A Prerrogativa de função em confronto com o Princípio constitucional da igualdade nos crimes comuns



A jurisdição via de regra é atividade exercida exclusivamente pelos integrantes do Poder Judiciário, embora a Constituição Federal de 1988 estabeleça certas exceções, como por exemplo, ao determinar que cabe ao poder legislativo julgar o chefe do poder executivo nos crimes de responsabilidade. Essa exceção visa garantir a imparcialidade do julgamento em consonância ao principio da separação de poderes.

Da mesma forma que a Constituição Democrática fixou o julgamento do Presidente da República pelos membros do Senado Federal, as Constituições Estaduais fixaram regra semelhante para os crimes de responsabilidade praticados pelo Governador, atribuindo competência de julgamento à Assembléia Legislativa do respectivo estado membro, e da mesma forma os Prefeitos, que deverão ser julgados pelas respectivas Câmaras Municipais.

Em relação aos crimes comuns, o Código de Processo Penal estabeleceu em seu artigo 84, os critérios sobre a jurisdição em razão da prerrogativa de função, e posteriormente com a Constituição de 1988, tal critério apenas se repetiu.

O iurisdictio (poder de ditar o direito) todo magistrado possui, embora hajam competências diferenciadas devidamente fixadas em normas constitucionais e nas leis infraconstitucionais. A jurisdição estabelecida no artigo 69, VII, do Código de Processo Penal, será determinada em função da prerrogativa de função do agente.

Da mesma forma que existe fixação de competência em razão dos crimes de responsabilidade cometidos pelos chefes do poder executivo, os crimes comuns praticados por aqueles que exercem determinadas funções públicas também tem a jurisdição previamente delineada.

Entretanto, em que pese já estar fixada a jurisdição competente para julgar o agente público que comente o crime comum, o critério a ser adotado não deveria ser em razão da função exercida, mas sim sobre a pessoa que exerce a função, devendo desta forma prevalecer a competência para julgamento em razão da pessoa (ratione personae).

Tais sujeitos ao cometerem crimes comuns não podem ser julgados por um juiz de primeiro grau exclusivamente em razão da prerrogativa de função. Desta forma, a competência de um crime será fixada não em razão de critérios legais, tal como local do crime (ratione loci) ou da matéria (ratione materiae), mas apenas pela função que o mesmo exerce no poder público.

O critério adotado pelo legislador é errôneo, uma vez que o crime é comum, praticado pela pessoa, e não por exercer a função pública (agente público propriamente dito). Como exemplo poderia se analisar um homicídio (crime comum) praticado por um prefeito diante de uma simples desavença com seu vizinho. Não há que se falar em prerrogativa de função uma vez que o ato criminoso não foi realizado em razão da função que exerce, mas sim por questões pessoais que nada influem na atividade pública por ele exercida, e, portanto, nos mesmos moldes de qualquer outro cidadão que cometesse o mesmo crime, deve ser julgado pelo Tribunal do Júri.

Ao estabelecer que a prerrogativa de função é critério para fixação de competência, o legislador deu àqueles que são considerados autoridades, em razão do desempenho da função pública, um juízo de supervalorização que claramente viola o princípio da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição de 1988.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade(...)

Ora, igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, implica isonomia processual, que é base do Estado Democrático de Direito, e, por consequência, contrário à prerrogativa de função nos crimes comuns.

Porque determinados agentes públicos devem ter foro privilegiado? Analisando exclusivamente os crimes de responsabilidade fica evidente a necessidade de tal critério, uma vez que visa à proteção do cargo, de maneira que a responsabilidade a ser julgada é pelo cargo ocupado, não sendo a priori, possível de se exercer um juízo natural em condições de igualdade. Desta feita, a própria Constituição tratou de estabelecer normas a fim de se resguardar a competência aos tribunais especiais.

A necessidade de delimitar o foro privilegiado vem sendo demonstrada a partir de medidas tomadas pelo legislador com o intuito de filtrar o ingresso na função pública. Antes, para exercer cargo eletivo era necessário após eleito, apenas a apresentação de certidões de bons antecedentes pelo candidato. Hoje, diante da "ficha-limpa", é de se notar que não mais serão eleitos aqueles que sejam condenados por cometer crime, seja qual for a sua natureza.

Já se observa há muito tempo no Brasil, a ausência de punição de agentes públicos detentores de foro privilegiado, já que têm condições de pagar por bons advogados, que por sua vez possuem maior conhecimento técnico para impedir a punição de seus clientes. Já aquele que se encontra excluído de tal situação, como o sujeito "favelizado", sequer possui uma defesa técnica, e muito menos dinheiro para provê-la. Destarte, se torna cada vez mais clara a desigualdade entre o homem comum e o detentor de foro privilegiado, avesso a igualdade estabelecida no artigo 5º da Constituição Federal.

Outra demonstração da necessidade de se extirpar do ordenamento jurídico o foro privilegiado nos crimes comuns que não tenha ligação com a função, está na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal de interpretação a ser realizada na aplicação do artigo 84 do Código de Processo Penal e seus parágrafos (julgados inconstitucionais) conforme ADIN 2.797-2/DF:

a) o agente político, mesmo depois de afastado da função pública que atrai o foro por prerrogativa de função, deve ser processado e julgado perante esse foro, se acusado criminalmente por fato ligado ao desempenho das funções inerentes ao cargo;

b) o agente político não responde a ação de improbidade administrativa, se estiver sujeito a crime de responsabilidade pelo mesmo fato; daí porque não estará, nesse caso, abrangido pelas disposições atinentes ao foro para propositura de ação de improbidade, estabelecidas no art. 84 e parágrafos do Código de Processo Penal;

c) os demais agentes públicos, em relação aos quais a improbidade não consubstancie crime de responsabilidade, responderão à ação de improbidade no foro definido por prerrogativa de função, desde que a ação de improbidade tenha por objeto ato funcional, por ele praticado no desempenho das suas funções.

Desta forma, apenas a Constituição Federal e o Código de Processo Penal não são suficientes para fixação da competência diante do critério do foro privilegiado, existindo a necessidade de uma interpretação conforme para demonstrar que tal critério deve estar presente (no caso concreto) em conformidade com os princípios constitucionais previstos no artigo 5º da Constituição.

Autor: Márcio Fonseca


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