Uso da Catarse para uma apresentação do feminino em Chico Buarque



Capítulo I
1. Aristóteles e a Catarse na Tragédia Grega
1.1 Tragédias na arte da vida.
A Tragédia nasce na Grécia. Conta uma lenda que Ícaro Burgo de Ática (Dionísio) teria ensinado aos homens o cultivo da vinha. Então os homens prepararam a plantação, mas um bode devorou todas as videiras. Os homens enfurecidos castigaram o bode, arrancando a pele do animal. Dançaram, beberam e cantaram a noite toda até caírem de cansaço. Os homens que permaneceram até o fim da festividade receberam um prêmio: a carne e a pele do animal envolvida no vinho. Neste momento originou-se a Tragédia.

O primeiro aspecto apontado por Jean Pierre Vernant é a tragédia como instituição social de cunho democrático. Instituição social e não apenas uma manifestação literário?teatral. Instituição em primeiro lugar, porque as tragédias são escritas e representadas durante festas cívicas de Atenas; em segundo, porque o coro é formado por um colégio de cidadãos; em terceiro porque a cidade paga e financia a escrita e apresentação das peças; em quarto lugar e, sobretudo, porque a tragédia é uma reflexão que a cidade faz sobre democracia. (CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Pág. 137)

Existem grandes responsáveis na inicialização da Tragédia: Frínico acrescentou quatro elementos importantes: o coro em dois grupos, o ator passou a contar com dois auditórios, introduziu a personagem feminina e fixou a entrada e saída dos atores. Com Ésquilo tem-se a criação do segundo ator; Sófocles deu origem ao terceiro ator. Fechando o grupo dos que iniciaram encontra-se Eurípedes, que trouxe inovação para as Tragédias com o realismo cético e amargo. Anteriormente a essas pessoas as Tragédias estavam presas somente aos mitos de Dionísio, e com passar do tempo foi-se tornando necessário introduzir novos temas. Por este motivo surgem as lendas dos heróis e deuses, que fazem fusões a todo o momento nas tragédias introduzidas pelos quatro escritores.
A estrutura da tragédia é a maneira de retratar a sociedade grega, como era organizada e como deuses e heróis se relacionavam:

De fato, a tragédia coloca no palco deuses e personagens do mundo aristocrático (reis, rainhas, príncipes e suas famílias) definidos pelos valores da aristocracia, isto é, pela coragem na guerra, pela beleza física e pelos laços de sangue ou da família, mas coloca no coro um colégio de cidadãos que, comentado as ações que transcorrem no palco , avalia , julgava e dialoga com as personagens aristocráticas. Dessa maneira, a distribuição cênica visa marcar a diferença entre o passado aristocrático, que está no palco, representado por artistas profissionais, e o presente democrático, que está no coro cantado pelos cidadãos. (idem. pág. 137)


Quando se fala de Tragédia, lembra-se de sentimentos humanos, sofrimento, perdas, ódio, fúria e outros. Neste contexto inicia-se a relação entre o "Eu" ser humano e o "Eu" interpretado.
Observa-se que a tragédia está ligada às pessoas e ao realismo. Pela mímesis dá-se a sensação de que tudo que está sendo mostrado em uma peça parece real e faz lembrar o dia a dia do ser humano. Com isso temos a catarse.


1.2 Conceito de Catarse e Mimesis
Segundo Aristóteles, a Catarse é a forma pela qual o Homem purifica sua alma, na representação trágica. A tragédia para Aristóteles é um estilo derivado da dramaturgia, por intermédio de atores, que reproduzem nas peças as aventuras dos deuses e dos heróis, realizando as emoções humanas.

A Kátharsis, por seu turno, tem uma função ético-pedagógica, pois a poesia (epopéia, lírica, tragédia, comédia, música, dança) deve atuar sobre animo ou pathos do ouvinte (na música e na poesia que, na Grécia, não era lida, mas recitada ou declamada) e do espectador (no teatro, na dança, na escultura e na pintura), fazendo?o sentir as paixões narradas- apresentadas e permitindo-lhe, ao senti-las, imita-las em seu interior, isto é, vivê-las como suas e, assim liberar-se delas, purificando-se. (CHAUI, Marilena Introdução à História da Filosofia. pag. 485)


A catarse é essencial para a tragédia, pois abrange os sentimentos humanos. No momento em que a catarse ocorre, o espectador se sente vingado; quando os heróis e heroínas concluem seus atos tanto para o bem quanto para o mal, o espectador tem a sensação de alívio e de realização ao término da peça.
Essa sensação ocorre devido à tragédia estar ligada às ações humanas e principalmente às paixões. Tal ligação se dá pela verossimilhança ? Mimesis.
Para Aristóteles a tragédia tem uma finalidade educativa e firmadora do caráter e das virtudes. Tem-se a catarse e a Mimesis para sustentar essa finalidade.
Segundo Marilena Chauí (Pág. 506) Mimesis é a ação de imitar ou de reproduzir. Ao momento que o ator faz a representação da peça, tem-se a Mimesis. Isso se dá não só nas tragédias, mas em qualquer representação. Ao mesmo tempo tem-se a catarse, que é a emoção que os espectadores sentem ao vivenciar a Mimesis no decorrer da peça.
Para Aristóteles o gênero trágico segue três regras: Da unidade (a ação deve ocorrer num único dia e no mesmo lugar), da verossimilhança (o que pode acontecer com a imitação) e a da Catarse (suscita emoções nos espectadores).
Essas três regras são essenciais para a Tragédia, que é a representação do mundo, e por este motivo influencia os cidadãos da época, segundo Aristóteles.
Não esquecendo que na época, os filósofos, queriam entender o mundo. Para eles não interessava que as pessoas tivessem opinião (doxa) sobre determinado assunto. Tudo era reproduzido nas tragédias e naquele momento tudo se resolvia, não era necessário questionar porque tudo já havia sido debatido.






