Memórias Douradas: Experiencias de Esposas de Garimpeiros que se tornaram professoras em Itaituba - PA



Memórias Douradas: lembranças de esposas de garimpeiros que se tornaram professoras em Itaituba, PA

Rudney Ferreira Bonfim
Sueli Teresinha de Abreu Bernardes


Resumo
Este artigo apresenta a análise de narrativas de mulheres de garimpeiros que se tornaram professoras durante o "ciclo do ouro" em Itaituba, Pa. Parte-se das questões: que sentido essas mestras leigas atribuíram às experiências vividas e evocadas em suas lembranças? De quais saberes se valeram para exercer esse trabalho? As falas das narradoras organizam-se em uma unidade de significado ? lembranças do ofício ? e são analisadas sobretudo à luz da perspectiva teórica de Tardif (2002). A pesquisa realizada apresenta pessoas que fizeram a história da educação acontecer de algum modo no município emldurado pelas águas do Tapajós. No entanto, essas mulheres que se consideram vitoriosas no magistério leigo exercido, ficam na penumbra do reconhecimento acadêmico. Por isso, procurou-se dar voz a elas.

Palavras-chaves - Lembrança do ofício. Mulheres de garimpeiros. Professora.


Introdução

A época do ouro no município de Itaituba, PA, tem sua culminância na década de 80 onde se constitui um tempo para uma experiência singular de exercício do ofício de educador. Nesse período, esposas de garimpeiros, sem formação escolar para a docência, assumiram o papel de professoras para atender as crianças da localidade, pois não existiam profissionais formadas para o magistério. Em contexto de pobreza, de busca por melhoria de vida por meio do ouro garimpado, famílias inteiras migraram para a cidade e em conseqüência dessa migração, crianças viviam sem escolarização. Faltavam mestres e escolas. Enquanto os maridos permaneciam em seu trabalho no garimpo, mulheres buscavam a sobrevivência na cidade. Em meio à carência de educação para os filhos, algumas mulheres decidiram colaborar para resolver o problema escolar. Resolveram tornarem-se mestras, alfabetizar os pequenos.
Neste artigo, a intenção é contribuir para a extensão do olhar, para a abrangência do que experiências vividas podem oferecer na discussão sobre práticas educativas. Temos por intuito partilhar um conhecimento sobre experiências docentes que poderá contribuir para (re)pensar os saberes pedagógicos na sala de aula, mas sem a intenção de elaborar uma proposta pedagógica. Para isso, ouvimos cinco narradoras que foram esposas de garimpeiros imigrantes no ciclo do ouro e atuaram como docentes em Itaituba sem a formação para o magistério. Usaremos pseudônimos para dispormos suas falas.
Por meio das lembranças evocadas, apresentamos o sentido que as mulheres de garimpeiros dão a seu trabalho. Percebemos que a diversidade de atividades compõe grande parte de suas vidas. Há o trabalho de casa, mas sobretudo o da escola. Comentamos o labor antecedente ao ofício de professoras, os saberes constituídos na própria experiência e a relação das narradoras com seus saberes experenciais.
As narrativas são articuladas com referenciais teóricos que subsidiam a escuta das falas, em especial com a proposta de Tardif (2002) sobre os saberes responsáveis pela formação profissional.


