CORDOVÃO, GUADAMECI E COUROS DE CÓRDOVA



CORDOVÃO, GUADAMECI E COUROS DE CÓRDOVA

FRANKLIN PEREIRA
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Tem existido alguma falta de clareza em torno dos termos «guadameci» e «cordovam» (em português actual, cordovão). A origem nebulosa, a fama, o comércio, o esplendor da Córdova islâmica, o mito, o nacionalismo e falta de investigação, tudo tem contribuído para uma certa confusão, que nem os estudos surgidos ultimamente parecem ser suficientes para eliminar. Acrescente-se as exportações, a extinção da arte na Península e o surgir da abundante produção nos Países Baixos, nos séculos XVII-XVIII, e estamos claramente em terreno com pouca solidez.
A separação entre uma curtimenta peculiar das peles de cabra e uma técnica decorativa foi explicitada pelo cronista espanhol Ambrosio de Morales, tão cedo como 1575: «y es tanta la ventaja de adereçarse bien los cueros en Cordoua, que ya por toda España, qualesquier cueros de cabra en qualquier parte que se ayan adereçado, se llaman cordouanes, por la excelencia deste arte que en aquella ciudad ay. (...) Las badanas sirven para los guadamecis, que se labran tales en Cordoua» (MORALES, 1575: 110).
Temos, assim, o curtume do couro de cabra, denominado «cordovão» por força da qualidade e fama do original de Córdova; e o couro de carneiro, denominado «badana», o único a ser utilizado nos guadamecis, de acordo com os Regimentos Ibéricos do século XVI. O termo guadameci designa uma técnica decorativa usando o couro de carneiro, mas que, para facilitar, passou a designar a peça final, trabalhada segundo esta mesma técnica.
O termo «couros de Córdova» aparece com frequência nalguns documentos antigos; mesmo em inventários de museus é utilizado para referir couros artísticos. Trata-se de um rótulo generalista, uma amálgama onde cabem os cordovões, todas as técnicas de decorar o couro, e um nacionalismo míope. O termo «couros de Córdova» deve ser entendido como referindo apenas os cordovões, as peles de cabra de um curtume peculiar, depois exportadas para outras cidades ibéricas, incluindo Lisboa. Outros locais peninsulares imitaram esse tipo de curtume, e exportaram as suas produções. Segundo dados de Évora do século XIV, no curtume dos cordovões participavam nessa época artífices mouros, isto é, mudéjares, também sapateiros (PEREIRA, 1891: 143, 145, 146); o regimento lisboeta dos curtidores especifica, no século XVI, uma série de exigências para que esse curtume permaneça com qualidade (PEREIRA, 2009a). O cordovão aparece referido, entre outros couros, nos documentos relativos ao comércio peninsular; trata-se, simplesmente, de peles de cabra, e nada que tenha a ver com trabalho artístico, muito menos com o guadameci.
Outro ponto prende-se com a origem do termo guadameci. Nas relações comerciais do al-Andalus com o norte de África, aparece referido o oásis de Ghâdamès, na Líbia actual. O cronista tunisino Ibn el-Nour el-Hamîni, do século XII, deixou registada a fama dos couros de Ghâdamès do seguinte modo: «de cette ville que vient le cuir ghadâmesien» e «le cuir connu à Tunis sous le nom de djild el-Ghadâmesi provenait de la ville de Ghadâmès» (DAVILLIER, 1978: 6). Referido num primeiro estudo sobre os couros cordoveses publicado no final do século XIX, em França e em Espanha, esta errónea identificação entre um local (Ghâdamès) e um método decorativo de trabalho do couro passou a marcar o guadameci ibérico até aos dias de hoje.
O arabista E. Levi-Provençal aplica o mesmo termo, guadameci, para designar o «couro ferreteado e repuxado» (LEVI-PROVENÇAL, 1932: 184); ora o repuxado/relevado não pertence à técnica ibéria, pois a produção peninsular clássica é toda plana, com ferreteado/puncionado, criando zonas de diferente textura e brilho.