Capítulo II
2. Catarse para o teatro de Brecht e a Questão do feminino na sociedade de Atena (Grécia Antiga) e Brasileira (Ditadura).

2.1 Papel do teatro para Brecht
O teatro épico e didático caracteriza-se, em Brecht, pelo cunho narrativo e descritivo cujo tema é apresentar os acontecimentos sociais em seu processo dialético: Diverte e faz pensar. Não se limita a explicar o mundo, pois se dispõe a modificá-lo. É um teatro que atua, ao mesmo tempo, como ciência e como arte. (WILSON, Pedro (UCG / UFG). Bertold Brecht: Exemplo de Reflexão e Ação para Mudar o Mundo, Pág.01)



Brecht estabeleceu um novo modelo de teatro, desde os temas até o desenrolar da peça. Para o autor o espectador tem que permanecer sempre preso aos acontecimentos, pois a estória se quebra , avança, retorna de onde estava. E tudo isso é intencional, pois é o momento que o espectador tem para refletir sobre a peça em vez de se perder na fantasia.
O termo "Teatro épico" caracteriza a escrita de Brecht, que faz do público um observador crítico, saindo do estado de inércia e criando uma nova atitude ao rever o mundo.
No teatro épico, os acontecimentos não seguem uma regra, as cenas se desenvolvem por si só, e as sensações produzidas ficam na consciência.

Brecht teve grande influência das idéias marxistas, que defendiam que a classe trabalhadora deveria se unir para derrubar os capitalistas. Percebe-se como esta visão social está inserida nas peças de Brecht, na luta épica do "Eu" contra o mundo. Quando Brecht inicia sua primeira fase o autor utiliza do "Eu social" que são os ladrões, prostitutas e lúmpens.
Observe-se que na "Ópera dos Três Vinténs", de Brecht e Kurt Weill, se fala de um marginal, anti-herói que vivia cercado de ladrões e prostitutas. E Brecht questiona na fala da ópera citada acima "O que é roubar um banco comparado a fundar um?" (1928; Ato 3, cena 3, p. 92) Nesta frase encontra-se uma crítica à sociedade burguesa que não faz nada para que deixe de existir o mundo marginalizado.
Já na segunda fase de Brecht o "Eu" está relacionado a outra classe social. O autor começa a descrever a classe trabalhadora, que é explorada a todo instante pelo mundo capitalista, mundo em que as pessoas se tornam escravas do dinheiro. Tem-se a alienação que Karl Marx retrata: o individuo perde sua identidade em prol de bens materiais, em busca de bens, de status e poder. Passa a não pensar mais em si, mas o que pode ter e no que pode acumular.
Tais constatações têm seu corolário nas Teses sobre Feuerbach, que colocam que ao invés de Deus ter criado o homem à sua imagem e semelhança, foi o homem quem criou Deus a sua imagem e semelhança. Essa é a visão egocêntrica do capitalismo, que colocou o homem como centro do mundo.
"Filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-lo" (MARX, Karl. 1888. Tese 11; Pág.72). A frase é uma crítica ao materialismo e ao idealismo que reproduzem a exploração do homem pelo homem. Isso vai ser bastante analisado nas obras de Brecht e de Chico Buarque. Marx influenciou fortemente na concepção moderna de história.


2.2 Função da catarse para Aristóteles para Brecht

Quando se faz alusão às teorias do teatro, Brecht e Aristóteles são comumente postos em campos contrários. Isso decorre, sem dúvida, da distinção proposta pelo próprio Brecht entre o teatro dramático e o épico, sendo o dramático identificado, nesse caso, com o aristotélico. A polaridade central do teatro épico não se dá com Aristóteles e a tragédia, mas sim com o naturalismo e seu drama psicológico e com o romantismo tardio, matrizes majoritárias do fazer teatral nos tempos de Brecht. As implicações desta demonstração, de imediato, apontam para uma revisão das teorizações de Aristóteles que conduz à seguinte constatação: recuperar Aristóteles significa ir ao encontro do primeiro teórico que apresenta a arte como um fazer, como produção, como trabalho, enfim, como possibilidade de conhecimento. (BOLOGNES, Mario. Brecht e Aristóteles. Pág. 67)

É na tragédia que se tem a imitação de uma ação de caráter elevado e distribuído em diversas partes, não por narrativa escrita, mas mediante atores, e que, suscitando o "terror e a piedade", tem por efeito a purificação dessas emoções. A catarse gera esse efeito de purificação quando os espectadores sentem alívio ao final da peça e têm a sensação de dever cumprido.

Brecht aproxima-se de Aristóteles ao dar à arte um valor de conhecimento, ao vinculá-la à política. Contudo, ambos se distanciam quanto ao atributo específico da política. Para Brecht, a revolução proletária está no horizonte. A catarse aristotélica expurga os sentimentos, o terror e a piedade, com vistas à virtude da ética e da política. (BOLOGNES, Mario. Brecht e Aristóteles. Pág.75)


Aristóteles busca a aceitação da ordem natural das coisas, diferentemente de Brecht, que une poesia e política para que ocorra um impacto no espectador no decorrer da peça, impelindo-o a mudar o mundo ao seu redor.
Nas peças de Brecht os heróis são pessoas do povo que sempre enfatizam a luta de classes. Isso se contrapõe aos heróis de Aristóteles, que são pessoas idealizadas.