O labor antecedente ao ofício de professoras

Partimos do princípio de que os saberes relacionados ao trabalho são sempre temporais, e que esse tempo imprime modificações no próprio sentido que a educadora leiga atribui a sua prática. Entendemos que a formação de um professor não acontece exclusivamente na forma oficial escolar, mas também no processo de reconstrução constante do próprio aprendizado, que se torna saber docente. Dessa forma, interessou-nos investigar, inicialmente quais os antecedentes que foram determinantes para imprimir o caráter docente no trabalho dessas mulheres em Itaituba.
Fátima afirma que não tinha nenhuma vontade de ser professora, mas que as dificuldades a levaram a sala de aula, apesar de entender que via na educação uma possibilidade de mudar de vida, quando ela diz: "... Eu via que era através do estudo que a gente ia conseguir alguma coisa".
Para essa professora, o estudo e o trabalho são realidades entrelaçadas em sua memória. Assim ela nos remete ao entendimento de sua vida enquanto trabalhadora e educanda: "eu levei minha vida trabalhando e estudando... mas trabalhando em casa, aí meu marido saiu do garimpo e foi pra roça... aí que o sofrimento foi grande! Porque eu estudava e nas férias eu ia pra lá, e tinha que trabalhar roçar, capinar..."
Conciliação entre trabalho e estudo apresenta-se como desafio, a narradora assim continua:

[...] Lá começamos a botar roça e já tirávamos o alimento de lá dessa roça e eu todo tempo estudando, estudando, ai chegou o dia deu terminar de estudar, terminei o segundo grau, e eu só terminei o segundo grau porque as meninas fizeram minha matrícula, eu dizia que não ia ser professora nunca na minha vida, e as meninas ? não tu vai ter que fazer magistério! e eu disse que estava velha e pensei ? mas menina eu disse que nunca mais ia dizer essa palavra, não to velha não... Não vou dizer mais não.

Nota-se num primeiro momento uma tentativa de se deixar vencer pelas dificuldades dando-se a desculpa "estava velha", ao mesmo tempo irrompe a vontade de superar-se: "Não to velha não".
A memória de Fátima registra ainda que os saberes adquiridos não são suficientes para auxiliá-la no seu percurso de preparação ao magistério, ela sente as dificuldades de continuar, devido sua formação básica deficiente.
[...] Fui estudar o segundo grau, com muita dificuldade porque o estudo é fraco e não adianta a pessoa dizer que ele faz um supletivo e um EJA que ele sai bem... Porque ele num sai não... Ele sai meado, mas bem, bem ele não sai porque é pouquíssimo tempo pra aprender é pouco tempo pra muita coisa e não dá tempo pra ele aprender. Então eu sempre me senti fraca nos estudos, mas nunca fraca na mente, no que eu queria fazer, eu sempre quis estudar mais.
Em relação ao trabalho as professoras deixam transparecer certa visão apostolar do exercício da docência. O que parece bem notório na fala de Vilma.

[...] fui trabalhar na Semente do Saber, mas só que quando eu fui pra Semente trabalhar eu vi que era muito diferente do nível dos alunos da escola pública, e eu muitas vezes me interrogava: ? poxa lá eles tão precisando mais de mim do que os daqui, aqui o salário é melhor, pois na semente eu ganhava bem mesmo, a vista do município, mas o coitado a que não tinha como pagar e foi pra escola pública, eu coloco assim coitado o aluno... Mais carente, ele precisava mais de mim do que aqueles que estavam lá, e eu trabalhei 3 meses e disse que não ficaria mais... Que ia voltar pra escola pública, pois era duma escola pública que eu tinha ido, então o que eu tinha que dar pra uma escola particular eu ia dar pra uma pública [...].

Com essa fala podemos inferir que a profissão docente ainda está muito ligada há um tempo, voltado ao magistério, como missão, em que o professor é uma espécie de redentor. O sentido da escolha da profissão e do seu exercício está intimamente ligado á representação que as narradoras retiveram em sua memória, marcado por uma "origem de sua paixão e de sua opção pelo ofício de professor" (Tardif, 2002, p. 75) que podem influenciar as práticas pedagógicas das professoras. Essa idéia, atualmente ultrapassada do ponto de vista teórico é fortemente marcada na construção identitária como uma profissão de missão e sacerdócio.
Outro fato mostrado nas narrativas, que Vilma traz para nossa reflexão é a ausência de professoras para o exercício do magistério:

[...] o meu primeiro grau foi feito através dum curso, e esse curso era dado pelo campus avançado do Projeto Rondon , então o Projeto Rondon capacitou vários professores que não tinham o 1º grau completo pra poder assumir, porque não tinha professores que tinham magistério, Itaituba era contado os professores que tinham magistério então foram esses professores que foram capacitados pra trabalhar com... Na educação.

