Desabafo diante da cultura do ter-ser.



Quem disse...

Acordei estranho. Sentindo falta de mim. Um vago largo do SER... Quem disse que eu quero TER?Deixe-me quieto!Quem disse que eu quero ser? Tecer o véu em que irei andar deitar e rolar, eis a minha cantiga. Misturada ao alarido dos gritos do ser que procura ter... Deixe-me tecer meu véu... Morrer, eu sei... Embriagar-me. Esquecer os apelos e dizer: Sei lá...

Deixe-me tecer. Não o véu que esconde ?de ?mim-mesmo o rosto pálido e de urdidura débil, sem força, para alçar-me, arrasta-me por entre rostos que se escondem do inquisitor rosto que me denuncia. Véu que moldado na certeza incerta da busca essencial, mantém-se imóvel sob o vento forte da consciência... Ciência... Fogo aniquilador do rosto que não se suporta. Deixe-me quieto!Quem disse que eu preciso SER?Para que ser, ter, tecer... Amar, chorar, gritar... Grunhir, punir, sumir... Torpor, rubor, dor... Se tu, nú, teces? Deixe-me quieto. Vão, caminhem... Mas não esqueçam que precisam de um caminho!De um rumo... Mundo... De um porto... Horto... Torto... Com vida própria. Para que Sustente... Ausente... Inocente... Ente Acorde... Acorde!Ouvi um grito: Teça... Desça... Era um grito produzido pela garganta... Ânsia... Anta... Que descansa... Balança... Cansa... Cansa... Cansa. Teça, desça, teça... Essa é a cantilena.
É. Já não sei mais onde parei na tessitura desse véu!Sem limite me ponho a tecer. Cada vez se torna maior. E eu?Ah! Eu diminuo e me perco... No berço... Do cerco... E teço... Desço... Teço... Desço e me esqueço... É insuportável essa cantiga. Já não tem mais sentido... Gemido... Espremido... Encolhido, tolhido... E o véu!?...O véu réu... Ao léu... Cinzel... Tropel... Que corta... Exorta... Embota... Enrola... Aborta... Esgota... Pare!Já não agüento mais. Já não há mais rosto para cobrir, corpo para vestir. Atônito tropeço no imenso véu que teço.Sem forma...Sem nexo...Possesso...Levanto...Ando...Reclamo...e Caio. Vencido pelo cansaço, sufocado, percebo que este véu agora se volta contra mim. Mumifica-me... Engessa-me... Mina-me. Preciso respirar. Deixe-me quieto!Quem disse que eu quero ter?Ser?O que?Para que?

Ouço um grande barulho. É meu corpo a reclamar. É a mente cansada. É a doença... Intensa... Crença... E, num lapso de lucidez, percebo a torrente que me envolvera e, rebelo-me. Pergunto pelas mãos que tecem, pelos olhos que guiam, pela mente que cria!? O que está acontecendo, pergunto a mim mesmo. Aonde se encontra a verdade outrora apregoada?A igualdade de oportunidades?Quando será que este véu se tornará o veículo de ascensão e conduzir-me-á à "riqueza"?Quando vestirá minha indigência?Vamos, responda-me! Nesse instante sou arrebatado ao estado de êxtase e percebo, sob a bruma da aparência, algo escrito no véu. Apuro a vista e leio: Rotina.
Rotina... Mina... Arruína a vida. Chega, falei. Nesse instante senti um frio intenso. É como se a caverna em que até então me abrigara desmoronasse cedendo à força do vento forte da vida. O sol alcançou meu corpo despido e visitou o íntimo da minha existência. Uma bela sinfonia se fez ouvir. Percebi que a música que ouvira até então falara de tudo, menos de mim. O ritmo eloqüente e alucinante que cadenciara minha vida era de uma guerra que não era minha. O hino da rotina não encontraria mais ressonância em mim, pensei... Deixe-me quieto!Preciso pensar... Amar... Falar gritar... Perguntar: QUEM DISSE QUE EU QUERO TER-SER?
Quanto a você?Teça... Teça... Teça e me esqueça. Agora o véu da rotina é tapete onde piso... Onde deito e rolo. A aranha tece para fisgar, o homem é fisgado para ter-ser... ter-ser...
Até a próxima. Próxima? Fui...

Autor: Afonso Rocha Sombra


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