A Rua do Encanto
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Quando voltei a abrir os olhos, já estava no hospital. A maca em movimento e as luzes do teto passando sobre meus olhos. Ouvia gritos da minha mãe. Sua voz era inequívoca, principalmente quando chamava pelo meu nome.
? Carlos, Carlos, meu filho.
A voz ficava mais distante. Quando a maca parou, percebi uma intensa movimentação de médicos em minha volta. Não sentia mais o corpo, apenas notava que faziam uma incisão no meu peito. Voltei a fechar os olhos e tentar dormir. Quem sabe estaria tudo resolvido quando acordasse. Se acordasse. Mas não consegui. Aproveitei, então, para repassar minha vida.
? Carlinhos, meu querido, vou levar você para casa. ? Anunciava a minha nova mãe. ? Finamente!
? Seja muito feliz, meu filho. E comporte-se. ? Recomendava Dona Dolores, supervisora do orfanato, conduzindo o casal de jovens até a área de recreação.
Os jovens me apertavam. Choravam de felicidade.
? Você é lindo. ? A moça sussurrou com ar de apaixonada. ? Nós vamos cuidar de você, tá? Não tenha medo. Venha cá!
Como se pudesse me aproximar mais, seus braços me envolveram e me contraíram no seu colo. Fui tomado agora pelo rapaz, que me salvou de ser esmagado. O casal se deslumbrava comigo enquanto ouvia as recomendações da Dona Dolores.
A supervisora do orfanato parecia passar as explicações sobre um produto: idade, origem, cuidados básicos de manuseio. Ainda explicou sobre as vacinas tomadas, as brincadeiras prediletas e a alimentação saudável. Ou seria um cãozinho? Eu estava confuso, mas feliz. Desta vez poderia viver em uma casa de verdade, com uma família de verdade.
Olhei para o lado, quando já deixava o espaço de recreação em direção ao escritório da supervisora, e avistei o meu irmão. Ele estava mais triste que em qualquer outro dia. Olhava para cima, tentando me enxergar entre os braços do rapaz que me conduzia.
Não houve despedida. Nem mesmo uma última palavra. Ele tinha apenas oito anos, três a mais que eu, mas já era considerado velho para adoção. Meus novos pais logo justificaram para mim que nos seus planos não havia espaço para dois, e sim para um único filho.
Deveria me sentir feliz por ter sido o escolhido, mas sentia apenas que preenchia o vazio deles. Eu substituía o filho que perderam em um acidente. Eu tinha a mesma idade, quando fui adotado, que o filho perdido. Por sorte, até o meu nome era o mesmo que o dele. A crise no relacionamento foi resolvida, naquele instante, quando optaram pela minha adoção. Eu era uma alternativa para evitar a separação do casal.
Meus primeiros dias na nova casa foram estranhos. Sentia falta dos meninos do orfanato, com quem brincava e brigava. Tentava me consolar com tantos brinquedos novos. Tudo ali era novo, incluindo os pais, as roupas e a escola.
Quando iniciei a vida escolar conheci muitas outras crianças. Eram tantas da minha idade que descobri outro universo, bem mais divertido que o orfanato. Novas brincadeiras, jogos, festas. As festinhas eram comuns. Por serem muitas crianças, quase toda semana tinha alguém aniversariando. Tive minha primeira festa de aniversário. E se repetiu por todos os anos seguintes.
Em uma dessas comemorações encontrei minha mãe chorando. Foi a primeira vez em que a vi chorar de tristeza. Desta festinha meu pai não participou. Ele apareceu apenas no final, deixou o presente e logo foi embora. Foi quando decidi me comportar como homem, em meus primeiros instantes dos dez anos de idade.
? Mãe, você está bem? Você e o pai brigaram?
Ela não respondeu. Tentou me enganar com um sorriso acanhado.
Agora o caminho da escola havia aumentado. Antes, meu pai me levava a pé até a escolinha na mesma rua de casa. Com minha nova série escolar precisei mudar para um colégio um pouco distante.