O Projeto Rondon criado em 11 de julho de 1967 oportunizou o contato de estudantes universitários com as comunidades interioranas do País, realizando atividades assistenciais isoladas. Essa interação foi um dos processos de preparação (não formal ainda) de pessoas leigas para a docência diante da carência de profissionais formados nas áreas.
Francisca tinha cursado apenas até a 6ª série e nos fala da dificuldade que foi encontrar emprego em Itaituba:
Eu trouxe do Maranhão um módulo, o Logus II, aí esse módulo um dia eu fui lá na secretaria de educação conversei com a professora Antonieta e professora Madalena e pedi emprego mesmo, aí sempre não tinha, a resposta era não... Tá lotada as escolas, ate porque elas não me conheciam né e se tornava mais difícil aí falei pra ela e ela falou o grau de instrução que eu tinha na época, eu disse: olha eu fiz apenas até a, na época eu tinha a 6ª série que eu fiz lá no maranhão.
Vê-se com esse relato que a formação das narradoras teve início tardio e com pouca escolarização. Apesar disso, nota-se que apesar da inexperiência as narradoras são capazes de iniciar suas trajetórias como professoras.
Essa afirmativa nos permite seguir a outra unidade de análise:


Saberes constituídos na própria experiência

Os saberes experienciais ou práticos são desenvolvidos no exercício da função e na prática da profissão, onde se desenvolvem saberes específicos, a partir do trabalho diário, bem como no conhecimento do meio em que atua. Assim, os saberes experienciais adquiridos e desenvolvidos pelas narradoras, assumem uma importância relevante, pois estes saberes passam a ser incorporados "a experiência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades de saber-fazer e de saber-ser". (Tardif, 2002, p. 39).

Os saberes de nossas narradoras foram constituídos pela experiência, e são esses que priRaimundamente valeram de base para seus ofícios, por isso tem um peso de importância na compreensão de sua trajetória profissional. As experiências em sala de aula e com a coletividade maior do âmbito educacional, resultaram em habilidades de saber-fazer e saber-ser, idêntico ao que lemos na citação acima de Tardif.
Vejamos primeiramente as diversas situações e condições pelas quais nossas narradoras foram inseridas neste contexto educacional segundo seus relatos:
Fátima, como a maioria das pessoas que chegavam a Itaituba, passava por grandes dificuldades financeiras, e afirma que a necessidade foi seu maior motivo:

Me tornei professora pela necessidade com certeza, eu tinha muita necessidade.

Somente estar num lugar de onde vinham promessas de melhoria de vida não era suficiente. Era necessário agir, ir à busca da realização do sonho, enquanto os esposos estavam nos garimpos tinham que procurar alternativas para se manterem até que viessem notícias dos garimpos, e sempre com a esperança de que junto com as notícias viessem gramas de ouro, o que significaria êxito dos garimpeiros. Francisca também nos conta suas dificuldades e sua permanente busca por trabalho:

[...] e eu sem trabalhar, trabalhando assim lavando roupa, engomando pros outros... Fazendo uma comida aqui outra ali... Quando pediam e sendo ajudada pelos outros, e sempre eu fui no Gonzaga Barros , e comecei a conhecer assim a primeira pessoa que eu conheci foi a Profª Célia, aquela forte... e aí eu perguntava pra ela se não tinha vaga pra trabalhar, nem que fosse de servente naquele tempo era bem mais fácil pra gente conseguir trabalho nas escolas.

