos.
Muitas pessoas só têm espaço de formação nos grupos. Através das oficinas de formação, os participantes do empreendimento solidário interagem sobre a realidade brasileira e a construção de uma sociedade sem a concentração e injustiças do sistema capitalista de produção e comercialização.
Nos últimos anos estamos acentuando a reflexão da necessidade de consumirmos produtos da EPS, combatendo o consumismo típico do mercado capitalista. As lideranças que não necessariamente trabalham num grupo são incentivadas a usarem esses produtos, as lideranças têm como principio divulgar em seus espaços de trabalho e estudo a idéia da EPS.
Diante do desemprego estrutural, da política econômica concentradora de riqueza e do empobrecimento da população, as dificuldades que enfrentamos são inúmeras. Os valores constitutivos da sociedade capitalista "permeiam" os grupos e as pessoas envolvidas em grupos alternativos, ou seja, não há projeto social alternativo imune aos vícios da lógica neoliberal. Mas existem mecanismos de defesa: a formação e a reflexão permanente. A ambição pode vir à tona a todo a qualquer momento, como, por exemplo, na concorrência entre os próprios grupos nas férias ou até mesmo no dia-a-dia. Para superar isso, a única ferramenta disponível é o estudo e o exercício da critica permanente. Infelizmente, alguns grupos são superados pela falta de análise, se desestruturam por não terem conseguido superarem as dificuldades de relacionamento e econômicas.
Algumas entidades parceiras na promoção da EPS compreendem os grupos com fim em si mesmo, ou seja, preocupam-se apenas com a qualidade e a quantidade de produtos produzidos pelo grupo, deixam de lado a reflexão referente ao novo modelo de sociedade. O grupo não é uma ilha, não basta estabelecer relações internas de solidariedade, o grupo tem que interagir com a sociedade externa. Essa relação articulada com outros grupos é o caminho da transformação social, pois estruturas políticas são questionadas, culturas são alteradas e uma alternativa de organização social é construída de fato.
A EPS, muitas vezes, aparece como a única saída à problemática do desemprego. Mas a EPS isoladamente não é a solução dos problemas existentes no Mundo do Trabalho, atualmente. No entanto, faz parte, com certeza, do conjunto de caminhos que devem ser trilhados para conquistarmos um mundo melhor, juntamente com movimentos sociais, pastorais e sindicatos, na perspectiva da sociedade baseada na fraternidade, cooperativismo, igualdade e liberdade.
A EPS ainda não é concebida como uma política pública, por isso as entidades apoiadoras e grupos pressionam o Estado a investir no setor. O Estado prioriza o modelo de desenvolvimento baseado na expansão do capital transnacional, submetendo a máquina pública às necessidades dos grandes complexos financeiros, agroindustriais e industriais. O desafio dos agentes ligados a EPS é torná-la uma política pública e fortalecê-la como uma estratégia de desenvolvimento a qual não é o capital o centro dos objetivos, mas o bem estar do ser humano.
Cada empreendimento de EPS trás consigo o germe da solidariedade, do respeito à diversidade, do agir sócio transformador e da inclusão de todos e todas num mundo melhor. Percebendo a EPS dessa forma, podemos afirmar que é sim a Economia dos Pobres, porque é a Economia do Povo de Deus!


Bibliografia
Relatórios anuais da Pastoral Operaria-RS

Autor: Clarice Fatima Dal Médico


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