Referindo-se a Aristóteles diz Brecht:

Estamos de acordo com Aristóteles ? prossegue Brecht ? quando se trata de defender que o coração da tragédia é a fábula [contra a sobrevalorização romântica dos caracteres e das personagens-heróis], mesmo se não estamos de acordo quanto aos objetivos pelos quais deve ser apresentada (1955) [Pequeno organon]. O que significa, não tanto (como alguns pensaram) uma oposição à genuína catarse aristotélica, mas antes (pelo menos assim o julgamos) uma refutação da persistente interpretação romântica e idealista, que faz da catarse um meio para atingir estados de sonho e contemplação etc. De resto, a formação de hábitos racionais, e morais que resultam da catarse trágica, segundo Aristóteles, parece-nos ser um claro precedente clássico desta moderníssima poética dramática, racionalista e realista, que chega ao ponto de apresentar a instância de que talvez seja necessário que os fatos apresentados pelo ator épico já sejam conhecidos (e nesse caso, os fatos históricos seriam os mais adequados). (BOLOGNES, Mario. Brecht e Aristóteles. Pág.77)

Brecht usa da catarse para enfatizar as emoções, diferentemente de Aristóteles que a utiliza como parte da tragédia; Brecht usa essa sensação para provocar reações nos espectadores. Aristóteles, ainda, não utiliza a Catarse para abrir novas questões sobre a sociedade, ele encontra-se aliado à sociedade e indo em busca de purificação e aceitação.




2.3 Questão da mulher e a sociedade de Atenas na Grécia Antiga.
No chamado "século de Péricles", ou, para alargar um pouco mais os limites, entre 480 a.c e 380 a.c, Atenas viveu uma época áurea no aspecto cultural, artístico, literário, político e econômico. Era uma cidade cheia de vida, de dinamismo, onde afluíam pensadores e comerciantes de todos os lados. (?) A cidade atraiu intelectuais de várias partes da Grécia e foi no seu seio que a História atingiu a maturidade com Heródoto e com Tucídides; que o Teatro se desenvolveu e nos legou peças que ainda hoje são obras-primas constantemente imitadas; que o movimento dos Sofistas se afirmou como resposta às necessidades do regime democrático; (RIBEIRO FERREIRA, José. Democracia. Pág. 01)


Contudo, uma parte da população Grega não tinha acesso aos direitos de todos os cidadãos da democracia vivida atualmente. A população grega era regida por homens, que eram os únicos que poderiam viver sem restrições.

A democracia Ateniense possui algumas características que a tornam diferentes das democracias modernas, ainda que estas se inspirem nela para se constituírem. Em primeiro lugar, nem todos são cidadãos. Mulheres, crianças, estrangeiras e escravos estão excluídos da cidadania, que existe apenas para os homens livres adultos naturais de Atenas. (CHAUI, Marilena Introdução à História da Filosofia. Pág. 134.)

Como mostram Duby e Perrot (1990), a mulher grega não era considerada uma cidadã, qualidade designada somente para o homem; era considerada apenas filha de cidadão. O lugar da mulher era dentro de casa, na vida doméstica, porque elas eram um símbolo de fraqueza para a sociedade grega, na qual não usufruíam dos mesmos direitos dos homens.



Atualmente, a mulher encontra-se, ao menos no Ocidente eurocêntrico, num mesmo patamar de direitos semelhantes ao do homem. Entretanto, essa conquista tem levado séculos para acontecer. O espaço tradicionalmente reservado à mulher na sociedade Greco-judaico-cristã, bem como em várias outras, era o da submissão e da ampla dependência do poder masculino. (SANTOS, Giovanna Gonçalves (UEM); SILVA, Marisa Correa (UEM), Medeias: A caracterização da personagem feminina nas tragédias de Eurípedes e Sêneca.Pág.440)


Ao momento em que Eurípedes escreveu a tragédia Medeia, o autor faz critica a essa sociedade grega, pois as mulheres não tinham voz, assim como idosos e escravos.

2.4 O papel da mulher brasileira (ditadura)


As representações da mulher atravessaram os tempos e estabeleceram o pensamento simbólico da diferença entre os sexos, hierarquizando a diferença, transformando-a em desigualdade. Aos homens o espaço público, político, onde se centraliza o poder; à mulher o privado e seu coração, o santuário do lar. Apresenta-se ao feminino uma única alternativa - a maternidade e o casamento. (COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. Pág.01)

Tem-se uma sociedade em que visa o direito do homem, subtraindo a todos que não fazem parte do meio. A mulher na época da ditadura era representada como submissa, sem poder de voz, sem escolha, sem direitos e sem opiniões. Observa-se que o ocorrido na democracia Grega na época de Eurípedes volta a acontecer depois de tanto tempo. Neste caso não só com a mulher, mas com todos que fizeram parte desta ditadura que se encontrava no Brasil.


Depois de muito tempo a história se repete. As mulheres, os escravos, os operários, os idosos, todos esses são de pouca utilidade para uma sociedade que não pensa no coletivo e sim na individualidade.

Se, historicamente, o feminino é entendido como subalterno e analisado "fora da história", porque sua presença não é registrada, libertar a história é falar de homens e mulheres numa relação igualitária. Falar de mulheres não é somente relatar os fatos em que elas estiveram presentes, mas é reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos. Na esteira de Michel Foucault, é fazer uma arqueologia do feminino; desconstruir a história da história feminina para reconstruí-la em bases mais reais e igualitárias, analisar as práticas discursivas e não discursivas que representam o feminino.
(COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. Pág. 02)


A sociedade grega, portanto, teve uma grande influência, não só na cultura Brasileira, mas na visão preconceituosa de que só os homens saudáveis tinham o direito de participar da vida política, subestimando a todos os outros pertencentes à mesma sociedade. Mas também há, em nossas canções e poemas, críticas a essa visão preconceituosa e machista.