Afazeres domésticos eram sempre muito executados pelas mulheres migrantes, porém muito cansativos, pouco remunerados e inconstantes, precisava-se de algo mais "seguro", um emprego. Francisca logo seguiu em busca por vagas nas escolas, pois achava que em escolas era mais fácil arrumar emprego.
A falta de professoras com magistério era outro fator que levava à busca de voluntárias que aceitassem iniciar o ofício de professor mesmo na condição leiga. Entendia-se que o melhor seria ter pessoas que se dispusessem a aprender o ofício, do que deixar alunos sem estudar. Vilma nos confirma em sua fala a ausência de professores formados:

[...] porque não tinha professores que tinham magistério, Itaituba era contado os professores que tinham magistério então foram esses professores que foram capacitados pra trabalhar.

Algumas mulheres solicitavam, outras eram convidadas, mas todas necessitavam trabalhar, visto que agora faziam parte de uma realidade repleta de inconstâncias. Luzia nos fala do convite recebido:

Em 1988, comecei a dar aula com 18 anos, era uma primeira série, o comandante me convidou...

Não era prudente esperar dinheiro apenas dos maridos, então quando as oportunidades apareciam, eram aproveitadas.
Diferentemente da pesquisa realizada por Lessard e Tardif (1996- 2000) em que as professoras expressavam em seus depoimentos que a opção pela profissão teve uma forte influência na origem familiar e/ou por vir de uma família de tradição de professores, denominando por eles de "mentalidade de serviço", comum algum a ocupações femininas, as narradoras da pesquisa, conforme relatado, tiveram outra experiência de vida. Aprender a ser educadora aparece como uma vivência constituída no exercício diário envolvendo disposição por parte de quem pretende continuar atuando nesta área.
Ilustrando sua disposição, Luzia mostra-nos a dificuldade no início de sua carreira em busca de uma adequação ou permanência no ofício de professora e como reagia perante as dificuldades.

Inexperiência né... Não passamos por nenhum treinamento... E já encaramos uma primeira série. Não sei hoje, mas antes quando você iniciava você já pegava uma alfabetização ou uma primeira série, acho que a diretora tinha essa visão de que o começo era mais fácil, mas não é porque ali é a base. Você se doava mais, dava mais assistência pros alunos. Não passávamos por nenhum treinamento... Nem sabíamos o quê que tu ia trabalhar, pegávamos assim os alunos e íamos dando o conteúdo aleatório, não tinha um treinamento, uma semana pedagógica quem nem tem hoje.

A inexperiência das docentes as impedia de fazer planejamentos, ou quando o faziam era de forma assistemática e baseados somente nas observações que detinham de seus momentos enquanto alunas. Agiam agora em papel inverso, tentando, enquanto professoras, aplicar aos seus alunos o que lhes parecia eficaz.
Uma passagem da fala de Fátima nos mostra sua dificuldade em planejar suas aulas e suas ações perante sua condição leiga:

No começo foi difícil, mas como sempre fui uma pessoa aberta, conversadeira, sempre as meninas iam me dando dicas, livros, como fazer prova como fazer plano de aula, na creche não era muito puxado... Porque não tem muito planejamento... Meus alunos eram de 5 anos e só tinha reuniões, tem conceito, não tem negocio de lançar nota... lá era o dia todo entrava 8 e saia ás 15.

A narrativa de Francisca do mesmo modo reflete sobre tal questão:

Ah na época a gente não se preocupava muito em ta fazendo plano de aula, de reunir com os colegas... Pra tirar dúvida né, mas com o passar do tempo isso foi melhorando porque sempre tem as reuniões pedagógicas pra conversar uns com os outros... E a gente trabalha sempre em cima de conteúdos e esses conteúdos que a gente aborda em sala de aula todos são escritos, tirando duvidas onde que tem, e usando sempre nosso plano de aula, que antigamente a gente não era tão cobrado, o cobrado era que a gente tinha que estar em sala de aula, mas o diretor não tava ali pra ver plano de aula, nem mesmo estar andando perto da sala pra ver os alunos perto não acontecia.

