A TRAJETÓRIA DA DESIGUALDADE SOCIAL E O TRABALHO INFORMAL NA RECICLAGEM
Sandra Lilian Silveira Grohe
RESUMO
Pensar sobre a origem das desigualdades sociais foi o caminho encontrado para entender o surgimento do trabalho informal na reciclagem. Para isso, primeiramente foi analisado o processo civilizatório e o surgimento das cidades com os diversos problemas de degradação social, agravados pela falta de planejamento. Paralelo ao crescimento desordenado das cidades surge o capitalismo e o poder do consumo, trazendo conseqüências irreversíveis para a sociedade. Uma dessas conseqüências, que nos acompanha diariamente, é a geração excessiva de resíduos. Muitas pessoas, frente à desigualdade social, sem nenhuma alternativa para sua sobrevivência, buscam no trabalho informal da reciclagem uma alternativa para seu sustento. Nesta teia de relações e conexões entre processo civilizatório, capitalismo, consumo, resíduos e trabalho informal que este trabalho se fundamenta.
Palavras-chave: Desigualdade social; Consumismo; Reciclagem.
1 INTRODUÇÃO
Frente ao que estamos vivendo em nossa relação com o planeta, naquilo que se produz como resultado de uma dita racionalidade em evidentes sinais de destruição foi o pensamento inicial para a construção deste trabalho. Como seres humanos "ditos" inteligentes vieram parar nesta situação de tanta desigualdade, pobreza, destruição e até mesmo autodestruição? Até que ponto somos verdadeiramente culpados pela situação atual? As soluções encontradas são as ideais para solucionar os problemas enfrentados em nossa sociedade?
Um breve levantamento para identificar a origem destes problemas foi realizado, mas não para apontar os culpados pela situação atual, e sim para um melhor entendimento do que está acontecendo ao nosso redor. Com a ajuda de alguns pensadores contemporâneos, como Boaventura de Souza Santos, Isabel Carvalho, Darcy Ribeiro, entre outros este trabalho foi embasado.
Voltamos aos primórdios de nossa primeira organização como sociedade na busca de identificar a origem dos problemas referentes as desigualdades sociais e o trabalho informal na reciclagem. As cidades surgiram como uma alternativa de organização social, onde tirava o homem selvagem da floresta e o transformava em um ser civilizado. Até então algo muito promissor se não fosse a falta de planejamento. As cidades "organizadas" deram origem às classes sociais, dividindo a sociedade entre ricos e pobres. O capitalismo surge como o advento de uma nova era, a era do lucro através da mão de obra barata e do consumismo. Este consumismo, juntamente com as novas tecnologias e a era dos descartáveis, trouxe um grande problema para o planeta Terra, o acúmulo descontrolado de resíduos. Com tanta pobreza e desigualdade social uma alternativa foi usar o descartado como forma de sobrevivência.
Tentar entender, refletir e analisar a trajetória de nossa civilização e seus problemas é fundamental para uma possível busca por soluções urgentes e mais concretas. Assim segue o trabalho, como já havia ressaltado antes, buscando o entendimento do momento atual referente as desigualdades sociais e o trabalho informal.
2 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO
Desde muito tempo a humanidade precisou dominar a natureza para sobreviver. Para entendermos um pouco a complexa situação atual do planeta Terra, principalmente a referente à produção de lixo e seus reflexos na sociedade se faz necessário retomarmos alguns acontecimentos importantes que ocorreram no decorrer do tempo e da história.
Há 10 mil anos atrás, com o desenvolvimento do pastoreio e da agricultura, os seres humanos substituíram o nomadismo pela sedentarização, dando origem aos primeiros centros urbanos. Conforme Ribeiro (1998, p. 93),
[...]com a descoberta de técnicas de irrigação e de adubagem do solo, a generalização do uso do arado e de veículos de roda, bem como de barcos a vela, diversos povos revolucionaram na sua capacidade de produção de alimentos, ocasionando o surgimento das primeiras cidades".