A condução do colégio passava na rua sempre às sete horas. Minha mãe a esperava comigo em frente ao portão. Alguns poucos garotos já estavam no ônibus quando eu entrava, outros subiam no caminho. No trajeto que se fazia até a escola, em cada rua entravam alguns colegas, exceto ao longo da Rua do Encanto, a área de baixa renda onde passávamos.
A Favela do Encanto surgiu às margens da rodovia que ligava o meu bairro ao colégio, no terreno de uma antiga fazenda de flores. Era um caminho obrigatório. Em um dia, quando observava os barracos desordenados e seus moradores maltrapilhos, fui surpreendido por Lucinha, a loirinha simpática da série superior.
? Meu pai disse que muitos carros desapareceram aqui, como se se encantassem.
Aproveitei a ocasião para iniciar uma linda amizade. Minha melhor amiga... Quase namorada.
Diversas vezes, neste trajeto, visualizei crianças brincando nas margens da estrada, tão próximos aos carros, e cheguei a perguntar para Lucinha porque eles não iam à escola, como nós. Fiz este percurso por sete anos, até concluir o Ensino Médio. Algumas vezes via um garoto que me fazia lembrar o meu passado no orfanato. Ele era um pouco maior do que eu e se parecia com o meu irmão.
Uma vez a bola foi lançada para a estrada enquanto a condução passava. Quase ele foi atropelado. Depois de uma freada brusca que nos sacudiu dentro do ônibus, voltei imediatamente para a janela para saber o que tinha ocorrido ao garoto. Ele estava bem, mas assustado, e me fintou até o ônibus desaparecer na curva.
Não podia ser ele. Não imaginava como ele estaria agora, mas certamente não era aquele garoto com espinhas no rosto. Também não queria lembrar nada que me levasse de volta ao passado. Não queria nem mesmo que os meus colegas soubessem da minha origem. Estava adaptado àquela vida porque foi assim que o destino quis. Preso ao passado, eu buscava uma fuga no dia a dia, desesperadamente.
O início da minha vida adulta foi a entrada na faculdade. Isto trouxe uma alegria para casa. Até o meu pai apareceu e me presenteou com um carro. Puxa vida! Isso representava uma liberdade, acompanhada de um pesado sentimento de responsabilidade. Claro! Ser adulto é mesmo muito complicado.
Poucas vezes consegui dar carona para Lucinha. Eu só estudava pela manhã, enquanto ela estudava à tarde e trabalhava à noite, em uma livraria na própria faculdade. Mesmo nos finais de semana estávamos sempre ocupados. Assim, conversávamos mais pela internet do que pessoalmente. Pedi para ela entregar um currículo meu na mesma livraria. Com um pouco de sorte, poderia obter o meu primeiro emprego e, o melhor, trabalhar ali, com ela. Agora uma linda loira.
Mas Lucinha estava propensa a deixar o emprego. Era cansativo e a volta para casa muito arriscada. Ontem mesmo ocorreu um assalto ao ônibus onde ela estava, mais precisamente na Rua do Encanto. Levaram, entre outros pertences de todos os passageiros, sua bolsa com documentos. Por isso resolvi ir buscá-la no trabalho nesta noite. Faria uma surpresa.
O barulho ensurdecedor do pneu me fez parar o carro imediatamente. Parecia uma explosão. Não havia acostamento, pois os barracos quase invadiram o asfalto. Por isso deixei o carro na estrada com o pisca de alerta ligado.
? Droga! Estourou o pneu. Maldito buraco.
Peguei o celular para chamar o socorro mecânico. Enquanto ouvia a gravação, abri o porta malas para agilizar a retirada do pneu reserva e dos equipamentos necessários para a troca. Foi aí que percebi alguém se aproximando. Talvez para ajudar, mas eu estava na Rua do Encanto.
Voltei-me para traz com a chave de rodas na mão. Seria útil para trocar o pneu ou para assustar o inimigo. O estranho já estava prostrado poucos metros atrás de mim. Na escuridão não consegui identificá-lo de imediato. Quando as luzes do alerta acendiam, conseguia visualizar algo em sua mão, parecia uma arma. Esta subiu até ficar apontada para mim.