Como iniciante no ofício, a narradora mostra- nos que tinham autonomia em seu trabalho, uma autonomia que pode ser confundida com isolamento, uma vez que nos conta a ausência de acompanhamento do diretor, nem de qualquer outro técnico para acompanhar o andamento de sua prática pedagógica.
O trabalho das docentes era notoriamente realizado e construído pela prática. A generosidade em compartilhar seus saberes existia timidamente, mas mesmo dessa forma era edificada uma cultura coletivizada de um grupo de educadores.


A construção do saber docente e a cultura escolar do cotidiano.

Pensamos que educar é objetivar a integração do ser no mundo, preparado para lutar por melhores condições de vida e condições imaginadas para o meio social no qual esteja inserido. Tem em vista, em iguais intenções, a transformação do ser humano mais compromissado com a sociedade. A pessoa é o centro da objetividade educacional, assim como o eu do aluno (e o eu que virá a ser futuramente). Dessa forma o ensino deve pressupor, a partir das atividades do professor e do aluno, a busca da transformação social e o trabalho em prol desta transformação, a interação com a natureza e a garantia material de gerenciamento de sua própria vida.
O ensino é secular. O ato de ensinar, não é um ato qualquer, é um ato que opera também sobre o indivíduo que ensina. O ensinante traz em sua ação sinais de sua atividade, e essa tão individualizada tem suas características correlacionadas intimamente com sua atuação como docente.
De acordo com a história, o tema da docência é o centro de várias discussões e objeto de inúmeras pesquisas ao longo dos tempos. A discussão sobre saberes docentes não pode ser considerada uma temática atual, uma vez que é realizada paralelamente às diversas discussões de temas afins como o ensino-aprendizagem, a prática docente e outros. Nessa visão, a escola era entendida como local onde o professor, detentor de todo saber, oportunizava o aprendizado, ele era responsável pela transmissão de qualquer saber ao aluno.

Pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experenciais. (Tardif, 2002, p. 36).

Todos os saberes amplamente valorizados não se limitam a simples transmissão de informações, mas a um processo em que o educando aprende em determinado período, e o educador adquire prática de construção de conhecimentos. Mas ao falar sobre construção de conhecimentos, voltamos a uma questão anterior, que colaborará para a discussão aqui estabelecida. É necessário também que cheguemos a um entendimento sobre o que é o "saber", tal como seu significado é utilizado neste trabalho. Para isso, recorremos novamente a Tardif.

[...] os saberes docentes são temporais, porque resultam de um processo de construção ao longo do exercício profissional; são ecléticos e sincréticos em virtude de que no decorrer da sua trajetória profissional o professor utiliza teorias, concepções e técnicas; são personalizados e situados, pois são adquiridos e incorporados à carreira docente e são difíceis de serem dissociados das pessoas, das suas experiências e das suas atividades profissionais." (Tardif, 2000, p. 5).

Com os anos, o professor passou a ser visto de outro modo. Uma forma mais peculiar, individual, especialmente singular. Singularidade não no sentido de unicidade, mas de individualidade. Um profissional com cultura própria, valores e hábitos harmoniosamente construídos.
Levando em conta que os "personagens e o cenário" envolvidos na educação mudaram, a temática sobre os saberes docentes agora se apresenta de uma forma diferente também, visto que várias são as discussões em torno dela. O docente passou a ser visto como um profissional que assimila e amplia conhecimentos também a partir da prática e na confrontação com o a realidade da profissão.
No ofício de ensinar há uma preparação, seja ela formal ou informal. Informal quando se usa de saberes cotidianos, e formais quando passa por cursos de formação, adquirindo assim conhecimentos teóricos e técnicos que preparam para o trabalho. Na primeira o conhecimento é construído na prática. Na formação escolar há uma experiência direta com o trabalho, sendo este segundo fator importante, pois a prática contribui na formação e incorporação de saberes necessários para que o professor realize seu trabalho. A esse respeito, lemos em Saberes docentes e formação profissional:
Raimunda nos faz perceber a temporalidade, a questão da cultura e a disciplina discente, quando reflete que:

