DA ANTIGUIDADE À MODERNIDADE: O HERÓI TRÁGICO E SUA JORNADA



1. INTRODUÇÃO

A tragédia está na origem da literatura ocidental. Foi estudada por grandes nomes da filosofia e das artes, e praticada por grandes escritores. Na tragédia, ficou consagrada a figura do herói trágico e sua dupla finalidade: estética e moral, através da katharsis . Posteriormente, com o advento do mundo moderno, houve a hibridização da tragédia com outras modalidades que não só do gênero dramático. Assim, a própria imagem do herói se transformou. As grandes narrativas (e acrescenta-se aí não só as narrativas, mas também a tragédia) desapareceu com a decadência do modelo que a engendrou. Nossa proposta é mostrar que, mesmo depois do desaparecimento da tragédia clássica, ainda é possível encontrar na da modernidade o herói trágico, não mais o aristocrático da antiguidade, mas o trágico pós-romântico inserido numa época outra, mas que ainda guarda muitos de seus atributos. Para tanto, tomaremos como ponto norteador a letra da canção Joquim, do cantor e compositor gaúcho Vitor Ramil, presente no disco Tango, de 1987, relançado em CD em 1996. Letra que é baseada em fatos reais da vida de Joaquim Fonseca (comerciante, mecânico e inventor amador), nascido em Satolep em 4 de agosto de 1910 e falecido na mesma cidade em 12 de julho de 1968.


2. DA TRAGÉDIA

A tragédia é uma criação dos antigos gregos, ela tinha uma dimensão estética ligada a objetivos éticos e morais, kalokagathia, tidos então como uma espécie de parâmetros de conduta da nobreza. A tragédia tem seu início no culto ao deus Dioniso (Baco), quando da institucionalização do que conhecemos por Dyonissia, que eram os Concursos Trágicos, no governo de Pisístrato, em cerca de 536 - 534 a.C., a partir de então, a tragédia evoluiu até seu ápice no século V a. C., quando surgiram, talvez, os três maiores autores trágicos de que se tem ciência: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Tendo seu ocaso à época de Aristóteles, século IV a.C.
A tragédia se inscreve no gênero dramático, foi criada para ser representada em um palco por atores mascarados, personnas, e girava em torno de altos personagens e valores fundamentais da existência, sobretudo, na escolha dos assuntos a representar. A aristocracia favorecia quase exclusivamente motivos oriundos dos velhos mitos helênicos de deuses e heróis .
Na tragédia, a desventura humana vive seu impasse, o antagonismo sem descanso, a impossibilidade de triunfar num mundo hostil aos valores , por isso tende a acabar de forma funesta para restaurar o equilíbrio do cosmos que foi quebrado pela ação errônea de algum homem em relação aos desígnios das moiras . Homem que, por sua hibris, ignora que é o mais fraco na correlação de forças e acredita que ficará impune ou mesmo que sairá triunfante desafiando aos deuses, mas tal insubordinação acaba por desencadear a força conhecida por nemesis , é quando não há mais nada que se possa fazer, exceto aceitar o destino e dar-se ao sacrifício.

[...] sua ação é o percurso de sua vida, seu trajeto, sua trajetória. A mesma ação será visível de dois modos inteiramente distintos. Primeiro, como caminho de sucesso, depois, como caminho desgraçado (BOCAYÚVA, 2008. Pág. 48).

Em suma, era a tragédia grega a representação do homem diante da vida, na qual, apesar de seus esforços, ele nada mais era que um refém experimentando toda a sua fragilidade e impotência diante da existência humana e seu inevitável percurso, tanto que sua origem sacrificial está mesmo na raiz da palavra ?tragédia? que vem de trágos (bode), mais oidé (canto): é um canto dirigido ao bode sagrado, representante do próprio Dioniso .
Mais tarde, esta ode ao bode, passou a acontecer quando em favor da expiação de alguma culpa por parte da comunidade, onde um bode era sacrificado pelo bem da coletividade ante os deuses. É do sacrifício remissivo deste bode, animal que em muitas civilizações é tido como elemento sacrificial, que surge a expressão bode expiatório .
A tragédia é, portanto, a representação ao mesmo tempo da rebeldia do homem em relação à vontade divina, e do peso inexorável da "mão-de-ferro" do destino sobre aquele que contra ele se rebela.