Capítulo III
3. Chico Buarque relação do feminino em suas releituras e a Catarse

3.1 Chico Buarque, autor de uma Tragédia Brasileira

Chico de Hollanda, de aqui e de alhures "Parceiro de euforias e desventuras, amigo de todos os segundos, generosidade sistemática, silêncios eloqüentes, palavras cirúrgicas, humor afiado, serenas firmezas, traquinas, as notas na polpa dos dedos, o verbo vadiando na ponta da língua - tudo à flor do coração, em carne viva... Cavalo de sambistas, alquimistas, menestréis, mundanas, olhos roucos, suspiros nômades, a alma à deriva, Chico Buarque não existe, é uma ficção - saibam. Inventado porque necessário, vital, sem o qual o Brasil seria mais pobre, estaria mais vazio, sem semana, sem tijolo, sem desenho, sem construção. (Guerra, Ruy. Vida e Obras. 1998. Pág. 01)

No dia 19 de junho de 1944, nasce no Rio de Janeiro Chico Buarque de Holanda. Desde novo, Chico Buarque lia os clássicos da literatura francesa, alemã e russa.
Compositor, escritor e cantor, sua história de vida está ligada à arte e à sociedade brasileira, no momento em que tudo era proibido, num período de opressão da liberdade de expressão pelos que comandavam o país.
Chico Buarque alcançou o sucesso muito rápido. Em suas canções encontravam-se sempre conteúdos subentendidos, críticas à sociedade e à política da época. Suas canções geraram grandes polêmicas na década de 70. Chico Buarque participou de diversos confrontos contra a ditadura militar no Brasil.
Suas peças estão ligadas aos conflitos socias e à ditadura na qual o país se encontrava. Devido a ter sido exilado, o autor entrou em contato com novas concepções estilísticas.
Chico Buarque faz releituras de obras como as de Eurípedes, Brecht, entre outros. O capitalismo, a alienação e a perda de identidade também giram em torno de suas peças. Chico Buarque utiliza o dia a dia da vida dos Brasileiros para escrever suas peças, fazendo referência a obras conhecidas mundialmente.



3.2 "Pirate Jenny" de Bertolt Brecht e "Geni e o Zepelim" de Chico Buarque

Chico Buarque adota algumas estratégias recorrentes em Brecht, como a de criar uma expectativa sobre a peça seguida de um final que choca quem a acompanha.

A possibilidade de Chico Buarque escrever sua adaptação para a peça de Brecht e Weill surgiu numa conversa com Ruy Guerra, cineasta moçambicano radicado no Brasil. No entanto, o plano só começaria a se tornar realidade anos depois, quando o diretor teatral Luis Antônio Martinez Corrêa procurou Chico Buarque, sugerindo que os dois montassem a peça juntos. Corrêa já havia feito a tradução da ópera de John Gay, que serviu também de ponto de partida para Brecht e Weill escreverem "A Ópera dos Três Vinténs".
(TADEU, Felipe BNB, Há 30 anos, era lançada a trilha sonora da "Ópera do Malandro"Pág.01).


Percebe-se como Brecht influenciou as idéias de Chico Buarque. Pode-se observar na chamada "Ópera do Malandro", em que Chico Buarque faz releitura da "Ópera dos Três Vinténs", que o personagem principal é um típico boêmio e malandro da Lapa, mas Chico Buarque utiliza desse malandro como uma figura idolatrada por todos. Ele passa a ser um herói para as pessoas que o cercam. Criticando bastante essa posição que o marginal (o "malandro" da peça original) ocupa, Brecht acredita que a sociedade tem que intervir para que não ocorra essa idealização que o marginal passou a ter nas sociedades.
Chico Buarque utiliza da música "Geni e o Zepelim" para fazer críticas às pessoas da sociedade e como esta observava Geni e a posição social que ocupava.
Pode-se citar a releitura que Chico Buarque fez da canção "Pirate Jenny" (1928) de Bertolt Brecht e Kurt Weill.
Em "Pirate Jenny" que é uma parte da "Ópera dos Três Vinténs" de Brecht encontra-se uma mulher que limpa o chão e é maltratada por todos. Ela conta durante a canção que virá um navio salvá-la e que irá destruir aquele local. Já na canção "Geni e o Zepelim" de Chico Buarque, Geni é usada por todos daquela cidade, as pessoas a maltratam a todo instante, e um dia aparece um zepelim para destruir aquela cidade, mas seu capitão se depara com Geni e pede àquela formosa dama para dormir com ele naquela noite.
Trecho da música Geni e o Zepelim:

"De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina"


Observa-se no fragmento da música de Chico Buarque que Geni era hostilizada por todos daquele local que as pessoas utilizavam de sua fragilidade para diminuí-la e humilhá-la; a personagem encontra-se sem esperança. Geni não tem a tal coragem necessária para enfrentar aquela sociedade. Novamente temos a mulher submissa; não só a mulher, mas toda a sociedade que não tem coragem de ir adiante e prefere acreditar que tudo vai melhorar.
Quando surge o forasteiro do Zepelim, ele traz a Geni uma esperança de vingar tudo que aquelas pessoas a fizeram sofrer.

Um dia surgiu brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir
(Trecho da música Geni e o Zepelim)

Isso também acontece na canção de Brecht quando Jenny crê que os Piratas vão resgatá-la daquele hotel o qual a própria descreve como fuleiro.


In this crummy Southern town
In this crummy old hotel
But you'll never guess to who you're talkin'.
No. You couldn't ever guess to who you're talkin'. *
(Brecht, Bertolt e Weill, Kurt.)

Brecht retrata na canção a questão da cidade que não valoriza a pessoa, no caso da peça uma mulher que sua profissão é esfregar chão e fica com esperanças que tudo vai mudar e isso ocorre devido a utilizar as falas no futuro.


Cause every building in town is a flat one
This whole frickin' place will be down to the ground
Only this cheap hotel standing up safe and sound
And you yell, "Why do they spare that one?"
Yes. That?s what you say.
"Why do they spare that one?"
(Brecht, Bertolt e Weill, Kurt.)



Tem-se uma sociedade capitalista, que se esquece das pessoas e as desrespeita como seres humanos. Quando Jenny diz que virá um navio pirata, esse representa a quebra da sociedade, porque rompe o padrão, devido aos piratas invadirem as cidades em busca das riquezas. E isso faria com que todos daquela cidade ficassem no mesmo patamar que ela, nesse instante ela seria enxergada por todos e o poder estaria nas mãos de Jenny.