Naquela época era melhor, que eu comecei trabalhar, só que assim não era assim, eu nunca fui professora tradicional de falar e o aluno ficar caladinho, encolhidinho... Eu sempre dei liberdade pros meus alunos, mas eu falo assim pra eles darem mais atenção, obedecer né, não querer sair da sala, hoje ate tem que colocar aluno pra fora porque não ta dando de agüentar. Teve um ano que eu sofri muito porque era questão de adolescente, questão de namoro, foi uma época muito difícil pra mim, mas é questão da metodologia, só tinha mesmo o livro didático, às vezes nem tinha...

Sua forma de relacionar-se com os alunos é exercida de maneira mais próxima, particular, e não somente de acompanhamento didático. Percebemos isso quando nos fala que dava liberdade a eles, não se considerando assim uma professora tradicional. E por meio dessas experiências de relações com os alunos as narradoras dão grande ênfase à sua experiência no ofício como fonte primária de sua competência, de seu "saber-ensinar", o que expressa a importância que atribuem a esses saberes.
Todos nós temos uma vida cotidiana, com suas dificuldades, particularidades, marcas, imprecisões, subversões, rotinizações e outras características peculiarmente variáveis de sujeito para sujeito, e nesse cotidiano é que demandam os diferentes ramos do conhecimento e atuação humana. Falar sobre o cotidiano é ter o sujeito como ponto primário para essa discussão.

Muito se fala sobre o cotidiano, tratado em vários textos como categoria de análise, como parte de um todo, como uma esfera do social, como uma dimensão da realidade que carrega características peculiares: senso comum, alienação, mesmismo, que anda por si, etc. [...] independente do que pesem essas afirmações e de que fonte teórica brotam, todos reconhecem que não há uma realidade humana que não esteja, bem ou mal, imbricada e vinculada à realidade do concreto cotidiano. (Tedesco, 1999, p. 27).

Para entendermos sobre os saberes docentes, seus saberes referentes à prática docente, foi importante levarmos em conta que o fato de que tais saberes são incorporados a partir da prática, do que chamamos de relação constituída, são saberes internalizados no decorrer da prática diária, saberes específicos que têm validade na medida em que o contexto no qual essa prática pedagógica cotidiana se insere.
Nessa perspectiva, recuperar o conceito de cultura escolar é fundamental para o entendimento de algumas características dessa discussão. Temos entendido a escola como um espaço que permite, favorece e estimula os sujeitos, com atuações projetadas e desempenhadas visando a construção de conhecimentos e a transformação da sociedade. Um ambiente onde haja um clima em que as relações se construam a partir de pontos fundamentais como confiança, aquiescência, receptividade, franqueza e respeito mútuo. Um cientista social, em seus escritos sobre antropologia da educação afirma que:

A cultura é e está nos atos e nos fatos através dos quais nos apropriamos do mundo natural e o transformamos em um mundo humano. E ela está também nos gestos e nos feitos com que nos criamos a nós próprios, ao passarmos - em cada individuo, em um grupo humano ou em toda nossa espécie ? de organismos biológicos a sujeitos sociais. Ao criarmos socialmente os nossos próprios mundos e ao procuramos dotá-los e a nós próprios e aos nossos destinos de algum sentido. Somos aquilo em que nos transformamos ao continuamente transformarmos o mundo natural de que somos parte e de que vivemos. (Brandão, 2001, p. 180)