3. DO HERÓI TRÁGICO

O herói trágico tem seu aparecimento na antiguidade clássica, por conta das epopéias e tragédias. Ele se nos apresenta como um ser superior, é resultado de uma hibris, união entre um ser divino e um ser humano, o que é uma violação da lei natural das coisas e isto caracteriza os seres superiores, os heróis e aristocratas, mas é também a desgraça, a origem da desgraça do herói .
Mas, em que consiste exatamente esta falha trágica? - Podemos questionar, ou ainda: Como pode haver desgraça no fato de um ser mostrar-se superior? É o que Vogler nos esclarece:

Os heróis trágicos, freqüentemente, são pessoas superiores, com poderes extraordinários, mas tendem a se considerar iguais aos deuses, ou até melhores que eles. Ignoram advertências sensatas ou desafiam os códigos morais locais, achando que estão acima das leis divinas e humanas. Essa soberba é fatal, acaba, inevitavelmente, por desencadear a força chamada nemesis, originalmente o nome de uma força de retribuição, cujo trabalho era reequilibrar as coisas, geralmente por meio da destruição do herói trágico (VOGLER, 2006. Pág. 151).

A modernidade, Como dito, uniu a tragédia à outras modalidades; assim, a própria imagem do herói trágico se modificou. Se na antiguidade, o herói pertencia à aristocracia; hoje, na modernidade, a classe social do herói mostra-se, possivelmente, outra:

Somente no século passado é que o desenvolvimento da tragédia burguesa pôs fim à idéia de que os protagonistas do acontecer trágico deviam ser reis, homens de estado ou heróis. (...) só que hoje não mais o interpretamos do ponto de vista da classe social, mas do ponto de vista humano num sentido mais transcendente. E em lugar da alta categoria social dos heróis trágicos coloca-se agora outro requisito, que eu poderia configurar como considerável altura da queda: o que temos de sentir como trágico deve significar a queda de um mundo ilusório de segurança e felicidade para o abismo da desgraça ineludível (LESKY, 1976. Pág. 26).

Toda obra pertence ao seu tempo, assim o é com a tragédia, já que seu teor é a representação da vida. Deste modo, uma transformação tão significativa, como a mudança da classe social a qual pertence o herói, é algo que não se dá por si só, tampouco acontece da noite para o dia, mas que necessita de algum tempo, tal qual de profundas transformações histórico-sociais para acontecer:

Devido ao processo de industrialização e a daí decorrente organização do operariado, começam a ser tornar altos alguns personagens de extração social baixa (KOTHE, 1987. Pág. 88).

No entanto, mesmo com a considerável distância entre a aurora trágica e a modernidade, mesmo com grandes transformações histórico-sociais e, até mesmo, com o crepúsculo da tragédia; ainda cremos ser possível encontrar o herói trágico e suas singularidades em desajustados personagens modernos. Não o herói laureado pela glória, o aristocrático de estirpe superior, precioso produto da antiguidade, é certo, mas o cambaleante trágico pós-romântico, desajustado com a ordem capitalista, herói que se sacrifica de maneira libertária para apontar sempre novos caminhos.


4. JOQUIM - Nau Libertária no Mar da Tragédia

Joquim é a história de um homem que pertencia por natureza ao plano elevado e que, por não se adaptar ao viver doutrinado do homem comum, é imolado em sacrifício. Sua inadaptabilidade, herança de sua hibris, é o que o apresenta como um desajustado, pois naturalmente pertence às alturas, daí sua dificuldade em caminhar adestradamente como os homens comuns, qual o poeta descrito por Baudelaire, nos versos d?O Albatroz:

O poeta é semelhante ao príncipe do céu
Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar;
Exilado na terra em meio do escarcéu,
As asas de gigante impedem-no de andar .

De acordo com Joquim (letra da canção), seu personagem homônimo, era um rebelde que nasceu com o bizarro dom da invenção . Entre suas máquinas incríveis, que nem mesmo Júlio Verne sonhou , estava um avião. Decidido a fabricá-lo em grande escala, Joquim foi ao Rio de Janeiro, então capital do Brasil, Aos órgãos certos, os competentes/ de coisa nenhuma/ Tirar uma licença , licença que lhe foi negada por motivos "obscuros". Mais tarde, após longa crise depressiva, ele recobra suas forças e deflagra furiosa campanha de denúncias e protestos contra os poderosos, sendo por isso, com quatro tiros, assassinado .
Nesta narrativa, já não temos a intervenção divina determinando o metron da vida humana, o que há são mecanismos coercitivos chamados por Althusser de AIE (Aparelhos Ideológicos do Estado), que servem para a manutenção de uma ordem desigual da sociedade moderna capitalista tecnocrática . O herói desta narrativa vai enfrentar alguns desses AIEs, como a escola, os políticos, a justiça.
Logo no alvorecer de sua consciência, ele vai de encontro à escola. Sabemos que a escola reproduz no micro universo que se encerra entre seus muros a cultura de subordinação do Estado. Fica implícito que o espírito inquieto do personagem o levou a não se subordinar às regras escolares, questionando-as e percebendo que as mesmas fazem parte de um processo de adestramento do sujeito ao Estado:

Muito cedo
Ele foi expulso de alguns colégios
E jurou: "Nessa lama eu não me afundo mais

Já em idade adulta, Joquim entra em conflito com alguns políticos e jurídicos, representantes do estado. Agora, na modernidade, o homem não está distante dos mitológicos deuses, mas fica ainda o conflito básico da tragédia, como afirma Celso Frederico, o debater-se entre o que é e o que deveria ser e esta angústia diante do que é, é a insígnia que marca o homem moderno.
Antes de iniciarmos a análise do nosso objeto de estudo, verifiquemos a significação profunda da queda no herói trágico, pois sua desgraça, como ensina Aristóteles, é uma queda que na verdade é uma subida ascensional:

[...] da felicidade para o infortúnio, e isto não em conseqüência da perversidade da personagem, mas por causa de algum erro grave, visto a personagem ser antes melhor que pior (ARISTOTELES; 2007, p. 52).

Partindo dessa observação do mestre grego, acreditamos possível a aproximação entre a dinâmica do herói trágico e a letra da referida canção. Já não estamos diante do herói aristocrático que possui uma elevação espiritual que lhe é natural em relação à plebe , tampouco estamos diante do inocente herói burguês contaminado pelo clima reformista da revolução francesa. O narrador nos dá um perfil desse personagem e nos mostra que ele está em consonância com o ímpeto revolucionário:

Uma eterna inquietude e virtuosa revolta
Conduziam o libertário .

O trágico, como vimos, nasceu de uma tentativa de restabelecer um equilíbrio quebrado entre homens e deuses, sendo que estes pré-estabeleciam o destino humano e eram, então, um referencial. Mas como ler o trágico na modernidade, quando os deuses viraram as costas aos homens e emudeceram, deixando-nos em um tempo marcado pelo desencanto e pelo cinismo de uma razão ligada a um modelo econômico social irracional? Diante do esfacelamento de valores humanos, decorrido do modelo social, este herói busca a afirmação do humano, mas para isso terá que enfrentar o poder dos deuses, que na modernidade são os próprios governantes . Deuses que, sob a máscara do estado, favorecem seus semelhantes e também são favorecidos, uma vez que os três poderes/são um só:/o deles . Esse caráter repressor do Estado em favor dos ricos pode ser percebido na passagem em que Joquim busca uma licença para fabricar seu avião, mas esbarra na mão invisível da burocracia estatal.

O sujeito lá responsável por essas coisas lhe disse:
"Está tudo certo, tudo muito bem
O avião é surpreendente, já vi
Mas a licença não depende só de mim"
E a coisa assim ficou por vários meses
O grande tolo lambendo o mofo das gravatas
Na luz esquecida das salas de espera
O louco e seu chapéu

Mais tarde essa máscara burocrática vai anonimamente mostrar sua verdadeira face que prioriza interesses privados em detrimento do interesse público, que deveria ser a maior prioridade. Qualquer semelhança destas passagens com as notícias sobre a inoperância do Estado na educação, na saúde e demais serviços, não é mera coincidência:

Um dia alguém lhe mandou um bilhete decisivo
E claro, não assinou embaixo
"Desiste", estava escrito, "muitos outros já tentaram
E deram com os burros n?água
É muito dinheiro, muita pressão
Nem Deus conseguiria"
E o louco cansado, o gênio humilhado
Voou de volta pra casa

À maneira clássica da tragédia, quando pensamos que Joquim está liquidado, temos a peripécia, que é, em consonância com Aristóteles, a mudança de ação no sentido contrário ao que foi indicado . Acreditamos que depois de ter negada a desejada licença, este herói está vencido, quando então ele ressurge das cinzas em todo seu esplendor. Por isso Os heróis tinham assim um sentido de modelo para os aristocratas: uma virtude essencial. Porque a qualidade principal do herói era o que os gregos chamavam de Arete (virtude): aquele que se mantém fiel a si mesmo .

