Novas tecnologias e ensino de línguas: relações entre o "dizer" e o "fazer" de documentos governamentais de referência para o ensino de línguas



Novas tecnologias e ensino de línguas: relações entre o "dizer" e o "fazer" de documentos governamentais de referência para o ensino de línguas


RESUMO: Com este artigo pretendo problematizar o "dizer e o fazer" de documentos de referência para o ensino de línguas e suas relações com o modelo pedagógico do curso de língua francesa on-line Reflets-Brésil, presente no site FrancoClic. O site surgiu de uma parceria entre o MEC e a Embaixada da França, para atender pessoas interessadas no ensino e aprendizagem da língua francesa. Para tanto, discuto as concepções de língua, ensino, aprendizagem e a utilização das novas tecnologias do curso Reflets-Brésil. Na sequência, relaciono as concepções subjacentes ao modelo pedagógico do curso (fazer) aos princípios dos PCN de línguas estrangeiras e do Quadro Europeu Comum de Referência para o Ensino de Línguas (dizer). Minhas principais críticas recaem sobre algumas incoerências entre a incorporação das TIC como inovação das técnicas de educação. E, ainda, sobre o contra-senso existente entre o "dito" sobre o ensino e aprendizagem de línguas, em documentos governamentais de referência para o ensino de línguas e, o que está sendo "feito" em cursos de línguas on-line. Em relação ao curso Reflets-Brésil e os "dizeres" dos documentos dos países envolvidos em sua elaboração, percebo que existe uma dissonância quanto aos propósitos apresentados por eles e o curso.

PALAVRAS-CHAVE: PCN ; Quadro Europeu Comum de Referência; Novas Tecnologias.

Introdução

O site FrancoClic é um veículo de divulgação da Língua Francesa, criado por meio de uma parceria entre o Ministério da Educação (MEC) e a Embaixada da França no Brasil. Segundo a descrição, na página inicial, é "destinado particularmente aos alunos e professores interessados na aprendizagem e no ensino da língua francesa e das culturas francófonas". É um site composto por um curso de autoaprendizagem: Reflets-Brésil; por módulos de utilização em sala de aula: Br@nché!; módulos de especialidade agrícola: Agriscola e de descoberta: le monde francophone d'un clic, como representados na Figura 1.

FIGURA 1: Tela inicial do site FrancoClic

O foco deste artigo é o curso Reflets-Brésil que se divide em vinte e quatro lições, acompanhadas de vídeos cujo formato lembra o de telenovelas. Por se tratar de um curso de autoaprendizagem, não há uma duração determinada, sendo o aprendiz quem define como estudar as lições, de acordo com suas preferências. Os espaços interativos permitem consulta a links que servem de suportes pedagógicos, tais como dicionários e gramáticas. As línguas francesa e portuguesa mediam a comunicação. É um curso livre e gratuito, sendo necessário para sua realização apenas conectar-se à internet e acessar o site do curso.
É certo que a iniciativa de se criar um curso de línguas on-line como o Reflets-Brésil vai ao encontro dos objetivos da Secretaria de Educação a Distância do Brasil (SEED), que tem por objetivo atuar "como um agente de inovação tecnológica nos processos de ensino e aprendizagem, fomentando a incorporação das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e das técnicas de educação a distância aos métodos didático-pedagógicos" (BRASIL, 2006). No entanto, minhas críticas recaem sobre algumas incoerências sobre a incorporação das TIC como inovação das técnicas de educação. E, ainda, sobre o contra-senso existente entre o "dito" sobre o ensino e aprendizagem de línguas, em documentos governamentais de referência para o ensino de línguas, e o que foi "feito", ou seja, o encontrei no curso.
Tanto os PCN de Línguas Estrangeiras quanto o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas ? Aprendizagem, Ensino, Avaliação (QECR) são documentos, que trazem uma nova concepção de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras. São referenciais de ensino e aprendizagem que prezam pela língua como um instrumento de comunicação, uma comunicação para vida, que leva em conta vários aspectos relacionados ao ato comunicativo. Dão o devido valor ao ensino normativo da língua, porém não o encerram à prescrição de regras e a manipulação de comportamentos.
Os PCN de Línguas Estrangeiras afirmam que o objetivo de se conhecer e usar uma língua estrangeira é fazer dela um instrumento de acesso a informações e outras culturas (BRASIL, 2000). Isso quer dizer que o ensino de línguas estrangeiras não deve restringir-se à prescrição de modelos gramaticais, nem destacar a norma culta e a modalidade escrita da língua (BRASIL, 2010, p. 28). Discute, ainda, que o desenvolvimento da competência gramatical não é suficiente para que o aprendiz entenda e se faça entendido, ela é uma das competências entre tantas outras importantes competências necessárias no ato comunicativo. Além da capacidade de compor frases, é preciso saber adequar os enunciados ao contexto de produção.