Independentemente de nossa escolha nascemos inseridos em um grupo social que apresenta suas práticas culturais, suas narrativas e características de um mundo no qual fomos inseridos. Nascemos num composto cultural no qual interagimos com ele a partir da aprendizagem de formatos organizacionais e de convívio que são dialeticamente integrados aos nossos processos particulares. O docente traz consigo características que lhe atribuem uma identidade própria. A maneira como é, age, pensa, organiza suas aulas, sua relação com seus alunos, com outros professores, a carga histórica que traz ao longo de sua vida são características relevantes que tem que ser consideradas ao tentarmos uma compreensão do aparelhamento e da cultura escolar.
Dentro do contexto de cultura e relações estabelecidas, é importante que o professor saiba lidar com as relações de poder dentro do ambiente educacional, principalmente no que tange uma enorme quantidade de conflitos entre o que se entende por autoridade e autoritarismo. Conceitos complexos e que muitas vezes são confundidos. Luzia nos fala um pouco de um fato marcante e intrigante na sua relação com a diretora da escola:

A minha diretora era muito tradicional, muito rígida e a gente discutia. Ela me fez chorar várias vezes. Eu lembro uma vez que eu tava com uma primeira série e no meio do ano eles já tavam bem alfabetizados, eu pegava aluno de todo jeito e já tava bem entrosada, aí ela pediu pra eu trocar de turma com a filha dela, aí eu disse pra ela que não aceitava, e perguntei por que ela queria que eu trocasse, e ela falou que era justamente por isso, porque meus alunos estavam desenvolvidos e os dela não, e a filha dela só tinha a 5ª série e estava dando aula na primeira, e ela queria que eu deixasse minha primeira série que já estava preparada, pra ir dar aula na alfa da filha dela.

Foucault colabora para a discussão afirmando que

o poder não existe, existem práticas e relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social. (Foucault, 1980, p.138)

Esse pensador francês caracteriza o poder como antropológico, existente na particularidade de cada indivíduo. E esse, por sua vez, em determinadas situações, emerge de forma desarticulada, comprometendo o contexto educacional. Nota-se aqui a importância do papel do gestor frente ao trabalho do educador. É imprescindível que este primeiro tenha consciência frente às microrrelações de poder do seu cotidiano, conservando assim o papel de coordenador do contexto escolar, e não de executor de um autoritarismo com favoritos beneficiários. Situações favoráveis de forma conjunta devem ser almejadas, visto que o conjunto das forças de uma instituição precisa estar em sintonia para que o cotidiano não passe por desarticulações que prejudiquem sua dinâmica. Percebemos aqui a necessidade da contínua reflexão dos componentes de uma escola.
No cotidiano do professor, é necessário que ele realize uma contínua reflexão sobre suas ações, sobre sua cultura, seu modo de ver o mundo, os valores que norteiam suas relações com os sujeitos de seu relacionamento diário. A reflexão como ponto importante nesse processo, faz-se necessária enquanto fator primordial para a percepção e avaliação da maneira com a qual os docentes vêm agindo. Nesse sentido, percebemos que, mesmo sem a formação escolar necessária, já havia em nossas narradoras uma espécie de "percepção da qualidade necessária de sua atuação", pois mesmo sem conscientemente saber que efetuavam ações psicologicamente comprometidas com o eficaz andamento de suas atividades e o bem-estar das relações entre os sujeitos do âmbito educacional, elas já se aproximavam dessa dimensão.


A relação das narradoras com seus saberes experenciais

Nossas narradoras utilizam seus saberes experenciais, uma vez que tenham iniciado seus ofícios como leigas, sem formação alguma. Esses saberes são considerados por Tardif como

[...] saberes específicos, baseados [no] trabalho cotidiano e no conhecimento de seu meio [...] brotam da experiência e são por ela validados. Eles incorporam-se à experiência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber-fazer e de saber-ser. (Tardif, 2002, p. 39)

A formação profissional implica um congregado de saberes que são histórica e gradativamente acionados ao longo da particular atuação. Tais saberes resultam de sua participação ativa num contexto educacional social, e de todas aquelas relações estabelecidas com os sujeitos nos locais de trabalho. Ingressar na docência é abrir um caminho de novas possibilidades e fontes de conhecimento, que vão integrando a constituição da identidade profissional.

