Democratização de cima para baixo: isso funciona ?



Democratização de cima para baixo: isso funciona ?

Em trabalho de pesquisa feito sobre administração escolar, tomando por base algumas escolas públicas estaduais da região dos DICs, em Campinas, chamou a atenção de nosso grupo a questão de democratização do ensino.
Há um paradoxo aparente quando estudamos a legislação e comparamos com a realidade do dia-a-dia escolar: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394, de 20/12/1996) é uma legislação moderna e democrática, baseada na igualdade de condições de acesso, liberdade de ensino, pluralismo de idéias, respeito à liberdade e tolerância e na gestão democrática do ensino público (art. 3º.).
A gestão democrática é garantida por meio de vários mecanismos:
? Acesso à docência e às funções de gestão exclusivamente por meio de concurso público e progressão baseada em avaliação de desempenho (art. 67).
? Criação de órgãos eletivos que permitam aos docentes e à comunidade participar da elaboração da proposta pedagógica e da própria administração escolar (art. 12º., alínea VI, e art. 14º.).
? Concessão de autonomia pedagógica, administrativa e financeira às unidades escolares (art. 15º.).
O Conselho Escolar, colegiado que reúne representantes da direção, funcionários, professores, pais de alunos e alunos, estabelecido como meta pelo Plano Nacional de Educação (lei 10.172/2001), é a máxima instância deliberativa da unidade escolar. Há ainda a APM (Associação de Pais e Mestres) e os estudantes possuem liberdade para se organizarem politicamente em Grêmios Estudantis.
Na prática, porém, verifica-se que os canais institucionais abertos não são utilizados, ou são utilizados raramente; a gestão democrática garantida pela legislação esbarra num obstáculo gigante, que é a cultura anti-política do povo brasileiro, descrita por Paranhos; a idéia popular de que política é algo sujo e não produz mudanças de fato leva à perda do "conceito de política como espaço de criação individual e coletiva, múltiplo, contraditório, conflituoso, aberto, no cotidiano da existência humana, à expressão dos mais diferentes desejos e interesses" (PARANHOS, p. 53).
O brasileiro carece de formação para exercer sua cidadania de forma crítica e participativa; apenas a organização da sociedade permite "dirigir ou controlar aqueles que dirigem", como Mario Manacorda define cidadania (LIBANEO p. 119).
A escola é vítima da mesma apatia que imobiliza o movimento sindical e até a mesmo a democracia partidária; ao afastar-se dos canais legítimos de debate e decisão a população está inconscientemente permitindo que sejam apropriados por pequenos grupos agindo em interesse próprio.
Nas escolas pesquisadas verificamos uma sub-utilização dos canais democráticos; os colegiados atuam pro-forma, basicamente referendando as iniciativas da direção. O debate via de regra é restrito a assuntos corriqueiros, como as festividades que a escola promove ao longo do ano e as despesas com manutenção do prédio escolar. Isso fica evidente sobretudo em relação ao grêmio estudantil: o colegiado não possui espaço próprio para funcionar; a alegação de um dos diretores ("não temos espaço disponível para isso") indica claramente o grau de importância atribuído à atuação política dos estudantes; e porfim a própria falta de consciência dos estudantes em relação ao órgão: o grêmio é entendido como uma espécie de auxiliar para organização de festas; chegou a realizar uma mobilização para arrecadar roupas para vítimas locais de uma enchente, mas não ocupa seu espaço político, não tem atuação reivindicatória. Um dos diretores atribui isso a uma conjuntura negativa: os alunos mais novos não têm interesse no assunto; os estudantes do noturno acabam assumindo o grêmio, mas o próprio fato de trabalharem de dia limita sua capacidade de atuação.
O sr. Adilson, com 20 anos de serviços na rede estadual e 9 como diretor da escola, é um quadro vivo da situação: é um homem que ama profundamente a unidade escolar e seus alunos, mas que está evidentemente cansado com o quadro massacrante que enfrenta todo dia. Ele cita um dado fundamental: quando iniciou seus trabalhos nesta escola cerca de 10% dos alunos apresentavam um quadro que ele define como abandono psico-social; eram crianças oriundas de famílias desestruturadas devido a problemas com drogas, álcool, criminalidade e problemas financeiros; crianças expostas a uma realidade de grande violência. Hoje ele acredita que quase 50% dos alunos da escola vivem alguma forma de abandono mencionada.
Tudo isso é usado como argumento para reforçar o discurso neo-liberal; não estamos vivendo uma crise de democratização, mas uma crise gerencial (GENTILI, p. 17). Ao invés de procurarmos criar uma cultura de diálogo entre comunidade e escola, para que possam se compreender e ajudar mutuamente, gastamos cada vez mais dinheiro público com foco voltado à "eficiência": terceirização de serviços (no caso das escolas pesquisadas, a merenda escolar e o funcionamento da sala de informática) e recursos tecnológicos (uma delas possui, por exemplo, circuito fechado de TV para monitoramento de segurança).
Nessas condições fica difícil pensar em cidadania ou em qualidade de ensino, pois falta o básico, que são noções primárias de moral e convivência; o diretor desabafa: "qualidade de ensino é uma batalha que não se pode vencer". Sua fala nos remete diretamente ao cerne da questão: a rede pública vive sobretudo uma crise de fé, de acreditar no trabalho que precisa ser feito.

Bibliografia

LIBANEO, José Carlos; OLIVEIRA, João Ferreira de; TOSCHI, Mirza Seabra. Educação Escolar: políticas, estrutura e organização; Cortez Editora, 5a. ed.
PARANHOS, Adalberto. Política e Cotidiano: as mil e uma faces do poder; in Introdução às ciências sociais, 10a. ed., Campinas-SP, Papirus, 2001.
GENTILI, Pablo; SILVA, Tomaz Tadeu da. Escola S.A., CNTE.
LDB 96, disponível em http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf; consultado em 01/06/2011.

Autor: Marcelo Leandro De Campos


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