Democracia ou autoritarismo?



Eleição livres com direito do povo (cidadão, eleitor) votar, e por meio do voto eleger seus representantes políticos; liberdade de pensamento que se traduz em expressão de livre de represálias; liberdade de associação por ideais por categoria profissional, por associação de estudantes, por ideologias politicas partidárias; liberdade de reivindicação, de fazer greve, quando jugar necessário; liberdade de ir e vir, de participar ou não em acordo com as normas jurídicas e os princípios morais; enfim, isso bastará para caracterizar o regime democrático? E o que é democracia? Será democracia os altos índices de pobreza e miséria; a segregação de classes por fatores econômicos? Será a péssima distribuição de renda uma das características do sistema democrático? Será a desigualdade étnica, a discriminação por orientação sexual ou gênero que determina se um povo é democrático? Será que na democracia existe espaço para o desemprego, a educação publica deficitária, o sistema público médico-hospitalar decadente, a especulação imobiliária predatória e produtora de sem tetos ou que torna homens sem terra para produzir? Pode a democracia ser feita de crimes que beneficiam o sistema penitenciário com amontoados de pessoas jogadas em presídios? Afinal o que é democracia?

Democracia é um regime politico que estabelece ao povo o poder de tomar decisões por meio da representatividade politica na figura de outros cidadãos eleitos direta ou indiretamente. A etimologia da palavra democracia (demo = povo e kracia = governo) denota que o poder de governar está com o povo, com o cidadão. A ideia de democracia para os gregos, na filosofia aristotélica, se aproxima muito do termo entendido pelo senso comum, que é "governo do povo". Os romanos por sua vez tem concepções que coadunam entre o poder supremo do povo ou que deriva do príncipe e que se transmite a outrem. Já na teoria moderna em que Maquiavel se destaca, democracia é uma forma de republica em que o regime de governo popular é chamado de republica e não de democracia.

A concepção de democracia parte do pressuposto da garantia de direitos fundamentais como os direitos de liberdade de pensamento, de religião, de imprensa, de reunião, entre outros. Benjamin Constant, no discurso "A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos", enfatizava que a liberdade deve ser promovida e desenvolvida através do corpo politico que se traduz na assembleia dos cidadãos. Mas, que existe um perigo que é a liberdade de fato, ao ponto do cidadão não querer mais participar do poder politico. Constant (C1985, p.6) diz que "O perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político." Assim sendo, a obrigatoriedade passa a ser um recurso para o funcionamento da democracia. Pode parecer ambíguo, mas a liberdade politica precisa ser moldada de maneira a tornar a democracia participativa, para tal precisa submeter todos os cidadãos ao exame de seus interesses em favor do poder. O poder que na velha formula liberal emana do povo para o povo, pode ser entendida de maneira irônica: o povo como o conjunto dos cidadãos de um país elege alguns de dentro da nação para assumir o poder politico dirigente do Estado, mas ao ser empossado representante juridicamente legal o eleito passa a ter poderes que o diferencia dos que o elegeu, a maioria do povo só tomará posse do poder novamente em dado momento histórico. Então o poder que está no povo só é manifestado na sua ação eleitoral? Mas, é pelo pacto ou contrato social que o povo ver sua vontade representada no poder dado a poucos extraídos do seu meio para assumir a liderança político. É a vontade manifesta na presença de um representante eleito direta ou indiretamente que o povo assume se poder de governar.

Para Jean - Jacques Rousseau o pacto social entre os cidadãos é a única possibilidade de unir a vontade geral à vontade individual, sendo que é por meio da associação e das leis que os membros do contrato encontram a igualdade. Para o filosofo o governo democrático é vantajoso por ter sido estabelecido pela simples vontade geral. Por essa ótica, o filosofo (1999, p. 81) diz que "Um povo que não abusa do governo, jamais abusará da sua independência. Um povo que governar sempre bem, não necessitará ser governado". O que significa que o governo do povo deve ser o governo de todos e não de um só, ou seja, eleger e não governar é permitir o governo de um só.

Mas, entende Rousseau que a democracia em sua essência é impossível de ser vivida no tumultuoso mundo humano em que guerras se instalam para disputar o poder, sendo que é o ser humano dado a corrupção quando tirado da sua condição natural. Diz Rousseau (1999, p. 82) "Se existisse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Um governo tão perfeito, não convém aos homens". Disso se deduz que é impossível uma democracia por serem os seres humanos moldados pela sociedade para serem escravos entre si, fingindo viver uma liberdade que se baseia em limites para a ação cidadã. E os deuses, por sua perfeição, são incorruptíveis e assim não precisariam de freios em suas ações porque elas não afetam a vida dos outros de maneira negativa ou expõe a decadência e aos vícios o reino do qual fazem parte. Se observarmos a democracia de países corruptos entenderemos que as ações dos corruptos afetam a vida dos que na honestidade sobrevivem em condições, muitas vezes, deplorável.