As relações entre o curso Reflets-Brésil e os documentos governamentais

Mesmo todos os recursos técnicos, informáticos e metodológicos do curso estando voltados para uma apresentação agradável de aspectos culturais, interação entre as personagens e entre os apresentadores do curso, nele o aprendiz não tem espaço para criar, agir e conceber uma realidade que o proporcione uma formação mais abrangente e, ao mesmo, tempo sólida como sugerido pelos PCN de Línguas Estrangeiras (BRASIL, 2001, p.26).
Os recursos audiovisuais são utilizados para apresentar ao aprendiz (objetivando, também, envolvê-lo com o tema estudado) um cenário, ou seja, um contexto de comunicação. A Figura 2 demonstra este aspecto, durante o vídeo do episódio. Nele pessoas encenam situações que poderiam ser comuns ao cotidiano do aprendiz. No entanto, uma das falhas recai sobre a mera exposição, o aprendiz não tem a oportunidade de colocar em prática o que lhe é exposto, pois as únicas atividades que compõem as lições requerem que ele demonstre a quantidade de aspectos linguísticos que fora capaz de assimilar, como demonstrado na Figura 3.


























Figura 2: Trecho do vídeo do Reflets-Episóde


Figura 3: Atividade do Reflets-Episóde

Outro aspecto importante, sobre o papel dos órgãos governamentais, para o modelo didático do curso Reflets-Brésil são as competências e habilidades delineadas pelos PCN a serem atingidas nos cursos de línguas (BRASIL, 2000, p.29).
Em síntese elas são sete:
1- Saber distinguir entre as variantes linguísticas;
2- Escolher o registro adequado à situação na qual se processa a comunicação;
3- Escolher o vocábulo que melhor reflita a ideia que se pretenda comunicar;
4- Compreender de que forma determinada expressão ser interpretada em função de aspectos culturais e/ou sociais;
5- Compreender em que medida os enunciados refletem a forma de ser, pensar, agir e sentir de quem os produz;
6- Utilizar os mecanismos de coerência e coesão na produção de Língua Estrangeira (oral e/ou escrita).
7- Utilizar as estratégias verbais e não verbais para compensar as falhas na comunicação, para favorecer a efetiva comunicação e alcançar o efeito pretendido.

Percebo que, mesmo havendo a predominância das concepções estruturalista de língua, de ensino e aprendizagem, o curso aproxima-se de algumas das almejadas habilidades e competências do documento, mas falha naquelas que requerem interação e produção, como as descritas pelos números 6 e 7.
Em relação ao Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas ? Aprendizagem, Ensino, Avaliação, entre tantos aspectos, chama-me a atenção a visão de aprendiz no documento:

O aprendente da língua torna-se plurilingue e desenvolve a interculturalidade. As competências linguísticas e culturais respeitantes a uma língua são alteradas pelo conhecimento de outra e contribuem para uma consciencialização, uma capacidade e uma competência de realização interculturais. Permitem, ao indivíduo, o desenvolvimento de uma personalidade mais rica e complexa, uma maior capacidade de aprendizagem linguística e também uma maior abertura a novas experiências culturais (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p.73).

Trata-se de uma visão de aprendiz sob a concepção sóciointeracionista de ensino e aprendizagem de língua, em que aprender uma língua constitui-se um processo de construção de conhecimentos, fundado nas experiências advindas da interação (VYGOTSKY, 2001). No entanto, esta concepção não é aplicada ao curso, que é todo desenhado sem nenhuma interação entre pares. Existe no curso a intenção de aproximar o aprendiz aos aspectos culturais da França, como por exemplo, as encenações que contam com gravações na capital parisiense; a abertura das lições, que são marcadas com cenas do cotidiano francês; os apresentadores possuem "atitudes" parecidas com a de jovens franceses. Porém, tudo é apresentado passivamente ao aprendiz, ele não tem espaço, nem pares para compartilhar suas impressões.
Há, ainda, no documento europeu menção a atividades para o desenvolvimento de estratégias comunicativas que não requerem a interação, o que poderia justificar essa falta no curso Reflets-Brésil.

