A Geografia Cultural e a Geografia Humanística



Esse texto aborda reflexões de autores da Geografia Cultural, mas passa principalmente pela compreensão de que é preciso encontrar outros horizontes para o processo pedagógico da disciplina, e nesse sentido sinto-me confortável ao indicar e a discutir a perspectiva da Geografia Cultural.

Conceitos e Histórico

A geografia humana estuda a repartição dos homens, de suas atividades e de suas obras na superficie da terra, e tenta explicá-la pela maneira como os grupos se inserem no ambiente, o exploram e transformam; o geógrafo debruça-se sobre os laços que os indivíduos tecem entre si, sobre a maneira como instituem a sociedade, como a organizam e como a identificam ao território no qual vivem ou com o qual sonham. (CLAVAL, 1999:11)

No entendimento das questões humanas, a cultura é primordial. A cultura é mediadora entre o ser humano e a natureza e é o resultado da comunicação no grupo, na sociedade. Essa comunicação feita de palavras articula-se no discurso e realiza-se na representação (este é um aspecto fundamental da geografia). É essa cultura que permite aos grupos e aos individuos projetarem um futuro, idealizar uma construção comum (CLAVAL,1999).
No histórico da Geografia Cultural podem ser delineados alguns fundamentos e pensadores que construiram a proposição.
Na geografia alemã Friedrich Ratzel (1844-1904), reconhece na cultura as adaptações e dominio de técnicas para com o meio. Sua análise é sobre os materiais, os artefatos utilizados pelo ser humano em sua relação com o meio. O norte americano Carl Sauer (1889 ? 1975) também vê a cultura como o conjunto de artefatos que permite ao ser humano dominar e interagir com a natureza, mas vai mais longe: a cultura também é composta pelo conhecimento do ser humano sobre plantas e animais e da associação destes para tornar a natureza mais produtiva. Paul Vidal de La Blache (1845-1918) também acredita na cultura como aquela que é apreendida através de instrumentos que as sociedades utilizam e das paisagens que modela, no entanto para esse pensador só há sentido em pensar a geografia cultural se tratarmos dos gêneros de vida. La Blache tem a ambição de explicar os Lugares, a partir da interferencia e vivencia humana, e não de se concentrar sobre os seres humanos. Pode-se resumir que a cultura é para os pensadores franceses e alemães aquilo que se interpõe entre o ser humano e o meio e que humaniza as paisagens (CLAVAL, 1999).
Assim, em um primeiro momento a Geografia Humana vê a cultura como fundamental, mas com uma ótica reducionista própria do século XIX, com a ênfase sobre as técnicas, os utensílios e a transformação das paisagens (CLAVAL, 1999).
No inicio do século XX, Pierre Gourou destaca o estudo dos gêneros de vida com as técnicas de sobrevivência dos grupos sobre determinada paisagem. A cultura deixa de ser observada apenas como uma relação entre o ser humano e o meio, passa a ser considerada um ente autônomo (CLAVAL, 1999).
Com a uniformização das sociedades do pós-guerra, toda a análise da Geografia Cultural tem que conter elementos de uma crescente cultura de massa e um papel cada vez mais desgastado das comunidade agrárias e com pouco acesso a técnicas mais aprimoradas de intervenção do meio. Após um primeiro momento de crise da Geografia Cultural em meados do século XX ela ressurge, não mais como uma análise da técnica, pois essa se tornou por demais uniforme, mas sobre as representações sobre os espaços, e sobretudo, das paisagens que até então foram negligenciados (CLAVAL, 1999).
A Geografia Cultural se caracteriza como a experiência que o ser humano têm da Terra, da natureza e do ambiente, estuda a maneira pela qual os homens modelam a Terra para responder às suas necessidades, seus gostos e suas aspirações e procura compreender o(s) sentido(s) ou significado(s) que o ser humano e a sociedade dão à sua relação com o espaço.
O professor Paul Claval procura em todos os seus textos indicar as origens e as reflexões da Geografia Cultural, e mais ainda, procura possibilitar o entendimento de que a Geografia Cultural pode, e deve ser, uma proposta constante de pesquisa. Entendo que essa pesquisa nem sempre precisa ser aquela observada com os fins cientificistas da academia e pode ser aplicada ao trabalho cotidiano de pesquisa na escola.
Da análise das técnicas e dos procedimentos de alterações e de sobrevivência dos grupos, na década de 1960 a evolução da Geografia Cultural vai dar atenção às percepções que os individuos e os grupos têm do espaço, valorizando assim aspectos humanistas, ao ponto de delimitar o individuo em sua investigação criando uma Geografia Humanistica (com autores como Yi-Fu Tuan e Éric Dardel). Essa linha de pensamento institui, a partir da fenomenologia e do existencialismo (filosofias do significado), um modo de pesquisa e conceitos com base no vivido e experiênciado nos lugares (reforça inclusive o termo Lugar até então relegado ao sentido de localização espacial).
