PRACATUM: UMA MILITÂNCIA NEGRA SOCIAL



A proteção social vem ocorrendo desde as sociedades tradicionais até a atualidade, visando minimizar e/ou excluir o risco social ? qualquer evento que comprometa o bem-estar e a segurança social. Antigamente, criaram-se redes de interdependência pautadas em inscrições territoriais, paroquiais, familiares e sociais para assegurar a proteção aos carentes. A sociedade era um sistema autorregulado ou homeostático que oferecia uma assistência mínima, priorizando a coesão do grupo.

Nessa solidariedade "natural" em que a "família-providência" garantia a segurança econômica, devido às práticas com funções protetoras e integradoras, imperava a noção de grupo e o sentimento de pertencimento. Sendo assim, através da "sociabilidade primária", a assistência era uma "proteção próxima" aos desfiliados incapazes de prover suas necessidades por seus próprios meios (CASTEL, 1998).

Com o desenvolvimento das cidades e, por conseguinte, o crescimento das desigualdades econômico-sociais, o princípio da assistência com base na proximidade tornou-se cada vez mais difícil. Havia maior complexidade nas relações e urgia um atendimento mais sistemático. Assim, emergiu o dever do Estado na garantia dos direitos sociais. A intervenção centralizadora estatal, entretanto, mostrou-se ineficaz e impotente para atender as demandas.

Na tentativa de preencher esta lacuna estatal, a participação civil interveio significativamente. Inúmeras lutas operárias e sindicais foram travadas, fortaleceram-se vários grupos sociais, criaram-se muitas Organizações Não Governamentais (ONGs); enfim, crescia vertiginosamente uma força mobilizadora que assestava ações sociais transformadoras. Infelizmente, o Estado, ao invés de buscar uma parceria para a tão sonhada gestão democrática, isenta-se do seu dever social.

Destarte, esta descentralização na gestão de políticas sociais oportunizou a expansão e a proliferação dessas ONGs. Segundo Tenório (2005), tem crescido muito no Brasil e no mundo o número e o espectro de organizações preocupadas com a ação social transformadora e baseadas em valores como solidariedade e confiança mútua, que buscam, por meio de ações locais e globais, respostas para os problemas sociais.

Atualmente, no Brasil, elas são onipresentes em diversas áreas (educação, saúde, meio ambiente, entre outras) e visam formular e executar projetos voltados para inúmeros grupos sociais (adolescentes, mulheres, negros, índios, homossexuais, idosos, deficientes, viciados etc.). Os impactos, aqui entendidos na perspectiva de Chris Roche (2002, p. 36) como "mudanças significativas ou permanentes nas vidas das pessoas, ocasionadas por determinada ação ou série de ações", são cada vez maiores.

As Organizações Não Governamentais, literalmente, são instituições civis independentes da esfera estatal. Esse conceito abrange os mais diversos institutos, associações e fundações com distintos objetivos e atuações. Um estudo realizado pela Consultoria do Senado Federal, em 1999, definiu-as como um grupo social organizado, sem fins lucrativos, constituído formal e autonomamente, caracterizado por ações de solidariedade no campo das políticas públicas e pelo legítimo exercício de pressões políticas em proveito de populações excluídas das condições da cidadania (ABONG, 2010).

O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, conceitua-as como entidades sem fins de lucro cujo objetivo fundamental é desenvolver uma sociedade fundada nos valores da democracia ? liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade. Ele as caracteriza pela sua vocação política, por sua positividade política e as define como comitês de cidadania que surgiram para ajudar a construir a sociedade democrática (ABONG, 2010), dos pontos de vista político, social, econômico e cultural (TENÓRIO, 2005).

No Brasil, elas surgiram a partir de 1970 em sintonia com as demandas e dinâmicas dos movimentos sociais, com ênfase nos trabalhos de educação popular e de atuação na elaboração e controle social das políticas públicas (ABONG, 2010). Em plena ditadura militar, surgem estas instituições com características próprias e autônomas que construíram seus discursos, criaram as suas missões, definiram seus estatutos, objetivos, população-objetivo, estratégias, organogramas, cronogramas e planejamentos.

A Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG) fez um levantamento do perfil das associadas. Quanto às principais áreas temáticas priorizadas, têm-se as seguintes áreas temáticas (ABONG, 2004):

Educação (47,03%)
Organização popular/ Participação popular (40,59%)
Justiça e promoção de direitos (29,70%)
Fortalecimento de outras ONGs/ Movimentos populares (26,73%)
Relação de gênero e discriminação sexual (26,24%)
Trabalho e renda (23,27%)
Saúde (22,28%)
Meio ambiente (20,30%)
Arte e cultura (13,37%)
Comunicação (13,37%)
Agricultura (12,38%)
DST/AIDS (11,39%)
Questões urbanas (9,90%)
Segurança alimentar (9,90%)
Assistência social (8,91%)
Questões agrárias (6,93%)
Desenvolvimento da economia regional (6,93%)
Discriminação racial (5,45%)
Orçamento público (4,46%)
Segurança pública (3,47%)
Relações de consumo (2,97%)
Comércio (2,48%)

Essa heterogeneidade temática ratifica que

a pobreza não se resume à ausência de renda, mas envolve um conjunto de elementos que expressa sua complexidade e multidimensionalidade, entre os quais a destituição de poder, trabalho e informação, a ausência nos espaços públicos, o (não-) acesso e usufruto dos serviços públicos básicos. A pobreza, mais do que monetária, é relação social que define lugares sociais, sociabilidades, identidades. (RAICHELIS, 2006)

Quanto à população-objetivo, os (as) principais beneficiários (as) são (ABONG, 2004):

Organizações populares/ Movimentos sociais (61,88%)
Mulheres (49,50%)
Crianças e adolescentes (43,56%)
População em geral (31,68%)
Trabalhadores (as) rurais/ Sindicatos rurais (27,33%)
Outras ONGs (26,73%)
Professores (as) (22,28%)
Estudantes (19,31%)
Negros (as) (15,84%)
Moradores (as) de áreas de ocupação (12,38%)
Trabalhadores (as) urbanos (as)/ Sindicatos urbanos (10,40%)
Portadores (as) de HIV (7,92%)
Povos Indígenas (5,94%)
Gays e lésbicas (4,46%)
Portadores (as) de necessidades especiais (físicas e mentais) (2,97%)
Terceira idade (2,97%)

Os impactos na vida deles são amplamente discutidos nos mais diversos tipos de avaliações dos projetos sociais, procurando determinar em que medida o projeto alcança seus objetivos e quais são seus efeitos secundários (previstos ou não) (COHEN; FRANCO, 2004). Conferir ao impacto a classificação de positiva ou negativa é muito pouco e imediatista! É preciso averiguar se os envolvidos tornaram-se cidadãos ativos e politizados ou foram meros executores de tarefas.

A relação clientelista só comunga com a tese que "sataniza tudo o que vem do Estado e santifica-se tudo o que provém da sociedade civil; aquele seria expressão de dominação, esta é vista como portadora da emancipação" (MONTAÑO, p.275). Ampliar uma rede filantrópica em que a ONG tem um papel substitutivo pela ineficiência estatal que oferece um recurso e não muda em nada a situação-problema é caminhar na contramão de uma possível atuação significativa por parte de cidadãos críticos na luta pelos seus direitos.

Fazer só o que o governo não faz é inclusive ser cúmplice da teoria do Estado mínimo que oferece migalhas através das políticas compensatórias e focalizadas. É preciso oportunizar um espaço de militância dentro da ONG, aprofundando as discussões iniciadas pelos movimentos sociais para uma atuação cidadã consciente. Urge a perpetuação de agentes de capacitação política para manter acesa a chama da força mobilizadora que assesta ações sociais transformadoras.

Dentre as inúmeras ONGs baianas que buscam manter a resistência negra através dos tambores, usando a música para melhorar o meio social e tornando a cultura o principal patrimônio para o desenvolvimento social e a sustentabilidade da comunidade local, funda-se, em 1994, a Associação Pracatum Ação Social (APAS). Esta instituição foi criada por Antônio Carlos Freitas, Carlinhos Brown, no bairro em que ele nasceu e se criou, o Candeal (região de negros livres desde o século XVIII).

Carlinhos Brown, ícone da cultura afro-brasileira, não legitimou a importância da música como uma manifestação militante da etnicidade através de teses e/ou teorias acadêmicas. Ele, um mestre da vida cultural, construiu na prática o seu conhecimento e tornou-se um autêntico multiplicador. A sua Associação ? premiada nacional e internacionalmente ? enquanto movimento artístico-social, ressignifica o legado cultural africano e prima, nas atividades realizadas, pela construção da cidadania por meio da identidade racial, do pensamento crítico e da autoestima elevada.

A missão da APAS é a melhoria da qualidade de vida dos moradores através do desenvolvimento comunitário e de programas educacionais e culturais. Para desenvolvê-la, promovem-se inúmeras as atividades (BROWN, 2009), a saber:

?Escola Infantil Virgen de la Almudena: educação infantil para crianças de 02 a 05 anos que agrega os valores da comunidade e traz em sua pedagogia a arte e a musicalidade como eixo norteador;
?Menino é Bom: oficinas de capoeira, dança e literatura afro brasileira para crianças de 07 a 12 anos em parceria com a UNESCO/ Criança Esperança;
?Escola Pracatum: ensino de música profissional;
?Pracatum Moda: cursos de capacitação na área de costura e moda, com duração de cinco meses;
?Pracatum Inglês: curso de língua inglesa em parceria com a Associação Cultural Brasil Estados Unidos ? ACBEU e o grupo Orizonia;
?Plano de Desenvolvimento Comunitário que objetiva implementar no Candeal um plano de desenvolvimento socioeconômico a partir das aspirações e especificidades da comunidade.

