Um cálice de si...



Um cálice de si...


Para gestar e parir um texto é preciso um começo.Um certo mal-estar...Uma vontade de dizer... Ah!Já sinto náuseas!Sim, escrever é um vômito sobre o papel... Um enjôo... Uma descabida inquietação. As palavras são lançadas sobre o papel e escrita com a própria bílis, denunciando a embriaguês, resultado da ingestão de bebida barata, da minha indigência e do meu inaudito amor-próprio, acompanhado do pobre cardápio de apenas cinco sentidos que por sinal andam cada vez mais empobrecidos. Pronto... Já começou... Sim, aceito. Só um cálice?!

Só lembro que me embriaguei... Tomei um porre de mim. No início quis fugir... No entanto, por favor, dê-me mais um cálice, falei. Enquanto bebia, indagava-me: Quem é esse cara que insisti em aproximar-se de mim, no entanto nem o conheço?Cara esquisito?!Só aparece nesses momentos!Quantas vezes o sinto tão próximo e ao mesmo tempo tão distante!É como se estivesse sempre a espreitar-me. Quem é você?Indagou-se!Surpresa... Nada falou! Insisti: fale comigo?Silêncio... Silêncio... Mais uma taça, falei ao garçom!Aí, olhou-me de soslaio. Convidei-o. Aceitou...

Ah!Eu sabia que o conhecia de algum lugar. Conversamos em silêncio... Nem uma palavra, mas assim mesmo nos entendíamos e estávamos à vontade. Incrivelmente à vontade... Olhávamos o céu... Plantas... Pessoas... Embriagados de nós... Mais uma taça, falei. Estávamos amigos. Já sorríamos. Falávamos alto. Abandonamos as formalidades... Até ensaiamos um cumprimento caloroso a um desconhecido!De repente uma sensação... Uma esquisitice daquelas: Incesto... Incesto... Incesto...


Percebi que me deixara seduzir pelo outro de mim...Aquela voz denunciara.Um irmão...Sim,filho como eu do medo,da angústia,da covardia,da acomodação,da solidão...Triste refém-de-mim-mesmo... Bicho preso... Só aparece quando saio do sério e lanço-me ao sério da vida, lembrando Roberto Gomes. Quando me aventuro na arte da "afirmação da vida", embriagado pelos impulsos primaveris, como escrevera Nietzsche. Quando perco o receio de mostrar que sei sorrir... Que tenho emoção... Que não sou guardião de saber nenhum... Quando me embriago e vomito sobre minha "doce" aparência e sem receio, abraçando-a, busco um novo cálice... Quando deixo minha cabeça pender sobre meus ombros e numa atitude reflexiva, me aceito, mas não me acomodo. Quando não me regojizo, solitário de mim, com receio de ser solidário com o outro. Ah!Como retê-lo junto a mim e aí sim, pensarmos na possibilidade alvissareira de um começo, juntos?!Como me manter lúcido na embriagues de mim mesmo?!
Já estou ficando "pesado". Vou embora, decidi. Peço ao garçom a conta e enquanto espero, percebo que o silêncio volta a abater-se sobre mim. A rua está calma... A noite se faz silenciosa... Sem vozes... Sem olhos... Sem rosto... Só eu e. Enquanto o garçom se afasta, aproveito para ficar um pouquinho mais com o outro de mim, e digo: Por que eu só te encontro num cálice?As luzes do bar se apagam neste momento... As mesas são recolhidas... O cálice esvaziou-se... A garganta está seca... Mas... Não, não precisa responder agora, Falei. Deixa pra próxima. Próxima???!!!! Tchau...


Autor: Afonso Rocha Sombra


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