Da Aplicabilidade do CDC no âmbito dos Serviços Públicos




Com relação à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078 de 1990, no âmbito dos serviços públicos, parcela da doutrina diverge quanto a este ponto, muito embora aquele diploma consumeirista elenque dispositivos reportando-se aos serviços ditos públicos. Para parcela da doutrina, o Código de Defesa do Consumidor só terá incidência nos serviços públicos quando se tratar de serviço individualmente remunerado, ou seja, serviços remunerados por meio de taxas ou tarifas (BANDEIRA DE MELLO, 2009). Ademais, na esteira dessa linha de raciocínio, tal diploma defensor das relações de consumo não será aplicável quando incoerente ao serviço público, ou quando afrontar prerrogativas peremptórias do Poder público em relação ao Concessionário.

A aplicação do Direito dos Consumidores aos serviços públicos é uma decorrência fundamental do movimento de liberalização econômica da década de oitenta e seguintes. Apenas a um serviço público liberalizado, sujeito a lógica econômica da concorrência, haver-se-ia de cogitar da aplicação, em maior ou menor escala, do Direito comum de proteção dos consumidores. (ARAGÃO, 2008, p. 03)

Ainda nesta senda, frise-se a distinção entre usuário e consumidor, a saber, o primeiro consiste nas relações de direito público, já o segundo configura a relação de direito privado (BANDEIRA DE MELLO, 2009).
Acerca desta distinção, prescreve Amaral (2001, p.218):

A defesa, pelo Poder Público, não é atribuição do PROCON, e sim da respectiva agencia reguladora, cujo desafio é organizar-se adequadamente para isso. Como alei prevista no art. 27 da emenda Constitucional nº 19 até hoje não foi aprovada pelo Congresso Nacional, o usuário de serviço público tem tido sua defesa calcada em uma lei (Lei 8078) que claramente não se aplica à relação de serviço público, e sim à de consumo, conceitualmente diversa daquela.

Rocha (2004, p.30), por seu turno, perfilha entendimento diverso da corrente alhures mencionada, pois no entender desse autor, consumidor é a pessoa física ou jurídica enquadrada no art. 2º do Diploma consumerista, "[...] extraindo-se deste conceito os consumidores que se utilizam da energia elétrica como insumo na fabricação de seus produtos, não estando protegidos, portanto, pelo CDC". Portanto, nesse pensar, o empresário que utiliza os serviços públicos, tais como: fornecimento de energia elétrica, água e gás, não são considerados consumidores, mas sim usuários, uma vez que utilizam estes serviços como meio para fabricação de seus produtos, logo, seria consumidor se fosse o destinatário final deste serviço. (ROCHA, 2004)
Na órbita da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos serviços públicos, releva frisar a interpretação extensiva do art. 22 do CDC, "[...] entendendo que este se aplicaria a todos os serviços públicos, tanto aos ut singulli quanto aos ut universi, indistintamente [...]" (JÚNIOR, 2001 apud BENJAMIN, 1991, p.78).
Azevedo (2007, p.93-94) rechaçando esse entendimento, afirma que: "[...] em que pese o respeito aos doutrinadores que o seguem, não parece estar correto. O imposto é tributo cobrado em razão da disposição do serviço à sociedade. Aquele que paga impostos, o faz de forma compulsória, no interesse da sociedade [...]. Concluindo esse autor que: "[...] existe, dentro desse contexto, uma indivisibilidade na prestação em função da indeterminação dos usuários.
Por outro lado, há quem filie-se no sentido da interpretação extensiva mitigada "[...] ela diz basicamente o seguinte: para que exista uma relação de consumo, é necessário que a prestação do serviço seja remunerada, conforme disposto no art. 3º, §2º do CDC.[...]" (JÚNIOR apud Helena, 2001, p.79). Assim, consoante esse entendimento, os serviços públicos de natureza gratuita não serão passiveis de aplicação do Código de Consumo.
Por seu turno, Azevedo (2007, p.94) vislumbra a possibilidade da aplicação das disposições do CDC somente nos serviços públicos remunerados por tarifas, pois a incidência do Diploma Consumerista demanda relação jurídica negocial, devendo haver equivalência de prestações, o que "só ocorre na situação dos serviços públicos remunerados por tarifa". Ademais, como exemplo, cita o autor os serviços de telefonia, energia elétrica e o transporte público, cuja incidência do Código de Defesa do Consumidor é prevista.
Na trilha desse entendimento, não há que se falar em aplicabilidade das disposições consumeristas nos serviços públicos remunerados por "taxas", uma vez que tais serviços são prestados de forma compulsória, inexistindo, portanto, a liberdade de escolha capitulada no Art. 6º, II do CDC .
Por sua vez, Macedo Junior (2001, p. 88) leciona que:

O que nós temos visto na legislação recente sobre agências regulatórias, especialmente na Anatel (Agencia Nacional de Telecomunicações) e da Aneel (Agencia Nacional de Energia Elétrica), é a inclusão de determinadas normas esparsas que fazem menção à defesa do consumidor (Lei 9472/97, especialmente os arts. 2°, I, 3°, 5°, 6°, 7°, 19, XVIII, 79 e 80). Isto pode nos levar ao reconhecimento de que a legislação se a aplica a estes casos ao menos subsidiariamente.