No final de longa crise depressiva
Ele raspou completamente a cabeça
E voltou à velha forma com a força triplicada
Por tudo o que passou
Louco, Joquim louco
O louco do chapéu azul
Todos falavam e todos sabiam
Que o cara não se entregava

Quando nosso personagem tem sua licença negada a ação trágica se desenvolve. Ao ouvir os deuses lhe dizerem ?não?, ele não baixa a cabeça em humilde submissão, ao contrário, desafia os deuses a um bom combate; de modo que quanto mais seu poder político diminui, mais seu poder literário cresce. Joquim não se cala, uiva aos quatro ventos tudo o que sua ira e seu gênio humilhado lhe ordenam, é quando temos o agon, que é um confronto organizado, no qual se contrapõem dois longos discursos, geralmente seguidos de um intercâmbio de versos, tornando os contrastes mais densos, mais tensos, mais crepitantes. No agon, cada um defendia o seu ponto de vista com toda força retórica possível, numa grande exposição de argumentos, que naturalmente contribuía para esclarecer seu pensamento, ou sua paixão ; Como exemplificam os seguintes versos da canção:

Deflagrou uma furiosa campanha
De denúncias e protestos
Contra os poderosos
Jogou livros e panfletos do avião
Foi implacável em discursos notáveis

Mas apesar de Joquim ter voltado à sua velha forma com a força triplicada por tudo o que passou , apesar dele se ofertar em sacrifício desafiando aos deuses; este herói vai aprender, e da forma mais dolorosa, que lançar desafio aos deuses não é um ato, mesmo bravamente heróico, que passa em brancas nuvens, a ação humana não tem em si força bastante para deixar de lado o poder dos deuses, nem autonomia bastante para conceber-se plenamente fora deles. Sem a presença e apoio deles, ela nada é; aborta ou produz frutos que não são aqueles a que visava . Assim, a ação humana é um desafio à vida, ao destino e a si mesma, por fim, é um desafio aos deuses que põe em risco o equilíbrio do cosmo, que uma vez quebrado, imperativamente, precisa, e vai, ser restituído.

A ordem inevitavelmente se restabelece, transparecendo através desta ocorrência a pré-existência de uma lei, seja ela da natureza, seja ela divina, seja ela uma estrutura social rígida. O indivíduo nunca sai vitorioso numa obra de arte literária trágica (CÉZAR. 1999, pág. 145).

Daí, começamos a entrar no ponto crítico da narrativa, em que começa, de fato, o trajeto descencional de Joquim.

No meio da madrugada, sozinho
Ele foi preso por homens estranhos
Embarcaram num navio escuro
E de manhã foram pra capital
Uns dias mais tarde, cansado e com frio
Joquim queria saber onde estava
E num ar de cigarros
De uns lábios de cobra, ele ouviu:
"Estás onde vais morrer"

A imagem dantesca da atmosfera simbolicamente nos traz a leitura de um Estado diabólico, que por trás de sua aparente máscara de legalidade oculta uma rede de opressão violenta que faz naufragar no homem o deveria ser. Este conflito-naufrágio está presente na fala de Cunha: O trágico é o esfacelamento do sentido último e absoluto de uma existência, a explosão do "mundo" do homem .
O herói trágico ante o reconhecimento que se mostra como um abismo, não se amedronta; ao contrário, dança sobre o mesmo, o ser trágico o coloca esteticamente na categoria do apolíneo, como uma busca de dar um sentido maior e belo à precariedade do mundo, ainda que isso represente a sua queda . A simbologia do avião que o herói vai mais tarde projetar e construir simboliza claramente esse espírito libertário e inquieto, sempre em busca de novos desafios para seu dom criativo, para sua alegria de criar; como descreve Nietzsche: [...] a alegria de criar, que caracteriza o artista, a serenidade durante a atividade produtiva que parece desafiar todo infortúnio, é apenas uma imagem luminosa de céu e azul que se reflete no largo sombrio da tristeza .

E ele ainda ficou ali por mais dois anos
Sempre um homem livre apesar da escravidão
As grades, o frio, mas novos projetos
Entre eles um avião

Outro elemento trágico que gostaríamos de apontar na narrativa cantada, estudada neste artigo, é o caráter exemplar do herói enquanto parâmetro de elevação humana. A afirmação que segue confirma tal característica: [...] heróis trágicos ressurgem, no sentido de que, em geral, vivem na lembrança dos sobreviventes, aqueles por quem deram a vida. Sua vida sai da esfera precária do cotidiano e alça a condição de mito heróico, como o é, por exemplo, hoje, Ernesto Che Guevara. Em nossa narrativa, tal lembrança aparece nas passagens:

Aqui nessa hora é que ele nasceu
Segundo o que contaram pra mim

Todos falavam e todos sabiam
Quando o cara aprontava mais uma

Todos falavam e todos sabiam
Que o cara não se entregava

Os verbos falavam e sabiam na terceira pessoa do plural, que denunciam a indeterminação do sujeito, mais o demonstrativo todos, reiteram o caráter coletivo da narrativa, mostrando que a mesma habita o imaginário de uma coletividade pela grandeza que o herói possui ante a sociedade. Vamos, agora, dar um salto para o momento de maior tensão, já que uma análise de toda a narrativa extrapolaria os limites que um artigo impõe.
Hoje, o Estado é a classe dominante, é deus. Joquim, por ter se colocado contra deus, é condenado e morto. Na modernidade, esta história não faria sentido se fosse diferente, pois como a reprodução das condições de produção numa sociedade capitalista depende do domínio exercido por uma classe sobre outra(s), é necessário que os indivíduos submissos sejam efetivamente reprimidos quando se rebelam . Esta inversão de valores no mundo moderno, ligados aos personagens das classes altas e baixas, foi observada por Kothe:

Nos clássicos modernos, os personagens de extração social alta tendem cada vez mais a se mostrarem como baixos, enquanto, para ser um herói elevado sem ser trivial, cada vez mais o grande personagem tende a ser de extração social baixa." (KOTHE, 1987, PAG 66)

No trecho a seguir, temos a simbologia da queda que é, no fundo, elevação. A morte do personagem significa a sua imortalização. Ante o frio da morte, o herói pede ao amigo que lhe dê apenas mais um tiro:

Uma noite incendiaram sua casa
E lhe deram quatro tiros
Do meio da rua ele viu as balas
Chegando lentamente

Os assassinos fugiram num carro
Que como eles nunca se encontrou
Joquim cambaleou ferido alguns instantes
E acabou caído no meio-fio
Ao amigo que veio ajudá-lo, falou:
"Me dê apenas mais um tiro por favor
Olha pra mim, não há nada mais triste
Que um homem morrendo de frio"

As balas que cinematograficamente se aproximam em câmera lenta e o lento cambalear do herói ferido, intensificam a cena trágica de sua morte, para que suscitem em nós a comiseração, através da qual expurgamos nossas emoções (katharsis). O frio, por sua vez, assume a configuração simbólica da perda do ímpeto libertário. O herói, desde o começo luta contra a perda que o frio representa, e mesmo agora, ante o esfalecimento, não cogita tal perda; ao contrário, prefere sucumbir a dobrar-se. O que é da práxis deste herói: [...] a queda do herói trágico é o que lhe possibilita resplandecer em sua grandeza [...] uma vez que os [...] heróis trágicos ressurgem, no sentido de que, em geral, vivem na lembrança dos sobreviventes, aqueles por quem deram a vida.


5. CONCLUSÃO

Na modernidade, era em que tudo que é sólido se desmancha no ar, os deuses são cada vez mais poderosos, as moiras são cada vez mais eficientes, o metron da vida humana é cada vez mais determinado, sempre "para manter o equilíbrio do cosmo". É aí que surge o herói, ser elevado, disposto a enfrentar os deuses em favor da justiça. A sua ação pode derrubar todas as leis, a ordem natural e até o próprio mundo moral; tal ação desenha, porém, um circulo mágico de influências muito elevadas, dentro do qual as ruínas do velho mundo em derrocada acabam por construir um mundo novo . Eis o trágico herói, que revela admirável dignidade diante do irrevogável infortúnio. Mantém-se irredutivelmente firme, Quebra, mas não verga e permanece sempre fiel a si mesmo, mesmo quando sabe que suas forças não podem suportar as investidas dos deuses. Ele não se amedronta ante os gigantes ou mesmo ante o abismo, seus desígnios são mais importantes que sua própria vida. Ele é a luz que desafia a escuridão para mostrar sempre novos caminhos. Assim, o herói, em razão de suas características e atitudes, deve ser capaz de ?iluminar? a vida . Mas como os grandes personagens, ele é feito de contrários: ele é alto, mas sua grandeza está em sua baixeza; ou pode ser que ele seja alto e caia, readquirindo na queda a grandeza; ou ainda pode ser baixo, mas a medida que a história acontece, a duras penas, se eleva mostrando-se grandioso, pois é o tamanho de sua desgraça que nos mostra o tamanho de sua grandeza. Seu fracasso é sua vitória, é quando apesar dos pesares, ultrapassando peculiarmente a todo adestramento, ele compreende a condição humana e encontra, por fim, a reconciliação interior.


REFERÊNCIAS

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Autor: Reinaldo Santana


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