Com a Renascença, inaugurou-se a modernidade, caminhando opostamente ao selvagem, à ignorância e a natureza. Era preciso "domesticar" os seres humanos para não agirem como animais. Segundo Carvalho (2002, p.41) o processo civilizador deu-se com o advento das cidades.
A cidade, contraponto da natureza selvagem, então se apresentava como lócus [a palavra locus (plural loci) significa "lugar" em latim] da civilidade, o berço das boas maneiras, do gosto e da sofisticação. Sair da floresta e ir para a cidade era um ato civilizatório. As pessoas criadas na cidade eram consideradas mais educadas que aquelas que viviam nos campos. A natureza, tida então como o Outro da civilização, representava uma ameaça à ordem nascente.
O ser humano, saindo da natureza, poderia então denominar-se um ser civilizado e não mais fazendo parte dela como selvagem. Este ser civilizado passou a fazer parte de outro território, ficando "longe" da natureza. O ser humano para manter-se na cidade passou a deteriorar o meio ambiente retirando dele todos os recursos necessários para sua sobrevivência. A abundância de recursos naturais permitia a crença na infinidade dos mesmos. A concentração da população exigia a necessidade de consumo de alimentos, vestuários, remédios, etc.
Já no século XVIII, com a expansão da burguesia e do comércio de diversos produtos a exploração da força de trabalho foi fundamental para a expansão da produção industrial. Muitas pessoas saiam do campo em direção as cidades.
A intensa migração campo-cidade, impulsionada pela expropriação camponesa e pelos processos de acumulação primitiva, acelerava o desordenado crescimento das cidades industriais. O resultado era uma alta concentração populacional, constituída principalmente de trabalhadores pobres, expostos a um ambiente insalubre de trabalho e moradia. (CARVALHO, 2002, p. 44)
Sem nenhum planejamento as cidades passaram a ter um desordenado crescimento populacional. Enfrentaram diversos problemas de doenças e epidemias devido à falta de saneamento. A degradação passou a ser não só ambiental, mas também social. Estes e outros problemas nos acompanham até os dias atuais.
Desde o Fórum Social Mundial de 2001, vários grupos comprometidos e preocupados com os problemas enfrentados pelas cidades vêm construindo uma Carta Mundial pelo Direito à Cidade. Na introdução deste documento está escrito que:
As cidades estão distantes de oferecerem condições e oportunidades eqüitativas aos seus habitantes. A população urbana, em sua maioria, está privada ou limitada ? em virtude de suas características econômicas, sociais, culturais, étnicas, de gênero e idade ? de satisfazer suas necessidades básicas. Contribuem para isso as políticas públicas que, ao desconhecer os aportes dos processos de produção popular para a construção das cidades e da cidadania, violentam a vida urbana. Graves conseqüências resultam desse processo, como os despejos massivos, a segregação e a conseqüente deterioração da convivência social. Este contexto favorece o surgimento de lutas urbanas que, devido a seu significado social e político, ainda são fragmentadas e incapazes de produzir mudanças significativas no modelo de desenvolvimento vigente.
3 CAPITALISMO E O CONSUMO
O capitalismo que, desde os meados do século XIII, já estava presente entre a sociedade, se consolidou com Revolução Industrial. Segundo Kopelke (2006, p.22) com a inserção da máquina no processo de produção, houve uma aceleração da produção, redução dos custos e ampliação dos lucros da burguesia, fortalecendo muito o poder. Mas após a Segunda Guerra Mundial, o capitalismo ficou enfraquecido. A intervenção do Estado era bem-vinda, pois aos poucos amenizou os problemas causados pela guerra e auxiliou na reconstrução dos países europeus. Para formar e acumular riquezas, o Estado proporcionou o mínimo de assistência social para que as classes trabalhadoras voltassem a produzir e tivessem poder de compra dos produtos que eram produzidos, tirando o lucro para o sistema. Foi criada uma necessidade para que consumissem cada vez mais.
Desde então o eixo primordial do sistema capitalista para manter sua estabilidade foi e é a retenção da cultura consumista.