A Pracatum oferece uma excelente estrutura para os seus cursistas. Além das salas de aulas, há salas individuais, para práticas em grupo, de leitura, de instrumentos, estúdio de gravação, laboratório de informática, brinquedoteca, área verde, refeitório e cantina. O ambiente é climatizado, agradável e confortável. Vale ressaltar que a biblioteca é um patrimônio aberto a todos os membros da comunidade.

A base metodológica é bem libertadora, porque o idealizador e os demais atores sociais fazem juntos o aprendizado, valorizando o diálogo, a reflexão e a criatividade; assim, vê-se a libertação como uma conquista, não uma dádiva (Freire, 1970). Nesta ONG (BROWN, 2009),

a metodologia utiliza-se de referências e práticas culturais pertinentes ao universo do aluno, buscando incentivá-los para que se apropriem e produzam novos conhecimentos, reformulando comportamentos e traduzindo-os na formação de hábitos e internalização de novos valores.

Desde a criação, desenvolve-se um trabalho de Geração de Renda, Saúde e Meio Ambiente, Educação e Cultura, Organização Comunitária e Urbanização (equipamento comunitário, infraestrutura e habitação), fundamentado no tripé "educação e cultura, mobilização social e urbanização". Através de uma gestão comunitária democrática, o Programa Tá rebocado exemplifica esta assertiva, dando voz aos atores sociais (BROWN, 2009):

Os moradores do bairro do Candeal são a base legitimadora, identificando as necessidades vivenciadas e oferecendo soluções práticas e tangíveis. O Tá Rebocado baseia suas ações em pesquisa de opinião, cadastro censitário, reuniões comunitárias semanais, estudos socioeconômicos e registros fotográficos.
.
O engajamento da comunidade através da participação ativa nas intervenções realizadas tornou o bairro do Candeal em um modelo a ser seguido. Essa gestão conquistou um merecido reconhecimento nacional e internacionalmente. Dentre os prêmios (BROWN, 2009), destacam-se CNN-TIME (1999), Certificado de "Best Practice" do Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas/ UN-Habitat (2002), Unesco (2002), Prince Claus Awards (Holanda) (2003), Cooperación Internacional Caja Granada (2003), Ordem do Mérito Cultural (Ministério da Cultura) (2004), Cooperação Internacional (2004), Natal Sem Fome (2005), Caixa Econômica Federal (2006) e 12 Meses 12 Causas Telecinco (Espanha) (2007).

Todos os grupos musicais da APAS (Pracatum, Ebanóises e Hip Hop Roots) têm por escopo resgatar a identidade cultural baiana, compondo, inovando, mesclando com os ritmos de matriz africana e criando novas batidas. As letras passeiam da história da África até a do Candeal. Da percussão à flauta, da MPB à música erudita, os músicos oferecem aos ouvintes um delicioso e genuinamente original banquete musical.

Assim, esta ONG valoriza a cor local e mobiliza os participantes e toda a comunidade a serem agentes no processo de desenvolvimento pessoal e sustentabilidade local. Na Pracatum, os atores sociais estudam, escrevem, criam, cantam, militam e semeiam um discurso político, identitário e de resistência, mantendo tênue o vínculo com a África. Destarte, esta ONG promove uma militância negra social.

REFERÊNCIAS

ABONG. Disponível em: http://www.abong.org.br. Acessado em: 15 jun. 2010.

BROWN, C. Mosaico: trabalho social ? Associação Pracatum. Disponível em: http://www.carlinhosbrown.com.br. Acessado em: 05 jun. 2010.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

COHEN Ernesto; FRANCO Rolando. Avaliação de Projetos Sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1970.

MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e questão Social ? Crítica ao padrão emergente de intervenção social. Cortez, São Paulo, 2002.

RAICHELIS, Raquel. Gestão pública e a questão social na grande cidade. Lua Nova. 69: São Paulo, 2006

ROCHE, Chris. Avaliação de Impacto dos trabalhos de ONGs ? Aprendendo a valorizar as mudanças. São Paulo: Cortez, 2002.

TENÓRIO, Fernando G. (org.). Gestão de ONGs ? Principais Funções gerenciais. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

Autor: Mabel Freitas


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