Vê-se que o art. 7º, caput, da Lei 8.987/95, faz menção ao Diploma Consumerista, embora genericamente, há que se ter cautela ao aplicá-lo as relações entre usuários e concessionários, uma vez que não há compatibilidade entre o regime jurídico de direito privado, próprio do CDC, e direito público. (ARAGÃO, 2008).
Ademais, com o advento da concorrência no âmbito do fornecimento dos serviços públicos delegados tais serviços passaram a ser regidos pelo mercado, sendo relevante, conseqüentemente, a aplicação, pelo menos mitigada, do Diploma Consumerista, por ser este compendio normativo instrumento norteador da disciplina jurídica do mercado (ARAGÃO, 2008).
Assevera o autor, portanto, que o advento da concorrência no âmbito dos serviços públicos, trouxe um traço comercial a estas relações, o que não pode ser afastada a atuação normativa, de certo modo, do CDC. Deveras, "[...] postos os limites à aplicação da legislação consumerista aos serviços públicos, também deve ser destacado como, por outro lado, a sua aplicação é, sob certo aspecto, mais ampla do que as atividades econômicas privadas [...]" (ARAGÃO, 2008, p. 22). Conclui-se, assim, pela utilização, ponderando os casos concretos, do Código de Defesa do Consumidor na seara dos serviços públicos.
Frise-se, ainda, que no pensar desse autor a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor no âmbito daqueles serviços delegados se arrima em três correntes, quais sejam, corrente privatista, corrente publicista e corrente mista.
A corrente privatista trilha na linha de que "[...] não é pelo fato de haver normas de direito público incidentes sobre as relações contratuais que elas passam a ser relações de direito público[...]". Isto é, a tese dos autores que perfilham o entendimento da teoria privatista consiste na negação de que os serviços públicos, tão somente pelo fato de haver regulamentações de direitos público, tornam-se relações de direito Público. O que constitui uma evolução do direito privado (ARAGÃO, 2008, p.12). A teoria publicista, por seu turno, sustenta que "[...] é o Direito Público que rege a relação entre o particular e o prestador do serviço público, seja este industrial/comercial ou não". Aragão (2008, p.14), no entanto, afirma que os defensores da corrente publicista incorrem em grande erro, pois "[...] negam a natureza contratual do vinculo entre o usuário e o prestador do serviço, é, ao nosso ver, partir de uma concepção exacerbada da autonomia da vontade como o único modelo explicativo dos mecanismos contratuais". É dizer, analisar os usuários dos serviços públicos sob um viés estatutário seria coaduná-los a sistemas estatutários típicos do Direito Administrativo, por exemplo, servidores públicos regidos pelo regime estatutário , os quais adquiriram tal título por meio de uma formalidade.
Acerca da corrente mista, aduz Aragão (2008, p.15) que:

Para esses autores, a prestação dos serviços públicos, especificamente quando delegados à iniciativa privada, é regida em parte por um estatuto de regulamentação pública. Mas só entra sob a incidência desse estatuto mediante celebração de um contrato de prestação de serviços entre dois particulares (usuário e concessionário), que, como tal, é de natureza civil em todos os aspectos que não contrariem a situação estatutária.

Verifica-se, nessa moldura, que os que defendem a teoria mista entendem que mesmo diante de uma ampla aplicação do Diploma consumerista aos serviços públicos "[...] reconhecem especificidades publicistas na sua incidência [...]" (ARAGÃO, 2008, p. 15).
Extrai-se, portanto, que os defensores da teoria mista da aplicabilidade do CDC aos serviços prestados por delegatários públicos, prerrogam não pela aplicação absoluta do arcabouço normativo daquele diploma consumerista, mas sim por sua aplicação moderada, isto é, no que for compatível às relações privadas.
Assim, conclui Aragão (2008, p.19) que não há de se falar da exclusão da aplicação das normas contidas no CDC no atinente aos serviços públicos. "até porque há dispositivos legais expressos nesse sentido.". Com isto, um dos focos da teoria mista da aplicabilidade do CDC aos serviços públicos sustenta-se no fato desse Diploma Consumerista estabelecer disposições sobre os serviços públicos, não havendo de se falar, portanto, na inaplicabilidade do CDC às relações de serviços públicos.
A aplicabilidade do CDC aos serviços públicos, analisando o caso concreto, visa atender a proteção do consumidor preceituada pela Constituição Federal.
Quanto ao posicionamento dos tribunais, o Superior Tribunal de Justiça trilha na linha da teoria mista acerca da aplicabilidade do CDC aos serviços públicos, é o que se extrai do Resp. 463.331/RO (Relator (a): Min. Eliana Calmon, T2 ? segunda turma, data julgamento: 06/05/2004, DJ 23/08/2004 p. 178.)