Pode-se estender a Dardel, que introduz a idéia de "geograficidade" que trata do "ser-no-mundo" e não do "ser-no-espaço", não se refere ao espaço somente como algo construído, ele se refere-se ao espaço que tem um horizonte, um modelado, cor, densidade..., ele é sólido, líquido ou aéreo, largo ou estreito: ele limita e ele resiste (DARDEL apud HOLZER, 1997). A idéia de "mundo" pode ser vista na geografia humanista como "[...]a percepção é sempre percepção da coisa total, compreendida num campo mais amplo, o qual por sua vez, é abrangido em um horizonte de significados mais distantes. O conjunto desse complicado sistema de sempre mutáveis significados "próximos" e "longínquos" ligados aos sempre mutáveis momentos de atualidade e potencialidade da percepção, eis o que se chama "mundo" na fenomenologia" (LUIJPEN apud HOLZER, 1997, p.80).
Só há algumas décadas o termo "Geografia Humanista" foi extensamente usado em literatura geográfica, e suas conotações são muitas (TUAN, 1980 e 1983; DEL RIO & OLIVEIRA, 1999). O que pode ser entendido debaixo deste termo varia de um país ou tradição de idioma a outro, e em alguns casos, as condições "social", "cultural", e "humanista" é virtualmente intercambiável. Alguns enfatizaram atitudes humanas e valores, outros o patrimônio cultural; alguns enfocaram nas estéticas de paisagem e arquitetura, outros no significado emocional de lugar em identidade humana. Também, um número significativo defendeu a compaixão humana e o compromisso na resolução de "problema-lembranças" sociais ou ambientais. Horizontes globais acenam uma preocupação difundida sobre a humanidade e a terra, o registro chocante de destruição ambiental e transformações radicais da cultura e da política (BUTTIMER, 1990).
Nas décadas de 1970 e 80, a reflexão da Geografia Cultural reforça o sentido do Lugar e seu papel na espacialidade humana. Nesse sentido a representação do espaço, principalmente a literária (pois a cartográfica e as artes visuais há muito já tinham essa preocupação), passa a ser estudada por vários grupos de estudos procurando referências sobre o espaço vivido, seja o passado, o presente ou o idílico. É importante lembrar que as significações religiosas sobre os espaços passam a interessar definitivamente a pesquisa geográfica, as representações e os ritos comportam elementos de uma individualidade e de uma congregação comunitária que até então estavam relegados.
Nesse atual contexto de inicio do século XXI, a Geografia Cultural se interpõe como um diferencial e como essencial na explicação da sociedade. Seja por sua reflexão no conceito de cultura, que hoje, graças a antropologia passa a ser mais detalhado em seus aspectos fundamentais, sobretudo pelo aprimoramento dos métodos da pesquisa cientifíca (qualitativa).
Em uma tentativa de discorrer mais sobre o papel da Geografia Cultural e da chamada Geografia Humanista (que amplia o entendimento a uma dimensão do individuo) é preciso referenciar aos aspectos fundamentais dessa área de conhecimento
Corpo, Relações Pessoais e Valores Espaciais
Apesar das diferenças entre as culturas, existia uma uniformidade em medir o espaço, o homem é a medida de todas as coisas. O homem como resultado de sua experiência com seu corpo e com outras pessoas, organiza o espaço a fim de conformá-lo a suas necessidades biológicas e relações sociais. Dominar o espaço e sentir-se à vontade nele, significa que os pontos referenciais e as posições cardeais, correspondem a intenção e às posições do corpo humano.
Além das polaridades vertical-horizontal e alto e baixo, a forma e a postura do corpo humano definem o seu ambiente espacial como frente e atrás e direita e esquerda. O espaço frontal é basicamente visual, por isso é claro e objetivo, iluminado e límpido, é nítido e muito maior que o espaço de trás, que só podemos experienciar através de sentidos não visuais. A frente é o claro e o bom, atrás é o posterior profano. Os seres inferiores permanecem atrás e na sombra. Menos perceptível mas não menos importante direita e esquerda representam também espacialidades distintas. Não são tão diferentes como frente e trás ou alto e baixo mas trazem toda uma gama de definições culturais atribuídas a uma e a outra (TUAN, 1983).
Em sentido literal, o corpo humano é a medida de direção, localização e distância. Os termos usuais na localização de objetos como "esta sobre" ou "sob a" determinam um interesse imediato acerca de determinado objeto e por isso identificam rapidamente o objeto em relação ao nosso corpo. Palavras que denotem preposição espacial em muitos idiomas e culturas representam partes do corpo (TUAN, 1983).
O centro é onde vivemos ou ainda que consideramos mais importante, tem o prestígio de ser lembrado como a terra natal, o lugar central ou ainda o centro do mundo (TUAN, 1983).
Espaciosidade está intimamente associada com a sensação de estar livre. Liberdade implica espaço; significa ter poder e espaço suficientes onde atuar. Transcender uma condição sobre o espaço é locomover-se. As máquinas e os equipamentos ampliam a sensação de espaço do homem (TUAN, 1983).