Num estudo mais recente sobre a Ibéria medieval, a mesma origem norte-africana é afirmada para o guadameci, apesar de entendido como um subproduto dos métodos de curtir (GLICK, 1979: 245). Contudo, nem Thomas Glick nem Levi-Provençal apresentam as referências dos documentos andalusís que lhes permitiram afirmar, quer ter havido fabrico de guadamecis nos territórios peninsulares sob domínio muçulmano desde o Califato, quer a sua exportação para o norte cristão.
A falta de investigação séria neste aspecto da manufactura resvala para a distorção quando, como o fez Reinaldo dos Santos, escreve «Guadamès» (SANTOS, 1970, III: 452) (e não Ghadâmès), pretendendo ligar declaradamente o termo guadameci à vila de Ghadamès, na Líbia.
A fácil e simples ligação entre Ghadamès e o guadameci ibérico foi colocada em causa tão cedo como 1920, separando o curtume de peles suaves da técnica decorativa. Mas só em 1989 esse estudo foi publicado em Espanha (LEGUINA JUAREZ, 1989).
Em 1971, John Waterer afirma que: «apesar de haver claramente alguma ligação entre o couro ?espanhol? e a cidade líbia, as sugestões de que os mouros trouxeram para Espanha, totalmente desenvolvidos, os couros decorativos pintados, repuxados e dourados que fizeram a fama de cidades como Córdova, não têm fundamento algum» (WATERER, 1971: 16; tradução nossa) No entanto, este autor ainda continua a confundir o guadameci com o cordovão.
Só na década de 90 do século XX é que alguns estudos espanhóis mais aprofundados explicitaram bases mais claras de entendimento, como veremos nos parágrafos seguintes.
A arabista Elena Pezzi, da Universidade de Granada, admite que a raiz do termo guadameci está em «misr», para qualificar «aquel ?que tiene un tinte muy coloreado, muy rojo?. (...) Creo que hubo de ser este vocablo el que produjo en toda Europa las distintas denominaciones del cuero repujado y coloreado que constituyeron el famoso guadameci, todas sus variantes fonéticas, a través de la locución wad? al-másir, usada como un adjetivo, y que podría traducirse como ?de la condición del que es vivo de colores? o bien ?del tipo de elaboración del que está rameado?, por los dibujos y colores de su repujado» (PEZZI, 1991: 74). A autora considera, de seguida, que a identificação entre o guadameci e Ghadamés não é fácil para explicar as variantes espanholas antigas, como «guadalmeci» ou «guadalmexir», derivadas do termo original. Note-se, no entanto, que, no português arcaico, não encontramos o «l» no meio da palavra ? «gudomiçil, goadameci, guadamesym» -, o que afasta estas designações das variantes espanholas referidas.
Uma outra hipótese baseia-se no termo hispano-árabe «gueld», para couro, que, com a forma «masir», evolucionaria para «guadamecí» (SOLER, 1992: 146).
Há também que prestar atenção às traduções menos correctas que, por vezes, se vão fazendo dos termos usados em documentos medievais. Por exemplo, no foral dado a Lisboa por D. Afonso Henriques, em 1179, encontram-se referidas as taxas relativas aos «corijs uermelijs uel albis» (DOCUMENTOS, 1958, I: 443). Marcelo Caetano traduziu do seguinte modo: «marroquins brancos ou vermelhos» (CAETANO, 1990: 97). Isto é errado, pois a designação «marroquim» só aparece em 1500, e relacionada com a importação de couros de Marrocos.
Outros erros encontram-se também na definição do cordovão. Por exemplo, no «Dicionário de História de Portugal» afirma-se: «dá-se esta designação a uma espécie de coiro de cabra, curtido e pintado, cuja manufactura era originária de Córdova (...) Em castelhano aquela espécie de coiro tem o nome de guadameciles que corresponde ao árabe gadamisi, de Ghadamès, na Tripolitânia» (SERRÃO, 1989, II: 187). A curtimenta não implica pintura, mas tingimento, e admiti-la como iniciada após a conquista islâmica é demasiado simplista. Nunca o cordovão se denominou «guadameciles», e as considerações continuam misturando um curtume com uma técnica decorativa.



Autor: Franklin Pereira


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