Pensei no que poderia dizer para acalmá-lo, mas antes que pronunciasse alguma palavra ouvi o disparo. No clarão do tiro enxerguei o seu rosto amedrontado. O identifiquei, mas a bala já seguia o seu curso.
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Quando bateram a grade nas minhas costas foi que a ficha caiu. Percebi que estava perdido mais uma vez. Aliás, sempre estive. Agora, de volta à prisão, deitado na cama de cimento, posso repassar minha vida, como páginas de um livro.
A morte dos meus pais e o afastamento dos parentes levaram a mim e ao meu irmão para o orfanato. Isto não foi ruim de um todo. Ao menos no orfanato havia comida e não havia goteiras. Consegui roupas limpas e coleguinhas para brincar. Pena que isto não durou muito.
Quando levaram meu irmão, recebi apenas o consolo da velha Dolores:
? Vai chegar sua vez, Beto.
Seus olhos mentiam, mas não me importei. Não chorei. Naquele momento já conhecia a solidão, a rejeição e a mentira. Era hora de fugir. Conheci o mundo de fora do orfanato. Além da liberdade, consegui outras maravilhas que o dinheiro podia comprar. O difícil era conseguir o dinheiro, mas aprendi rápido. Questão de sobrevivência na rua.
Fui adotado, informalmente, por uma família que cuidava de tantos outros como eu. Depois de ser surrado por não atingir minha quota diária de esmolas, realizei minha segunda fuga. Consegui abrigo com outros meninos de rua na Favela do Encanto.
Lembro-me da primeira informação passada por um dos novos colegas da rua:
? Sabe de onde vem esse nome da favela? Quem passava por aqui antes da invasão via uma plantação de rosas e ficava encantado.
Como aprendi a duvidar das pessoas, nem acreditei. Acho que a favela ganhou esse nome por causa da estrada que a corta. Quantas favelas têm uma rua asfaltada como esta?
Mas a rodovia, tão importante para os moradores da comunidade e dos bairros vizinhos, também é muito perigosa. Alguns colegas perderam a vida ali. Eu mesmo quase fui atropelado quando tentei apanhar a bola na estrada. Naquele dia, depois do susto, fiquei intrigado com o menino que me olhava da janela do ônibus escolar. Ele me fez lembrar meu irmãozinho.
? O que fizeram dele? ? Falei sem que os meus colegas ouvissem. ? Tomara que tenha uma sorte melhor que a minha. Ao menos foi levado por uma família bacana.
A rodovia também permitia a chegada rápida da polícia. Na minha primeira prisão, todos correram para se esconder em seus barracos. Como eu não tinha para onde correr, fui preso facilmente. Mais uma vez fugi. Muros nunca impediram minha fuga. Difícil mesmo era fugir do frio, da fome, do medo. Preso ao presente, eu precisava fugir ferozmente da miséria cotidiana.
? Da última vez em que fui preso ainda era menor de idade. Desta vez estou em maus lençóis. Será que ele morreu?
Para dificultar a chegada das viaturas policiais e os constantes atropelamentos, resolvi abrir alguns buracos na estrada. Funcionavam como lombadas. A redução de velocidade ainda permitia ganhar a carteira de alguns motoristas.
Ontem, em mais uma aventura, tive a maior surpresa da minha vida. Em uma das bolsas roubadas no ônibus, encontrei um currículo. Aquela foto chamou a minha atenção. Era um rosto familiar, o nome igual ao do meu irmão e a idade batia. Coincidência?
Resolvi investigar. Só precisava ligar para o número que estava ali escrito. Passei o dia inteiro tentando ganhar um celular. O meu estava sem crédito. Ao anoitecer fui atraído por um barulho na estrada. Percebi aquele carro parado no escuro e achei que pudesse dar o ganho no celular do cara. Talvez a carteira também.
Há poucos metros do carro vi o rapaz se voltar para mim com as mãos ocupadas. Uma segurava o telefone, na outra havia algo que parecia ser uma arma. Então resolvi não arriscar. Precisava atirar primeiro. No clarão do tiro enxerguei o seu rosto amedrontado. O identifiquei, mas a bala já seguia o seu curso.
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Autor: Erinaldo Ferreira Do Carmo
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