A velocidade que dá liberdade ao homem altera a sua percepção do espaço. Pense em um avião a jato, ele cruza o continente em poucas horas; no entanto, a experiência dos passageiros com a velocidade e o espaço é provavelmente menos nítida do que a de um motociclista que desce ruidosamente uma auto-estrada. Os passageiros não têm controle sobre a máquina e não podem sentí-la como uma extensão de seus poderes corporais (TUAN, 1983).
É preciso ter claro que o sentido de espaço é mais abstrato do que o de lugar. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e dotamos de valor e significado. Pode-se definir o lugar como objetos no espaço onde fixamos nossa atenção. Olhamos uma paisagem e nosso olhar se detém em pontos de interesse. Esses pontos são experimentados pela nossa percepção, mesmo quando não sentimos inteiramente esse reflexo de nossa experimentação as paradas existem, emolduram-se pontos de interesse no nosso consciente (TUAN, 1983).
Enquanto o lugar tende a ser aquele que nos dá segurança, o espaço é a liberdade, estamos essencialmente ligados ao primeiro e desejamos o segundo. Para um novo morador, o bairro é a princípio uma confusão de imagens; lá fora é um espaço embaçado. Aprender a reconhecer o bairro exige a identificação de locais significantes, como igrejas, comércios, praças e outros pontos que passaram a ser referenciais ao novo morador. (TUAN, 1983)
Os lugares nem sempre são visíveis, podem se fazer visíveis através dos meios onde há "rivalidade ou conflito com outros lugares, proeminência visual e o poder evocativo da arte, arquitetura, cerimônias e ritos" (TUAN, 1983:197).
Os lugares somente se tornam mais reais através da ação do homem, o local se fortalece enquanto lugar pela "dramatização das aspirações, necessidades e ritmos funcionais da vida pessoal e dos grupos " (TUAN, 1983:196).
Pode-se definir o lugar como objetos no espaço onde fixamos nossa atenção. Olhamos uma paisagem e nosso olhar se detém em pontos de interesse. Esses pontos são experimentados pela nossa percepção, mesmo quando não sentimos inteiramente esse reflexo de nossa experimentação as paradas existem, emolduram-se pontos de interesse no nosso consciente. (TUAN, 1983)
A Paisagem também assume uma dimensão do percebido, do vivido, assim a paisagem se define como espaço "ao alcance do olhar", mas também a disposição do corpo; e ela se reveste de significados ligados a todos os comportamentos possíveis do sujeito. O ver amplia-se para o poder (COLLOT, 1990).
A paisagem é tudo o que vemos, o que nossa visão alcança. Aquilo que é percebido pelos sentidos. É um quadro com objetos congelados, marcados um instante no espaço, mas ao mesmo tempo ela tem movimento, é um amontoado de tempos e de interferências. A paisagem somente é possível através da percepção, e a percepção é um processo seletivo - isto porque temos sistemas de valores diferentes.
O termo ambiente pode ser definido como: "As condições sob as quais qualquer pessoa ou coisa vive ou se desenvolve; a soma total de influências que modificam ou determinam o desenvolvimento da vida ou do caráter." (TUAN apud HOLZER, 1997).
Chatelm nos ensina que " Meios e paisagens são formados desses objetos que todo mundo pode ver, que alguns estudam. e que todos utilizam de diversas maneiras: as árvores e as terras, as rochas e as colinas... Pensar os meios e as paisagens, é empreender a reunificação ou de colocar todas as atitudes que se pode adotar, em face destes objetos, para perceber, compreender, sentir e se exprimir" (CHATELIN apud HOLZER, 1997, p.81).
O conceito de meio ambiente amplia a escala: o "meio" é mais amplo do que o "ambiente" onde se considera apenas o suporte físico e os objetos, ou traços, que o identificam, sendo reservado ao homem o papel de espectador: o que percebe, compreende, sente (HOLZER, 1997).
O Meio Ambiente denota, além de suporte físico as marcas do trabalho humano, onde o homem, não como mero espectador, imprime aos lugares onde vive. Sinaliza também o potencial que o suporte físico, a partir de suas características naturais, tem para o homem que se propõe a explorá-lo e vivenciá-lo. Corresponde a um dos conceitos caros à geografia: paisagem (HOLZER, 1997).

Referências
BUTTIMER, Anne. Geografia, humanismo e preocupação global. Texto traduzido de: Geography, humanism, and global concern. In: Annals of the Association of American Geographers, 80 (1), 1990, pp 1-33.
CASSETI, Valter. A ideologia da modernidade e o meio ambiente. Boletim Goiano de Geografia, n. 15 (1), p. 17-34, jan./dez. 1995.
COLLOT, Michel. Pontos de vista sobre a percepção das paisagens. Boletim de Geografia Teorética, Rio Claro, SP. n. 20 (39): p.21-32, 1990.
CLAVAL, Paul. Geografia cultural. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999.
HOLZER, Werther. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar, território e meio ambiente. Revista Território, ano II, n. 3, jul./dez., 1997
TUAN, Yi-Fu. Topofilia. São Paulo: Difel, 1980.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1983.
RIO, Vicente del; OLIVEIRA, Lívia de.(org.) Percepção Ambiental: Experiência Brasileira. São Carlos, São Paulo: Nobel e Editora da Universidade Federal de São Carlos, 1996.



Autor: Orlando Ednei Ferretti


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