O processo democrático para Rousseau só é possível se todos forem iguais. Igualdade no sentido de ausência de diferenças não tem ocorrido nos países subdesenvolvidos onde à democracia em muitos sentidos se confunde com autocracia e até mesmo com sistemas ditatoriais, em certos casos o governo se comporta como supremo, em outros são as instituições as tradutoras da democracia em má administração e de comportamentos autocráticos ou ditatoriais. Muitas vezes sem autorização do corpo político, essas instituições abusam do poder ou cometem excessos de maneira a desmoralizar a democracia ou aproximá-la da desigualdade aristocrática.

Para existir democracia de fato é preciso a democratização das riquezas, da política, do poder, da sociedade. Bobbio (1987, p. 156) diz que "(...) uma coisa é a democratização da direção política, o que ocorreu com a instituição dos parlamentos, outra coisa é a democratização da sociedade (...) numa sociedade em que a maior parte das instituições, da família à escola, da empresa aos serviços públicos, não são governadas democraticamente". Não é possível a democracia sobreviver num Estado onde a sociedade, as instituições, não se comportam de modo a fortalecer a democracia e de maneira a torná-la real. É sabido de todos dos excessos cometidos por prestadores de serviço, funcionários públicos, servidores do Estado, contra a população de um modo geral, todos os abusos que impedem de alguém ter acesso aos serviços públicos de qualidade e aos direitos resguardos em lei, uns com fins lucrativos outros por má fé, todos contribuindo para que democracia seja apenas uma palavra vazia de sentido pratico. De nada adianta apregoar liberdades sem correspondência com a realidade, liberdade está relacionada a aquisição dos bens produzidos pelo Estado para que sejam usufruídos por todos e não por minorias. Kelsen diz que o domínio da maioria deve ser soberano no sistema democrático, mas se for à minoria que se fortalece em detrimento do enfraquecimento da maioria, então a democracia passa a ser apenas uma política de compromissos.


O domínio da maioria, característico da democracia, distingue-se de qualquer outro tipo de domínio não só porque, segundo a sua essência mais intima, pressupõe por definição uma oposição - a minoria ? mas também porque reconhece politicamente tal oposição e a protege com direitos e liberdades fundamentais. Mas, quanto mais forte for a minoria, mais a politica da democracia se tornará uma politica de compromisso (...) (KELSEN. 2000, p.106)


Compromisso que pode ser entendido no pior dos sentidos, isto é, no sentido de obrigação contraída entre diferentes pessoas de se sujeitarem a um árbitro a decisão de outros. Assim, não existe democracia, quando a maioria segue as "ordens" e nada manda, nada opta, nada fala, tudo aceita e sobre toda decisão é omissa ou não pode manifestar seu pensamento porque ele não passará de um esbravejo sem eco nos recantos do parlamento que tudo dita e a todos ordena. Um bom exemplo, as leis que são decididas as escuras e divulgadas depois de prontas sem a participação da opinião popular, sem opinião popular não existe democracia. Há quem aceite o sistema democrático pela metade, entendendo que após eleito, os representantes passam a ser a voz e a opinião de quem o elegeu, e assim tudo o que eles decidem é o que a maioria deseja. Isso limita a democracia ao voto direto, as eleições, as campanhas eleitorais, enfim ao ato de votar. Tirando do conceito de democracia a ideia de governo do povo para substituí-la simplesmente por governo saído do povo, não é democracia apenas a saída de um cidadão da maioria para assumir uma função de governo e quando nela governa sem a participação dos que o elegeram. A máxima de que "o rei reina mas não governa", se aplica muito bem em sistemas democráticos insuficientes nos quais "o povo reina, mas não governa".