Sem consumismo, a base lógica da contínua acumulação capitalista se dissolve. É a capacidade de comercializar e apresentar como úteis e atraentes todas as idéias e os produtos materiais nos quais elas se fixam que o capitalismo global procura apropriar-se. (SKLAIR, 1995, p.99).
O consumismo passou a causar muitos prejuízos locais e conseqüentemente globais no planeta. Segundo SANTOS (1995, p.87) vivemos hoje o período do "capitalismo desorganizado". Este período caracteriza-se por vários fatores econômicos, políticos e sociais. Destaca-se o crescimento explosivo do mercado mundial, surgindo assim as empresas multinacionais, que regulam a economia nacional. Os países subdesenvolvidos atuam geralmente com financiamento dos governos locais. Além da dependência econômica, estes países passam a depender da tecnologia estrangeira e não possuem condições de concorrer com os preços das multinacionais, sempre inferiores aos produtos nacionais Para vencer a concorrência no comércio internacional, as empresas que produzem mercadorias para exportação precisam aperfeiçoar sempre mais o seu processo de produção com equipamentos de alta tecnologia. Dessa forma são produzidas sempre mercadorias novas e mais baratas, mas isso também provoca aumento do desemprego, pois utilizando novas tecnologias, as empresas podem produzir mais com menos trabalhadores.
Hoje, convive-se com uma atmosfera desregulada da vida social, econômica e política. Essa atmosfera converge com uma atmosfera de rigidez e imobilidade ao nível global da sociedade. A sociedade apresenta um comportamento onde
tudo parece negociável e transformável ao nível da empresa e da família, do partido ou do sindicato, mas ao mesmo tempo nada de novo parece possível ao nível da sociedade no seu
todo ou da nossa vida pessoal enquanto membros da sociedade. (SANTOS, 1995. p 89)
O capitalismo conseguiu atingir princípios de repressão, alienação e unidimensão,criando uma cultura capitalista e uma nova personalidade humana.
A era dos descartáveis agravou ainda mais a situação. Com o desenvolvimento tecnológico e cientifico foi possível sintetizar novos materiais e isso em grande quantidade sem uma avaliação das conseqüências de sua utilização. A Terra não possui condições para absorver a quantidade excessiva de resíduos gerados diariamente pelos mais de seis bilhões de seres humanos que nela habitam. A cultura de consumo está intimamente ligada ao problema do lixo na atualidade.
4 DESIGUALDADE SOCIAL E RECICLADORES
Para Marx "o capitalismo era um modelo injusto e ultrapassado de organização econômica da sociedade" (KOPELKE, 2006, p.23). A dominação da classe superior (os burgueses, capitalistas, os ricos) sobre a camada social que era a massa (os operários, os pobres) gerou muitas desigualdades sociais. As desigualdades sociais não ocorreram acidentalmente, e sim foram produzidas por um conjunto de relações que abrangiam as esferas da vida social. Originaram-se de uma relação contraditória, onde uma classe produz e a outra domina. Conseqüências deste sistema de dominação foi o aumento dos problemas sociais.
Hoje convivemos com o problema do aumento da população, do desemprego, das profundas diferenças entre os poucos que têm muito e os muitos que têm pouco e, conseqüentemente, presenciamos diariamente a fome, a pobreza, a miséria. Uma das saídas ao desemprego e a pobreza foi à busca de atividades precárias, sem carteira assinada ou qualquer direito trabalhista garantido. Muitas pessoas encontraram a solução para sua sobrevivência nos resíduos que são descartados pelo resto da população. É comum vermos nas ruas homens, mulheres e crianças, sem nenhuma proteção, recolhendo sacos de lixo que são descartados e deixados a deriva nas calçadas. Muitas dessas pessoas uniram-se e passaram a trabalhar juntas em busca por uma solução mais concreta.