[...] quando o discurso é gravado ou transmitido, ou quando os textos são expedidos ou publicados, os que produzem estão separados dos que recebem, podem não se conhecer, ou pode nem sequer ter a possibilidade de responder. Nestes casos, o acontecimento linguístico pode ser entendido como dizer, escrever, ouvir ou ler um texto. Na maioria dos casos, o utilizador como falante ou escrivente produz o seu próprio texto para exprimir os seus próprios significados. Noutros, actua como um canal de comunicação (muitas vezes, mas não necessariamente, em línguas diferentes) entre duas ou mais pessoas que, por qualquer razão, não podem comunicar directamente. Este processo, a mediação, pode ser ou não interactivo (CONSELHO DA EUROPA, 2000, p.89).


No entanto, mesmo o documento destacando alguns traços de situações em que o aprendiz pode desenvolver estratégias comunicativas sem interação, o que pode vir ocorrer no curso Reflets-Brésil, não creio que esteja de acordo com as concepções de língua, ensino e aprendizagem subjacentes ao modelo pedagógico do curso. A meu ver, o cerne do QREC é a língua como um instrumento de comunicação sóciocultural. Mesmo que o aprendiz depare-se com atividades, por meio das quais ele não necessite de interação, para o desenvolvimento de estratégias comunicativas, ele precisa ter espaço para criação, o que não ocorre durante o curso Reflets-Brésil.

Considerações

Assim, o que percebi em relação ao Reflets-Brésil e os documentos PCN e QREC, é que existe certa dissonância quanto aos propósitos apresentados pelos documentos e o curso. Tanto as Tecnologias de Informação e Comunicação, como as atuais diretrizes para o ensino de línguas reclamam novos paradigmas educacionais, portanto é papel fundamental do Estado se comprometer em colocar em prática recursos que auxiliarão aprendizes a desenvolver suas competências comunicativas, também em cursos de línguas on-line.
Num mundo cada vez mais tecnológico, onde se requer a inclusão dos cidadãos, é responsabilidade do Estado prover com a melhor qualidade possível, o acesso a uma educação digital que de fato melhore e amplie capacidades e potencialidades do seu povo. Assim como nas palavras de Behar (2006) em relação aos novos paradigmas educacionais:

Será preciso dar foco à construção, à capacitação, à aprendizagem, a educação aberta e à distância, na gestão do conhecimento. Assim, conceitos como construção do conhecimento, autonomia, autoria, interação, construção de um espaço heterárquico, de cooperação, respeito mútuo, solidariedade; centrado na atividade do aprendiz, identificação e solução de problemas passam a ser os alicerces deste novo modelo que está emergindo (Behar 2006. p. 11).


Modelo esse que não deve fundamentar-se na manipulação de comportamentos e falta de espaços para produção. Cursos on-line como o Reflets-Brésil são instrumentos que podem ser utilizados como forma de contribuição para a educação linguística, no entanto creio na importância de mais pesquisas, esforços e comprometimento com a educação on-line para que, cursos como este instigue o desenvolvimento de capacidades comunicativas dos aprendizes, envolvendo todas as dimensões implicadas no processo, principalmente a interação.


Referências

BEHAR, P. A. (org.) Modelos Pedagógicos em Educação a Distância. Porto Alegre: Artmed, 2009. 316 p.


BRASIL, Secretaria de Educação a Distância. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=289&Itemid=822. Acesso em: 17 maio 2009.


______, Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio. Disponível em: portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf. Acesso em: 24 julho 2009.


CONSELHO DA EUROPA, Quadro europeu comum de referência para as línguas: aprendizagem, ensino e avaliação. Disponível em: http://www.dgidc.min-edu.pt/recursos/Lists/Repositrio%20Recursos2/Attachments/724/Quadro_Europeu_total.pdf . Acesso: 11 em janeiro 2008.


VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 1993. 236 p.













Autor: Lara Brenda C. T. Kuhn


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