EMENTA: ADMINISTRATIVO E DIREITO CIVIL ? PAGAMENTO (ENERGIA ELÉTRICA) PRESTADO POR CONCESSIONÁRIA.

Os serviços públicos prestados pelo próprio Estado e remunerados por taxa devem ser regidos pelo CTN, sendo nítido o caráter tributário da Taxa.
Diferentemente, os serviços públicos prestados por empresas privadas e remuneradas por tarifa ou preço público regem-se pelas normas de Direito Privado e pelo CDC.
[...]

A aplicação do Código de Defesa do Consumidor, ponderadamente no que couber, restou configurada, também, no julgamento do Resp. nº 485.842/RS (Relator (a): Ministra ELIANA CALMON, Julgamento: 06/04/2004, Órgão Julgador: T2 - SEGUNDA TURMA, Publicação: DJ 24/05/2004 p. 237, RJTJRS, vol. 240 p. 37, RSTJ vol. 185 p. 211), eis a transcrição da ementa:

PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO -AÇÃO CIVIL PÚBLICA -POLÍTICA TARIFÁRIA NO FORNECIMENTO DE ÁGUA - COLOCAÇÃO DE HIDRÔMETROS.
1. Extensão da coisa julgada da ação civil pública que enseja julgamento ultra petita para atingir base territorial não contemplada no pleito inicial, atropelando o acórdão o princípio dispositivo e o princípio da legitimidade do representante do Ministério Público, com atribuições limitadas no âmbito territorial.
2. A política de tarifação dos serviços públicos concedidos, prevista na CF (art. 175), foi estabelecida pela Lei 8.987/95, com escalonamento na tarifação, de modo a pagar menos pelo serviço o consumidor com menor gasto, em nome da política das ações afirmativas, devidamente chanceladas pelo Judiciário (precedentes desta Corte).
3. Acórdão que, distanciando-se da lei, condena o valor do consumo mínimo estabelecido pela política nacional de tarifas e contempla a utilização da tarifa social.
4. A Lei 8.987/95, como o Decreto 82.587/78, revogado em 1991 pelo Decreto 5, deu continuidade à prática do escalonamento de preços.
5. Recurso especial provido.

Portanto, depreende-se que o entendimento desta Corte trilha no sentido de que caso os serviços públicos sejam remunerados por taxa, ocorre o poder de império da Administração Pública, ao passo que não há consenso entre poder concedente e concessionária, em não havendo consenso, não há que se falar em relação de consumo. Já no tocante aos serviços prestados por concessionários remunerados por preços públicos (tarifas), há relação de consumo privada, tutelada pelo Diploma consumerista.
De igual modo, conforme pontuou em diversas passagens a Lei de concessões e permissões públicas, nº 8.987/95, consoante a aplicação do Código Consumerista, a Jurisprudência do STJ trilha no sentido da aplicação da teoria mista, restritiva, desse Diploma normativo, é dizer, no que couber ao caso concreto. Nessa mesma linha perfilha a corrente capitaneada por Filomeno: "[...] por entender que os serviços públicos remunerados mediante taxa não estão no âmbito de incidência de aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor." (MACEDO JUNIOR, 2001, apud Filomeno).
Por fim, depreende-se do exposto que, na seara do ordenamento jurídico pátrio, utiliza-se a teoria mista da aplicabilidade do CDC, é dizer, as disposições consumeristas serão aplicadas aos serviços públicos no que for compatível ao caso concreto, e não de maneira indiscriminada.

REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Alexandre Santos de. SERVIÇOS PÚBLICOS E DIREITOS DO CONSUMIDOR: POSSIBILIDADES E LIMITES DA APLICAÇÃO DO CDC. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 15, Agosto/Setembro/Outubro, 2008. Disponível na internet: Acesso em: 13 de Março de 2011.

AZEVEDO, Fernando Costa de. A Suspensão do fornecimento de serviço público essencial por inadimplemento do consumidor-usuário. Argumentos doutrinários e entendimento jurisprudencial Revista de Direito do Consumidor 2007 ? RDC 62. Doutrina Nacional, 2007.

BENJAMIN, Antonio Herman de . V. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

ROCHA, Fábio Amorim da. A legalidade da suspensão do Fornecimento de Energia elétrica aos Consumidores Inadimplentes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
Autor: Breno Nazareno Costa Felipe


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