Askin' me,
"Kill them NOW, or LATER?"
Askin' ME!
"Kill them now, or later?"
(Brecht, Bertolt e Weill, Kurt.)




Brecht não fecha a canção: ele a deixa em aberto para a escolha do espectador, pois pode ser que um dia aquele navio invada a cidade e destrua a todos deixando só o hotel em pé, mas não há garantia de que isso vai acontecer. Porém Chico Buarque transforma o final trágico de Geni; o autor choca a todos, pois faz com que os espectadores criem uma expectativa, sendo que acontece o contrário; Geni não se vinga e continua submissa.


E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
(Trecho da Música Geni e o Zepelim)

Nas canções de Brecht e Chico Buarque é percebido que ocorre esta recorrência à uma força desagregadora da sociedade: tem-se o Pirata e o Zepelim. E também nota-se que ocorre a quebra da Catarse Aristotélica: o final da história mantém a tensão no espectador.

Será observada a mesma quebra da catarse na releitura que Chico Buarque fez da Medeia de Eurípedes.

3.3 Eurípedes ? O escritor de caráter inovador

Eurípedes foi autor de obras bastante conhecidas como Medeia, Electra, Helena e outras. Nasceu na Macedônia em 484 A.C, Escreveu 92 peças de teatro, das quais existem atualmente 19.
Eurípedes era apaixonado pelo debate de idéias. O escritor, em suas obras, adotou uma visão social que sustentava a igualdade de escravos e senhores, homens e mulheres, cidadãos e estrangeiros. Eurípedes faleceu em 406 a.c e suas obras, apesar de tanto tempo, ainda são muito atuais.
Observa-se nas obras de Eurípedes o ser humano se deparando com conflitos internos e externos, muitos deles existentes até hoje, o que causa grande impacto aos leitores, devido ao escritor usar o realismo e o sentimento em suas peças.

Nas tragédias de Eurípedes, a individualidade é acentuada e a oposição entre humano e o divino vai sendo transfigurada num interior ao próprio agente, aparecendo cada vez mais como crise ou luta interna entre paixões destrutivas que arrastam a personagem em direções contrárias, fazendo-a responsável, em alguma medida, por suas ações. (CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Pág. 140)


Eurípedes usava o pensamento filosófico para debater sobre os deuses e discutir o poder, e foi um dos primeiros a enfocar nas Tragédias o amor, a fantasia, vingança, traição, emoção, razão e morte. Em suas peças esses assuntos estão sempre sendo tratados.

3.4 Mito de Jasão e Os Argonautas

Para Aristóteles, o mito é o gerador da tragédia, sendo o elemento central; sem ele, tal gênero não poderia existir. É ratificado como princípio e alma da tragédia, vindo somente depois os caracteres, ou seja, as personagens.
(LOPES, Giovana, Santos. Medeia, de Eurípedes: um olhar sobre tradição e ruptura, na tragédia grega. pág.02)

Partindo sobre o que é mito para Aristóteles, torna-se necessário descrever o mito de Jasão para facilitar o entendimento das Tragédias de Eurípedes e Chico Buarque.
Jasão era filho de Éson, o rei de Iolcos. Ainda pequeno, seu tio Pélias rouba o trono de seu pai e envia Jasão para longe do reino.
Quando adulto,Jasão resolve voltar para Iolcos e reivindicar o trono, porém seu tio lhe impõe uma condição: só entregaria o trono se Jasão encontrasse e trouxesse o velocino de ouro, um direito da família. Jasão aceitou o desafio e reuniu a tripulação, composta por heróis valentes que o acompanharam em seu navio Argo.
Chegando ao reino, Eestes, que mantinha o velocino de ouro, concordou em dar-lhe-o se Jasão enfrentasse os desafios até o estimado objeto. Entre esses obstáculos encontravam-se dois touros de casco de bronze que respiravam fogo e lutar com o exército que brotava dos dentes de dragão, que foram semeados por ele. Sendo que Medeia, filha do rei, se apaixona por Jasão e facilita todos os obstáculos para que ele consiga chegar até o velocino de ouro. Após enfrentar todas as dificuldades e recuperar o velocino de ouro, Jasão casa-se com Medeia e retornam para Iolcos. Através de um ardil de rejuvenescimento Medeia faz com que as filhas de Pélias o matem e com isso o casal foge para Corinto.

3.5 Sobre Medeia de Eurípedes
Retomando o mito de Jasão, observa que Medeia faz de tudo para que ele conquistasse todos os seus objetivos. Ela cometeu assassinatos e largou Corinto em virtude de seu amor. Medeia não acredita ter sido deixada por Jasão a quem dedicou sua existência. E fica com sentimento de revolta, pois tinha dois filhos e um sofrimento sem tamanho.


"Ai de mim! Sofro, desventurada, sofro, e não posso conter os meus gritos de dor. Malditas crianças de mãe odiosa, morram com seu pai! Que toda a nossa casa pereça!" (Eurípedes. Medeia. 431 a.c.Pág.22)

Neste momento Medeia encontra-se envolvida pela ira e revolta, humilhada, abatida pelo abandono do marido. Não se levanta, fica definhando em seu leito. A cada momento que passa só pensa em vingança contra Jasão, sua atual esposa e o pai dela.

"Eis a graça única que vos peço: se eu encontrar um expediente, algum artifício, para vingar-me de meu esposo pelos male que sofri (para punir aquele que lhe deu a filha, e aquela que ele desposou), guardai segredo. A mulher é comumente temerosa, foge da luta, estremece à vista da arma mas, quando seu leito é ultrajado, não existe alma sedenta de sangue."(idem. pág. 26)

Observa- se que Medeia está cega de tanta revolta e angústia, e que é capaz de qualquer baixeza para atingir todos os que a fizeram sofrer. Esses sentimentos só vão piorar a partir do momento em que Creonte pede que Medeia saia da região junto com seus filhos. Medeia suplica a Creonte pedindo para que a deixe ficar por mais um dia. Creonte cede às súplicas de Medeia e diz que ele ainda vai se arrepender por isso.

