RELAÇÃO TEORIA/PRÁTICA NO ENSINO DE SEGUNDA LÍNGUA (L2)
Ao tratarmos nas linhas iniciais desses problemas tão gerais quanto nos parece a questão da verdade ou mesmo a relação entre teoria e prática, pretendemos com isso buscar as raízes profundas da problemática do ensino de uma segunda língua (doravante L2). Intentaremos aqui pensar sobre as perspectivas do ensino de L2 na relação teoria/prática, o que merece ser dito por meio da viabilização de um pensamento focado no próprio ensino e em suas questões metodológicas.
O ensino de uma L2, entendido como o processo no qual o aluno tem a oportunidade de entrar em contato com outra realidade linguística que não a sua, está diretamente ligado aos discursos sobre a verdade e aos efeitos da díade teoria/prática. Não há como negar que os discursos da verdade influenciem o ensino em todas as suas esferas, tanto é que em todas as escolas públicas os documentos oficiais do estado que versam sobre educação são tomados como parâmetros para a ação de educar. Neste caso, os documentos oficiais não são só seguidos e suas concepções postas em funcionamento, mas também são lidos como verdades absolutas e incontestáveis, algo que provoca a desvalorização de abordagens novas, mesmo aquelas que podem dar os resultados tão almejados pelo ensino.
Por outro lado, a relação teoria/prática afeta igualmente o ensino em suas dimensões pragmáticas. Se a verdade no ensino está carregada de fundamentações proferidas pela ordem das instituições governamentais, as teorias como base de sustentação das verdades também partem dessa instancia superior para tentar controlar a atividade prática do ensino, o que, no entanto, não pode ser avaliado como algo definitivo, tendo em vista que há uma grande disparidade entre a real possibilidade de sustentar a ação educativa por meio de teorias e a efetiva consecução dessa ação educativa em nossas escolas.
O que aqui dizemos é que o modus operandi do ensino em nossas escolas não é aquele pregado nos diversos documentos de parametrização disponibilizados pelas autoridades legisladoras. A realidade que encontramos é adversa a regra que circunscreve o raio de atuação das escolas, dos professores, ao que está ratificado na ordem politico-educacional, ao que parece mais viável diante da conjuntura educativa de nosso país. A par desta informação cumpre pensarmos sobre esta realidade configurada no processo educativo de uma L2.
Para começarmos a esmiuçar a problemática de nossa discussão, propomos considerar o substrato do pensamento de ambos, professor e teórico ou, neste caso, professor do professor. A este respeito Leffa (2008) afirma
Criam-se, assim, dois tipos de pensamento, que podemos definir como pensamento teórico, aquele construído dentro dos muros da academia, e o pensamento prático, construído no embate com a realidade do dia-a-dia. Esses dois tipos de pensamento estão relacionados a dois tipos de professores: os professores e os professores dos professores. O professor está mergulhado no contexto imediato; não tem uma idéia clara da história e de como as coisas evoluem, mas conhece a realidade de perto pelo que vivencia através dos cinco sentidos: pelo que vê, ouve, cheira, apalpa e prova. É o domínio do pensamento sensível ou prático. O professor dos professores, ao contrário, olha a realidade de longe, abstraída de seu contexto imediato. O que vê é uma representação da realidade, geralmente relatada por terceiros, incluindo orientandos e outros professores. É o domínio do pensamento teórico. Não vê o detalhe, mas tem uma visão panorâmica que mostra o contexto maior, incluindo o entorno espacial e a história, com seus avanços e recuos.
Segundo o que pudemos perceber, a atividade de um e outro não se converge num espaço comum, ora uma está fechada em si mesma e descontextualizada, ora a outra não está amparada por uma visão sistematizada e atualizada do ensino. Seja como for, não há como negar a não complementaridade das duas, o que significa a segmentação de espaços de atuação que se tornam cada vez mais atrofiados em suas ações. As visões do que possa ser a aprendizagem ficam, para cada uma das duas porções da docência, limitadas ao contexto imediato de sua produção, o que definitivamente gera um claustro de adoração própria ou a acomodação em níveis incipientes de problematização do ensino. De maneira geral, o entrosamento entre o professor e o professor do professor não acontece, o que um e outro fazem é reduzir-se a si mesmos sem considerar a presença auxiliar de um elemento estranho: o outro.
As duvidas de que possa haver um trabalho conjunto entre o teórico e o prático já foram extintas há muito tempo, sendo notável a interface criada na interação destes dois agentes. Porém, como já vimos afirmando, esta interface ainda não está implantada, o que significa que precisamos construir esta relação, tentando primeiro entendê-la para depois erigi-la. Neste viés Ponzoni (2009) considera que
A relação entre teoria e prática tem sido bastante discutida em processos de ensino e aprendizagem de línguas. Muitas vezes, verifica-se que uma aparece dissociada da outra, e a reflexão crítica sobre o processo pedagógico como um todo nem sempre encontra espaço para ocorrer. Assim, o professor torna-se um mero transmissor de conhecimentos, repetidor de certezas testadas no passado, sem desenvolver a criticidade necessária para a sua formação.
Assim, a construção do conhecimento junto com os alunos parece ser, atentando para o que a autora explicita, uma mera repetição automática de conteúdos, experiência cristalizada que não dá chance a ação reflexiva do docente. Para os alunos, do mesmo modo, os processos de aprendizagem se tornam insignificantes e improdutivos, restando apenas uma triste constatação de que o conhecimento é algo difícil, impenetrável e a privilégio de poucos.