O saber desses educadores está continuamente unido a uma experiência de trabalho com outros (colegas de trabalho, alunos, pais, comunidade, etc.) enxerga-se como um saber ancorado a uma tarefa abstrusa (educar), que situa-se em um espaço onde se desenvolve (sala de aula, escola, ambientes alternativos, etc.), e enraizado em uma instituição e em uma sociedade; esses saberes carregam consigo efeitos do seu trabalho, pois entende-se que não seja apenas um elemento no trabalho, mas algo que é produzido e modelado no e pelo trabalho. (TARDIF, 2002, p. 52).

Percebemos a relação apontada por Tardif, quando Fátima nos fala sobre sua relação com suas colegas de trabalho:
Sempre foi boa essa minha disponibilidade de conversar de tudo, as amigas me ajudavam a trabalhar melhor, os alunos eram muito bons e sempre tive carinho muito grande dos pais, nunca tive problemas, sempre a gente encontra, seria demagogia dizer que não, mas foram poucos...
A relação das narradoras com seus saberes é de extrema interação. São saberes constituídos a cada momento de atuação, a cada dia, a cada aula, novas experiências vão sendo realizadas e delas extraídas conhecimentos a serem utilizados paralela e continuamente em sua atuação em sala de aula. São experiências inseridas dentro de um contexto de múltiplas possibilidades, o que é mediado por aquilo que Tardif chama de condicionantes diversos para a atuação do professor. E ele nos explica que:

No exercício do cotidiano de sua função, [para o professor] os condicionantes aparecem relacionados a situações concretas que não são passíveis de definições acabadas e que exigem improvisação e habilidade pessoal, bem como a capacidade de enfrentar situações mais ou menos transitórias e variáveis. (Tardif, 2002, p. 49)

Situações adversas, modificadoras, situacionais, instigadoras são parte integrante do dia-a-dia docente. São esses momentos responsáveis pela construção da identidade profissional. É na e pela experiência que os aprendizados das professoras-esposas-de-garimpeiros foram inicialmente constituídos estabelecendo assim a formação prática de um saber docente.


Considerações finais

Em nossa trajetória realizamos escolhas a todo instante. As mais importantes certamente identificamos como as que nos edificam, ajudando a construir o que hoje somos. E o que hoje somos é fruto do que ontem quisemos ser.
As narrativas compõem o resultado de uma experiência vivida em um contexto que colabora para o entendimento do ofício do professor, nas circunstâncias em que a academia não conseguiu formar os docentes que uma determinada comunidade requeria.
Estamos diante de uma situação particular no âmbito educacional, em que foram apresentadas experiências singulares às quais caberia uma discussão mais aprofundada sobre as questões envolvidas. Mas entendemos que os registros das falas contribuem inicialmente para suscitar indagações que sustentarão futuras reflexões.
As análises continuam abertas para novos aportes que sejam capazes de colaborar para o entendimento do ofício de professor, possibilitando assim, novos saberes.


Referências Bibliográficas:

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O conhecimento, a cultura e a educação: algumas anotações em tempos de novo milênio. In: Educativa, Goiânia. v. 4, n. 2, p. 303-332, jul./dez. 2001.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22. ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006.

MINISTÉRIO DA DEFESA. Projeto Rondon . 2009. Disponível em: Acesso em: 20 ag. de 2009.

ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de subjetividade, v. 1, n. 2 ? 241?51. São Paulo: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade - PUC-SP. 1993.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes. 2002.

__________. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências em relação à formação do magistério. Revista Brasileira de Educação. São Paulo: nº 13, jan/fev/mar/abr, 2000

TEDESCO, João Carlos. Paradigmas do cotidiano: introdução à constituição de um campo de análise social. Santa Cruz do Sul: EDUNISC. 1999.


Autor: Rudney Ferreira Bonfim


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