"... Vou preparar à filha do rei a armadilha em que deve perecer. Envia-lós?ei ela com presentes (que eles deverão oferecer á nova esposa, para que não os exilem deste país): um véu do mais fino tecido e uma coroa de ouro. Se ela pegar e usar, quem quer que a tocar, tal é o poder dos venenos com que impregnarei esses adereços. Mas aqui me detenho. Estremeço ao pensamento do que me restará fazer: matarei meus filhos..." (idem. pág. 43)

Nestas citações Medeia deixa explícito que era o tempo necessário para conseguir destruir a vida de todos. Medeia faz juramentos perante aos deuses e pede para que Egeu a acolha, após a armadilha que irá tramar para Creonte, Glauce e Jasão.
Apesar de ter tanta ira, Medeia faz-se de boa e ingênua para reconquistar a confiança de Jasão e pede desculpas por tudo que fez. Mas ao mesmo tempo sua cabeça maquiavélica trama um ataque perfeito para Jasão através de seus filhos. Jasão encontra-se extremamente feliz, pela mudança de Medeia, e pede para que Glauce aceite os filhos dele, e o presente que Medeia lhes mandou. Certamente Glauce acredita em seu esposo e aceita o presente. Logo fica encantada com a beleza do mesmo e imediatamente coloca o véu sobre o corpo e a coroa sobre a cabeça. Em segundos Glauce começa a ficar em chamas e o feitiço é realizado. Creonte, ao ver a filha naquele estado caída no chão morta, se desespera e abraça a filha, e também é envenenado.

"Ela se levanta e corre inteiramente em fogo. Sacode em todos os sentidos a cabeça e os cabelos, quereria dela arrancara coroa, mas o diadema de ouro nela fixado, e cada vez agita a cabeleira, dela faz brotar uma chama mais viva. Cai enfim ao chão vencida pelo sofrimento, irreconhecível para outro qualquer que não fosse o pai". (idem. pág. 53)

Medeia, após saber da notícia, resolve matar seus filhos para atingir Jasão da pior forma, para que ele nunca mais esqueça o sofrimento que ela passou. Jasão se desespera ao saber que seus dois filhos foram mortos pela mãe.

"Coro: Miserável! Tens então, um coração de pedra ou de ferro para ferir com tua mão teus próprios filhos, fruto de tuas entranhas?" (idem pág. 53)

3.6 Gota d?água, uma Tragédia Carioca.
Na Tragédia Gota d?água encontra-se Joana, que foi abandonada por Jasão após este escrever um samba e se tornar famoso (o samba é Gota d?água), resolvendo abandoná-la para viver com Alma, filha do pequeno empresário Creonte, que é dono da vila na qual Joana mora com seus dois filhos e mais os amigos.
Joana, mulher de temperamento forte, encontra-se humilhada com a traição de Jasão, pois fora ela que praticamente fez dele um homem. As amigas de Joana acham um absurdo o ocorrido.

"Corina. Pois ela está como o diabo quer
Comadre Joana já saiu ilesa
de muito inferno, muita tempestade
Precisa de mais que uma calamidade
pra derrubar aquela fortaleza
Mas desta vez... acho que não aquenta,
pois geme e treme trinca a dentadura.
E, descomposta, chora e se esconjura
E num soluço desses se arrebenta.
Não dorme, não come, não fala certo"
(PONTES, Paulo. BUARQUE, Chico. Gota d?água. Pág. 25 e 26)


Observa-se que Joana e Jasão são o assunto da vila e em todos os botequins da região. Ela não aceita a perda de Jasão para outra mulher. A raiva dela é tanta que seus filhos tornam-se um incômodo. Ela os culpa por ela ter envelhecido.










"Ah, os falsos inocentes!
Ajudaram a traição
São dois brotos de semente
traiçoeiras de Jasão.
E me encheram, e me incharam,
e me abriram, me mamaram,
me torceram, me secaram
me deixaram pele e osso.
Jasão não, a cada dia
parecia estar mais moço
enquanto eu me consumia".
(idem. pág. 62)

Na peça temos Egeu, um conselheiro que faz com que os outros lutem pelos seus direitos e não paguem mais nada a Creonte. Egeu é o centro político da resistência da comunidade. Jasão o conhece bem e resolve conversar com ele para que não incentive os moradores da vila a não pagarem Creonte.
Creonte vai até a casa de Joana e diz que ela não pode ficar mais naquela vila. Joana fica furiosa e faz uma invocação aos deuses para que ela consiga todas as suas vontades e destruir a vida de Jasão, Creonte e Alma.

"Para tanto Invoco o testemunho de Deus,
a justiça de Têmis e a benção dos céus ,
os cavalos de São Jorge e seus Marechais,
Hécate, feiticeira das encruzilhadas,
padroeira da magia, deusa ? demônia,
falange de Ogum, sintagmas da Macedônia".
(idem. pág.100)

Joana conta para Egeu todo o seu sofrimento e o mestre aconselha que ela fique calma e aja com total tranqulidade. No mesmo dia Jasão vai procurar Joana, dizendo que ela e os seus dois filhos têm que sair da vila. Joana fica com muita raiva de Jasão e não consegue acreditar no que ele está fazendo com a própria família. Egeu e os outros vizinhos da vila vão até Creonte para interceder por Joana, sendo que Creonte oferece todos os benefícios que eles estavam precisando na vila e ninguém fala mais nada a favor de Joana. Creonte vai até a casa de Joana para colocá-la para fora da vila; ela pede somente um dia, e ele deixa.

"Não pelo menos
me dê um dia... Um dia só, que é para eu saber
pra onde é que eu posso ir..."
(idem pág. 157)

Joana prepara o veneno para Alma. Pede desculpas por tudo que fez a Jasão, diz que isso não ocorrerá mais, pois percebe que ele só quer o bem dos filhos.