As decisões sobre um Estado dito democrático, precisa da participação do povo, pois é este a maioria, mas quando a participação se limita apenas a vontade dos governantes que submetem a maioria e faz obedecer seus critérios e decisões, então temos o totalitarismo instalado com roupagem de sistema democrático. Kelsen (2000, p. 181) diz que "A lei é a vontade do governante e não a do povo, pois este se submete ao governante sem participar de seu poder, que por esse motivo, é irrestrito e dotado de uma tendência inerente ao totalitarismo." Um sistema totalitário não reconhece o cidadão, não cria novas formas de legalidade, mas acreditar ser total em suas ações ao ponto de dispensar censuras por parte do povo ou dos súditos do sistema totalitário. É ainda uma farsa ideológica que promete a justiça em acordo com a humanidade, resumindo o totalitarismo ludibria com promessas e corrompe com ações. Segundo Hannah Arendt a politica totalitária não aceita censura e tão pouco oportuna o conhecimento das leis pelos cidadãos, mas promete a justiça baseada no desejo da população, enquanto que nos bastidores suas intenções são tirânicas baseadas em ilegalidades e arbitrariedades.


A política totalitária não substitui um conjunto de leis por outro, não estabelece o seu próprio consensus iuris, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade. O seu desafio a todas as leis positivas, inclusive às que ela mesma formula, implica a crença de que pode dispensar qualquer consensus iuris e ainda assim não resvalar para o estado tirânico da ilegalidade, da arbitrariedade e do medo. Pode dispensar o consensus iuris porque promete libertar o cumprimento da lei de todo ato ou desejo humano; e promete a justiça na terra porque afirma tornar a humanidade à encarnação da lei. (ARENDT. 1989, p. 514)


As democracias deficientes têm características muito parecidas com o totalitarismo analisado por Hannah Arendt, os representantes tentam passar a ideia de que as leis e as decisões tomadas pelo governante são desejos da população, e ele sabendo dos desejos de todos "trabalha" para a realização desses desejos. Muitas das decisões e leis são arbitrarias e impostas. Como já citado anteriormente, o povo apenas é informado e submetido, sujeitado sem opção de participação. Participação, que não seja entendido unicamente como o ato de votar e de aceitar as decisões e leis impostas, mas como ato de governar do lado dos representantes aprovados pelo voto. A maioria, que chamamos de povo, de cidadão em certas circunstancias e de eleitor em momentos históricos, que deveria governar, é governada e submetida a abusos constantes, a atitudes covardes que subtraem o famigerado poder do povo. Exemplos não faltam quando olhamos dentro da maquina publica e percebemos que seu governantes dirigem ela do modo como os convém e não de maneira a conduzi-la para beneficio do cidadão, do povo, da maioria. Maioria que muitas vezes é massacrada em favor de minorias que representam o poder financeiro ou o poder político ideológico.

A democracia é o governo da maioria, jamais das minorias como querem muitos ao falar sobre desigualdades ou exclusão. O fracionamento de um povo em categorias grupais enfraquece o poder do próprio povo. As minorias na democracia são os partidos políticos e os grupos industriais e financeiros. Porém, até essas minorias somam com os demais formando a população de um país, a nação de um Estado. Falar de minoria querendo com isso representar uma comunidade, um agregado ideológico, uma agrupamento de pessoas desfavorecida, ou uma parcela da sociedade que carece de maiores atenções por parte do governo, do Estado, sem falar da maioria é não pretender resolver problema algum, pois se um país tem uma ótima distribuição de renda, sistema jurídico eficiente e sem relativismos, sistema educacional de qualidade e prioritário, sistema de saúde em favor da vida, sistema tributário não abusivo e valorização da moral e do respeito pelo cidadão, então não haverá problemas a serem alegados em favor de minorias, isso porque todo governo democrático é governo da maioria. O termo minorias sinalizam para as desigualdades evidentes dentro de uma sociedade fragmentada em grupos.

A democracia só se faz pelo todo e não por partes, sendo realizada pelas mãos de poucos ela é elitista, excludente e aí sim produtora de desigualdades. As desigualdades, essas não existem sem o consentimento do governo que institui as leis e dos governados que não participam do governo, de igual modo o favorecimento da igualdade em condições e direitos só pode acontecer por aprovação, vontade do governo correspondendo a vontade da maioria que governa um país, digo do povo. Se a democracia é ruim ou nunca se concretizará como governo do povo, então o momento é de repensar esse sistema para substitui-lo por outro menos tirano. O presidente, escritor, jornalista, orador e historiador britânico Winston Churchill (1874 ? 1965) em discurso proferido em 11 de Novembro de 1947 disse: "Ninguém pretende que a Democracia seja perfeita ou sem defeitos. Tem-se dito que a Democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos."

Referencia Bibliográficas
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade; por uma teoria geral da política. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. (Coleção Pensamento Crítico, v. 69)
KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MORAES, João Quartim de. Constant; Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista Filosofia Política no. 2. Porto Alegre: L&PM,1985.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: (princípios de direito político). Trad. Antônio P. Machado. 19ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
Autor: Chardes Bispo Oliveira


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