A fuga da realidade sólida na terceira margem do rio




RESUMO: O presente estudo é uma releitura do texto de Guimarães Rosa, intitulado A terceira margem do rio, uma tentativa de auxiliar o narrador a compreender os motivos que levaram seu pai a abandonar a família e se refugiar dentro de uma canoa no rio da cidade. Compreendendo as razões do pai, será possível compreender também as implicações dessa atitude na vida do filho. Para fazer a releitura, será utilizada a teoria sobre a simbologia das águas contida no livro A água e os sonhos, de Gaston Bachelard. Além disso, a interpretação contará com os depoimentos, lembranças e impressões do próprio narrador.
Palavras-chave: A terceira margem do rio; Guimarães Rosa; Simbologia da água; Gaston Bachelard; Metáforas.

Com este trabalho pretende-se trazer à luz os fatos que apresentam o rio como possibilidade de fuga da realidade "sólida" das personagens do conto, uma forma de libertação do cotidiano, tanto para o pai do narrador como para ele próprio. O conto de Rosa é uma retrospectiva na vida do narrador, uma tentativa de organizar suas lembranças a fim de encontrar explicações para a atitude de seu pai e as implicações dessa atitude em sua própria vida. Além disso, o conto remete o leitor a um campo metafórico, um lugar de silêncio, solidão e liberdade, em que é possível contemplar a passagem do tempo em sua forma fluída.
Inicialmente, o narrador descreve a personalidade do pai como alguém "cumpridor, ordeiro, positivo", ou seja, possuidor de todas as virtudes que se espera de um homem que vive em sociedade. Por isso a família não compreende quando ele manda fazer uma canoa pequena, porém, feita para durar. O pai, que nunca teve a pesca como distração, não deu satisfações de seu intento. Por fim, um dia, simplesmente despediu-se de todos e, sem expressar qualquer sentimento, entrou em sua canoa e partiu.


A PARTIDA

O surpreendente é que a partida não ocorreu de fato, o homem saiu, mas não foi embora de vez, ficou parado no meio do rio. Deixou o convívio em sociedade, abandonou a solidez de seu cotidiano e colocou-se à margem de sua própria vida. Não se desprende do passado, mas também não avança para o desconhecido. Apenas contempla, à distância, o lugar que ocupou até então. Sua busca não era pelo novo, não era de seu interesse desbravar novos horizontes, por isso manteve o olhar firme no concreto, como se tentasse analisá-lo sob outro ângulo. Assim, libertando-se do cotidiano, conquistando sua liberdade na água corrente, o homem pôde passar a vida a limpo.
Por que escolher o rio como refúgio em vez do cume de uma montanha, por exemplo? De lá poderia avistar a vida cotidiana em que esteve inserido mantendo o mesmo distanciamento que obteve na água. Em uma tentativa de compreender essa escolha pode-se utilizar a fala de Bachelard quando diz que a água é um elemento transitório, o ser voltado para a água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente. A água corre sempre, cai sempre e acaba sempre em sua morte horizontal. Na solidez de uma montanha seria difícil encontrar a maleabilidade que a água oferece para as transformações do ser. Por ser o rio esse elemento transitório, o homem pode vislumbrar a passagem de sua vida e aprofundar-se em busca de sua própria substância. Ainda citando Bachelard, a água é o elemento mais constante que simboliza as forças humanas mais escondidas, mais simples, mais simplificantes.
Embora todos considerassem insana a atitude do homem, a palavra loucura nunca mais pôde ser mencionada em sua casa, o assunto não era discutido, pois são considerados loucos todos os que fogem da sociedade para fazer da solidão a única companhia. O distanciamento com o mundo foi tão definitivo que o ele nunca mais pisou em chão nem capim, como relata o narrador. A solidão ganha plenitude com a completa escuridão, o refugiado não mais riscou um fósforo sequer, manteve-se em seu deserto particular como se não precisasse de luz para se enxergar. Conforme Bachelard, "Mergulha-se na água para renascer renovado" de modo que o novo homem consegue abster-se das coisas materiais consideradas fundamentais para sua sobrevivência. Uma renovação para tornar-se livre, para escolher o curso da própria vida, para escolher o momento de se deixar levar rumo a seu destino.

O PASSADO

O filho, assim como o pai, também se afasta da vida em sociedade e passa a se dedicar exclusivamente a evocar o passado. Enquanto os outros membros da família deram seqüência às suas vidas, a existência do filho resume-se a esperar e lembrar.
Minha mãe se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez (...). Eu fiquei aqui, de resto. (...). Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei (...).
Embora o narrador afirme que o pai precisa de sua presença, essa fala, na verdade, pode ser interpretada ao contrário: ele é quem carecia da presença do pai, pois como seguir a diante sem compreender o que ficou para trás. Dessa forma, para ele, o futuro não existe, de modo que não consegue transcender, fica estagnado em uma "margem sólida", contemplando a transcendência do pai. O seu isolamento do mundo não tem o mesmo valor libertador que teve a seu pai. Sua terceira margem passa a ser a lembrança do que foi: "Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos.".
Mesmo no dia em que teve oportunidade de trocar de lugar com o pai, ocupar o lugar do velho na canoinha, faltou-lhe coragem. Coragem para enfim transcender, tornar real o que até então tivera sido pensamentos, indagações e recordações. O medo da libertação e do desconhecido o fez recuar, mantendo-se em sua realidade sólida e perdido em pensamentos do que teria sido. E ele diz: "sou o que não foi, o que vai ficar calado".
O pedido de perdão é, possivelmente, pelo arrependimento do que não teve coragem de ser: nem homem produtivo, assumindo seu lugar na sociedade, nem homem liberto, como seu pai foi.
Embora sem coragem de se entregar ao desconhecido, o narrador sabe que seu lugar era nas profundezas do rio, apenas lá encontraria plenitude, por isso ele diz: "sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo." (grifo nosso). E por isso pede que, ao morrer, depositem-no em uma canoinha e o lancem, rio abaixo, rio afora, rio adentro.



CONCLUSÕES

Com a leitura do conto de Guimarães Rosa pode-se perceber que a maleabilidade encontrada na água serviu como condutor para o autoconhecimento das personagens. O rio tornou-se local ideal para a transcendência do pai do narrador, local este onde ele pôde contemplar sua existência e seus feitos, tendo como companhia a solidão e o silêncio.
O deixar-se levar pela vagareza da água corrente para conhecer a profundeza de sua própria existência faz com que o filho dedique a vida a contemplar a atitude do pai, mas sem coragem suficiente para transcender. Sua busca fica restrita ao passado, aos motivos do pai e ao que ele próprio poderia ter sido. Mas como ser o que não se compreende? Como tornar-se igual sem entender o modelo?
Devido a tantas dúvidas, o filho fica preso em sua "realidade sólida", sem alcançar de fato a libertação oferecida pela água.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos.

Autor: Andréa Abreu


Artigos Relacionados


Literatura E Tradição Com Mia Couto

Terra Amada

Dia Mundial Da água

Água = Vida

O Conto Nossa Querida Mãe

Rosa

Definição Para A Água