"Cuspe, veneno, tristeza,
carne , moinho, lamento,
ódio, dor, cebola e coentro,
gordura sangue e frieza,
isso tudo está no centro
de uma mesma estranha mesa
misture cada elemento --
uma pitada de dor,
uma colher de fomento
uma gota de terror,
O suco de sentimento,
raiva, medo ou desamor..."
(idem. pág. 167)


Depois de preparar o veneno, Joana manda seus filhos levarem o presente que ela havia preparado para Alma, que fica um pouco encabulada ao receber a lembrança. No momento em que ela irá provar, Creonte vê e não deixa que sua filha a coma, e expulsa as crianças, chamando a mãe deles de feiticeira. Corina os leva para casa e quando Joana descobre o acontecido fica furiosa. Resolve dar a comida envenenada aos filhos e também come junto com eles. Ambos morrem. Egeu e Corina entram com Joana e as duas crianças no colo, no meio da fala em que Creonte diz a todos que sua cadeira agora era de Jasão.



3.7 Comparação das peças
Na Medeia de Eurípedes encontra-se uma mulher que já tem um perfil traçado desde o início, pois comete assassinatos, larga sua terra em prol do amor e é capaz de qualquer coisa para satisfazer Jasão, sendo que ela não aceita que ele a tenha abandonado. Ela atinge um estado psicológico de pânico, pois é inaceitável ter tido um cúmplice em tudo e agora ele abandoná-la.

"Eurípedes consegue criar uma verdadeira heroína, uma mulher capaz de considerar sua própria indecisão como um crime". (STENGERS, Isabelle. Lembra-se de que sou Medeia ? pág. 24)




Já na releitura de Chico Buarque tem-se uma mulher que é obrigada a traçar este perfil de uma pessoa vingativa, devido a Jasão a ter abandonado depois do sucesso da sua música.

As peças ocorrem em cenários totalmente diferentes: uma na Grécia antiga, a outra no Rio de Janeiro contemporâneo em uma vila (na periferia do capitalismo imperialista). As duas obras envolvem a ganância de dois homens que tem as mesmas visões de mundo. E essa ganância é a principal causadora da destruição das famílias. Tanto que nas peças as crianças morrem pela as mãos das suas mães, que não sentem culpa por estarem matando seus filhos, pois a vingança é o que essas mulheres mais almejam.
Observa-se nas duas peças a questão da crença muito envolvida. Na Medeia de Eurípedes tem-se a questão da mitologia muito ligada à época da peça e Gota d?água traz a fé brasileira que mistura diversas culturas, não só a católica, mas também o candomblé e os deuses da mitologia. E essas questões estão bem contextualizadas no momento em que Medeia e Joana pedem ajuda aos deuses nas decisões que irão tomar.
Enquanto Egeu na Medeia é colocado como um conselheiro de verdades imutáveis, na Gota d?água, Egeu já é uma pessoa mais comum, "do povo" - ele dá conselhos e direciona as pessoas em suas decisões numa posição de inconformismo, de resistência ao poder.
As duas peças encontram-se fortemente presas à atualidade, pois a realidade está muito explícita. A todo o momento florescem com o poder a traição, a fúria e a vingança, sentimentos incontroláveis que esses dois autores souberam retratar de forma interessante e bastante polêmica. Essas mulheres não se vingaram somente por terem sido traídas e sim por tudo a que elas fizeram por eles.
Chico Buarque está sempre resgatando as idéias de Eurípedes em a Gota d?água, no que se diz a respeito de sociedade, pois há um envolvimento notório da mulher, colocando a de pouca utilidade.
Quando Eurípedes retrata que Medeia cometeu uma série de assassinatos e matou os próprios filhos isso é de extrema importância, porque para a cultura grega a mulher seria incapaz de cometer tal atrocidade e também para o povo grego os filhos são a continuação do pai. Para Medeia, matar os filhos era certeza que Jasão não teria mais continuidade. E Medeia comete todos os crimes sem medo de como seria vista pela sociedade. Quando Jasão chora ao ver os filhos dele mortos, ele não chora pela perda das crianças, mas sim por não ter mais descendentes.
Chico Buarque já está numa época mais atual, retratando que Jasão se separa de Joana para ter uma ruptura do meio em que ele vivia quando era casado, pois quando ganha fama não pode ficar ao lado daquela mulher que não faria parte daquele meio que ele iria passar a frequentar. Tem-se a questão que Karl Marx retrata que é a alienação do homem e Chico faz referências a isso e para Jasão era necessário fortalecer sua nova posição na sociedade, ele se relaciona com a filha de um comerciante, pois era a única forma dele conseguir, se infiltrar no meio de pessoas de poder aquisitivo melhor do que ele se encontrava casado com Joana. Percebe-se que Chico Buarque retrata da perda de identidade dos cidadãos que estão inseridos em uma sociedade capitalista, pois o homem passa a ser visto pelo o que ele tem e não pelo o que ele é.
Eurípedes atribui a esta mulher as características de uma criatura de força exorbitante e que busca a liberdade e a justiça pelas próprias mãos, deixando de ser frágil como era vista pela sociedade, tornando-a inteligente e audaciosa. Porque tudo que Medeia queria era a vingança.
A sociedade passa a ver Joana como uma mulher frágil e indignada por causa do abandono do marido, que ficou sem rumo ao perdê-lo. Tem-se o mesmo relato na tragédia de Eurípedes.
Chico Buarque envolve a visão de outros personagens na tragédia, pois Jasão não é mais bem visto quando abandona a mulher que o fez crescer.