É possível considerar, diante de enormes desigualdades sociais, que o cooperativismo se coloca como saída concreta à sociedade. Segundo o economista Paul Singer (2001,p.10), a única forma de mudar a condição de pobreza que está associada ao trabalho informal é organizar as pessoas, grupos de trabalhadores e comunidades em cooperativas, com base na solidariedade. Grupos de carrinheiros, lixeiros, catadores, enfim, recicladores, uniram-se, com apoio de setores das Igrejas, universidades, instituições governamentais e não-governamentais, na luta por uma vida mais digna. Um exemplo positivo, reflexo desta luta, ocorreu em Porto Alegre. A partir de 1990, a Prefeitura implantou a coleta seletiva e a construção de nove unidades de triagem de resíduos sólidos recicláveis. Além de limpar a cidade, gerou emprego para muitas pessoas e beneficiou a preservação da natureza. A reciclagem é uma forma criativa que muitos seres humanos encontraram para continuarem a viver e, mesmo que às vezes inconsciente, é um dos meios mais inteligentes para a solução de problemas ambientais e sociais.
Essa organização oportunizou uma presença orgânica junto ao Orçamento Participativo no sentido de obter verbas, em Porto Alegre, para a implantação de uma Usina de Reciclagem do Plástico, na Restinga e da tentativa, ainda inconclusa, da criação de uma Central de Vendas para dar mais poder aos recicladores, junto ao mercado. A criação da Federação das Associações de Reciclagem do Rio Grande do Sul (FARRGS), em 1999, é outro exemplo de ação aglutinadora dessa atividade. Infelizmente, mesmo com toda esta organização e mobilização, os recicladores ganham em torno de menos de um salário mínimo regional, estando longe de representar uma vida digna.
Temos consciência da situação crítica que estamos enfrentando no país e no mundo, principalmente em termos sociais e ambientais?
Santos (2003, p.92) diz que "Estamos divididos, fragmentados. Sabemo-nos a caminho, mas não exatamente onde estamos na jornada". Chega o momento de encontrarmos a direção que nos conduza para a sobrevivência.
5 CONCLUSÃO
Após analise realizada percebe-se o quanto estamos amarrados e sem muitas alternativas para soluções mais concretas referentes às desigualdades sociais. Os pobres estão cada vez mais pobres e vivendo sem nenhuma dignidade por todas as partes do mundo.
Como será daqui para frente? Ao acompanharmos os passos que a humanidade deu até o momento, poderemos prever o futuro? Poderemos reverter os problemas sociais e ambientais?
Uma coisa nos parece certa, a reciclagem surge como solução. O trabalho na reciclagem, mesmo que ainda informal e sem o reconhecimento devido, proporciona uma nova esperança tanto para o planeta Terra em constante destruição, como para as pessoas em estado de miséria.
Estamos frente ao nosso planeta, em toda sua exuberância, incluindo todos os seres existentes, e nesse olhar visualizamos sinais de desigualdades e destruição. Este trabalho, infelizmente, é finalizado sem uma solução e conclusão para os problemas aqui discutidos. Muito ainda precisa ser pensado, refletido, trocado, analisado e principalmente, concretizado. Fica aqui um apelo a todos pela busca de soluções urgentes para solucionar o problema da desigualdade social e a destruição ambiental.
6 REFERÊNCIAS
CARVALHO, Isabel Cristina Moura. A Invenção Ecológica: narrativas e trajetórias da educação ambiental no Brasil. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: estudos de antropologia da civilização: etapas da evolução sociocultural. São Paulo: Companhia das Letras,1998.
KOPELKE, André Luiz. Cadernos de estudos: economia. Indaial: ASSELVI, 2006.
SKLAIR, Leslie. Sociologia do sistema global. Petrópolis: Vozes, 1995.
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. 3.ed. São Paulo: Cortez, 1997.
SINGER, Paul. O desafio de organizar o trabalhado informal. Mundo Jovem. Porto Alegre, n321, out, 2001.
TERRA DE DIREITOS. Carta Mundial pelo direito à terra. Disponível em < http://terradedireitos.org.br/linhas/terra/carta-mundial-pelo-direito-a-cidade/ Acesso em : 30 Nov. 2009.
Autor: Sandra Grohe
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