3.8 Visão de Chico e como ele desenvolve a problemática da mulher a partir e sua concepção de catarse.

Chico Buarque, quando usa de releituras em suas peças, ironiza os finais provocando uma inquietação e a sensação de não realização ao espectador, pois reverte o papel da catarse.
Para o autor a relação da mulher vai ser sempre com o homem e não com o social, como se vê na Gota d?água, onde as falas de Joana são com Jasão e sempre separadas da questão social (Jasão com seu público e a sua música). Chico Buarque separa o político do amoroso em suas peças; não há essa relação nas peças de Brecht e de Eurípedes.
A questão da mulher nas peças de Chico Buarque é sempre voltada a critica de como eram vistas, seus comportamentos.
Tanto na peça da Gota d?água como na canção "Geni e o Zepelim" temos mulheres que o espectador, quando entra em contato, torce para que elas sejam vingadas, devido a todo o drama que elas sofrem. Sendo que Chico Buarque quebra essa esperança. Tem-se neste momento a quebra da Catarse Aristotélica e ainda a ironia à possibilidade de modificação de realidade, como queria Brecht.
Quando Joana tem o poder em suas mãos de matar somente a seus filhos, ela se mata junto.

Jasão senta; um tempo; ouve-se um burburinho de vozes; entra EGEU carregando o corpo de JOANA no colo e CORINA carregando o corpo dos filhos, e põem os corpos na frente de Creonte e Jasão; (PONTES, Paulo. BUARQUE, Chico. Gota d?água Pág. 100)

E quanto a Geni de Chico Buarque, que poderia ter se vingado de todos, pois chega a ela a oportunidade com que Jenny de Brecht, tanto sonha, acredita que tudo vai melhorar. E salva a cidade, que no fim se mostra tão ingrata quanto antes.

Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
(Trecho da música Geni e o Zepelim)

Na contramão da concepção de catarse para Aristóteles, Chico Buarque quebra totalmente essa expectativa de um alívio no decorrer da peça.
A releitura da peça de Eurípedes e na canção de Brecht é uma forma de ironizar os finais que são esperados. Chico Buarque coloca finais que chocam a todos causando uma sensação de dever não cumprido.
A sociedade que Chico Buarque retrata é mais distante da de Eurípedes que da de Brecht, pois na época de Chico vivia-se em uma ditadura em que todo o cidadão é submisso ao poder. E entre os cidadãos, temos essas mulheres submissas aos seus sentimentos, sem força para lutar contra aquela situação que se encontravam, a quem a melhor solução seria se entregar a um fim trágico.
CONCLUSÃO
Neste trabalho observou-se como foi utilizada a Catarse, de onde originou-se este conceito, cunhado por Aristóteles para as tragédias e como outros escritores utilizaram dessa catarse para elaborar suas peças.
Conclui-se que Chico Buarque quebra a regra da Catarse Aristotélica deixando os espectadores sem o alívio proposto por Aristóteles, e também privado da possibilidade de mudança antevista por Brecht.
Chico Buarque faz com que a peça tome outro rumo, com finais que não são desejados pelo público ele retrata a questão que Karl Marx coloca, pois até que momento vai à alienação do ser humano. E como esse sentimento de revolta pode provocar a catarse no espectador.
Chico retratou em suas releituras a exclusão das mulheres. Como o sentimento e social não se envolvem eles se encontram separados em suas peças. A perda de identidade política se concentra na questão de Jasão, que deixou seu meio social para se envolver com pessoas que só ambicionavam status e poder.
Nas obras analisadas de Chico Buarque encontra-se sempre uma sociedade submissa ao capitalismo, com pessoas que perdem seus valores em prol de riquezas e pelo o que o outro pode retribuir.


Referências Bibliográficas
BOLOGNESI, Mário Fernando. Brecht e Aristóteles. Disponível em: . Acesso em: 16 de Jun 2010

Eurípedes. Medeia. Martin Claret. 431 a.c

FERREIRA, José Ribeiro. A democracia na Grécia. Disponível em: Acesso em: 16 de mai 2010

CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré socráticos a Aristóteles, volume 1. 2ed. rev. e ampl. ? São Paulo Companhia das letras. 2008.

COLLING, Ana Maria. AS MULHERES E A DITADURA MILITAR NO BRASIL.
Disponível em: .
Acesso em: 24 Abr 2010.

GUERRA, Ruy. Vida e Obras de Chico Buarque. Disponível em: . Acesso em: 14 Mai 2009.

LOPES, Giovana Santos. Medeia de Eurípedes: um olhar sobre tradição e ruptura, na tragédia grega. Disponível em: . Acesso em: 21 Jun de 2010.)

MARX, Karl. "Os Pensadores. Abril. 1845.
PONTES, Paulo; BUARQUE, Chico. Gota d?água. Civilização Brasileira. 1973.
SANTOS, Giovana Gonçalves (UEM); SILVA, Marisa (UEM), Medeias à caracterização da personagem feminina nas tragédias de Eurípedes e Sêneca. Disponível em: Acesso em: 24 Abr 2010.

STENGERS, Isabelle. Lembra-se de que sou Medeia
TADEU, Felipe BNB, Há 30 anos, era lançada a trilha sonora da "Ópera do Malandro" Disponível em: . Acesso em: 20 de Mai 2010

WILSON, Pedro (UCG / UFG). Bertolt Brecht: Exemplo de Reflexão e Ação para Mudar o Mundo, por Pedro Wilson. Disponível em: Acesso em: 23 Mar 2010
Autor: Thaís Nopres


Artigos Relacionados


Uma CanÇÃo De Ouro. Uma ComposiÇÃo De GÊnio

Viva Chico Buarque De Hollanda E Do Brasil

Leite Derramado, De Chico Buarque: Uma Análise Estrutural Da Narrativa

A História De Chico Buarque

Resenha CrÍtica Da Obra: MedÉia De EurÍpedes

O Político Se Faz Presente Na Obra De Chico Buarque De Holanda Mesmo Em Um Breve "recesso" Dos Palcos (1976-1984)

A ImportÂncia Da RetÓrica E Dos Conceitos-chave AristotÉlicos Para Os Estudos LiterÁrios