A oportunidade de criarmos uma relação de afinidade entre a atividade teórica e a atividade prática talvez seja na graduação, e diremos o porquê. É no espaço da graduação que os futuros professores têm o contato com essas duas vertentes de atuação, e ele mesmo se torna de certa maneira um teórico e um prático durante a sua formação. A teoria se configura como uma das peças fundamentais de qualquer curso de graduação, e na graduação em Letras os futuros professores entram em contato com ela, a construírem suas próprias problematizações de diversos assuntos ligados ao ensino, o que obviamente os torna teóricos do ensino de línguas. Por outro lado, quando falamos de um curso de Licenciatura em Letras não há como não pensarmos sobre o contato dos graduandos com a atividade prática, principalmente nas disciplinas de Estágio. Nestas disciplinas o futuro professor começará a vivenciar a realidade de uma sala de aula, e a partir daí passará a exercer a função de um agente prático da educação, ou seja, alguém que atua na situação pragmática de dar aulas.
Então, a viabilidade da relação teoria/prática pode e deve ser construída durante a formação dos professores, pois é justamente no momento da graduação que são disponibilizadas múltiplas visões acerca do ensino, de como se pode tentar entendê-lo, vivencia-lo, etc.; o conhecimento teórico oferecido durante o período da graduação juntamente com os primeiros contatos com a prática deveriam convergir, deveria um ser a base sustentadora do outro, sem esquecer que só é possível a construção de um crescimento qualitativo de nossa educação por meio dos dois.
Muito se poderia dizer sobre as dificuldades encontradas no contexto prático de ensino para justificar a falibilidade de uma ação conjunta entre teoria e prática, no entanto, deve-se compreender que a sala de aula comporta inúmeros fatores que podem levar ao sucesso ou insucesso das aulas. Deste modo, no ensino de uma L2 devemos entender que
A aprendizagem de uma língua é, portanto, um fenômeno duplamente complexo. É complexo internamente, nas relações que precisa estabelecer entre os elementos do sistema lingüístico (a fonologia com a morfologia, a sintaxe com a semântica, a fonologia com o discurso ? a prosódia, por exemplo, pode estar intimamente relacionada com a posição do sujeito na interação com o outro ? e assim por diante); e é também complexo externamente, nas relações que estabelece com outros sistemas. (LEFFA, 2006)
Negar a complexidade das relações entre os diversos fatores que estão implicados no processo de ensino/aprendizagem de uma L2 seria desconsiderar o próprio ensino, pois a complexidade, entendida como um intrincamento de vários elementos que se auto regulam e se sobredeterminam e que não devem ser considerados separadamente, é própria de toda e qualquer ação humana.
A compreensão da complexidade da ação educativa deveria ser um dos dispositivos amplamente utilizados na formação de professores, tendo em vista que o contato com a teoria é uma atividade fundamental na graduação. O entendimento das relações que se estabelecem entre vários sistemas complexos é de extrema importância para a ação do professor, sua forma de trabalhar suas aulas e a resposta e desempenho dos alunos estarão intimamente ligados a este entendimento. Se não houver o esforço no sentido de prestar atenção a todos os aspectos que estão envolvidos processo educativo o ensino, e o ensino de uma L2, estará fadado ao fracasso. Dessa maneira, e no caso especifico do ensino de uma L2, a coexistência e influencia exercida entre um sistema complexo e outro são elementos que influenciam diretamente no resultado das aulas. A apreensão, por parte dos alunos, dos conteúdos passados em sala de aula será factível a medida que eles estiverem cônscios das relações inextricáveis estabelecidas entre os diversos sistemas complexos presentes na realidade linguística da língua-alvo. Assim, além dos conhecimentos estruturais da língua-alvo o aluno também precisa adquirir conhecimentos culturais das sociedades que falam esta língua, condição pela qual a prática pedagógica se tornaria mais eficiente.
A insistência em falarmos da importância da relação entre teoria e prática não diz respeito ao fato de acreditarmos que a teoria sirva unicamente para melhorar as condições do trabalho automatizado dos professores, trabalho que preza a concepção de um ensino de língua voltado a mecanicidade de formulas pedagógicas ultrapassadas, descontextualizadas e ineficientes, pelo contrário, acreditamos justamente na força de um trabalho conjunto que propicie novos paradigmas de ensino. Desse modo, teoria e prática seriam complementares, uma se colocando a serviço da outra, a teoria disponibilizando novos ideais metodológicos e a prática respaldando o pensamento teórico com a experiência pragmática da sala de aula. Nesta nova conjuntura, o trabalho de professores e professores dos professores estaria
Considerando o papel fundamental que a escola exerce na sociedade, podendo contribuir para a manutenção ou para a mudança das relações de poder dessa sociedade, uma compreensão mais apurada do que acontece na comunidade escolar e do papel da linguagem na construção da identidade dessa comunidade pode mostrar caminhos quanto a decisões a serem tomadas e ações a serem propostas no que tange à educação lingüística. (SCHLATTER & GARCEZ, 2002)
Parece-nos ser por meio de uma educação politizada, na qual o trabalho com o ensino seja a ferramenta de transformação de nossa realidade, o modo mais acertado de construir a interface teoria/prática. Por isso, a realidade do aluno também deve ser pensada e considerada em ambas as atividades, tanto no tratamento que o teórico dá a esta questão quanto na forma como o professor trata esse aspecto em seu trabalho em sala.
Ante todas as questões que apresentamos fica evidente que a relação entre teoria e prática é algo possível, e mais ainda algo necessário. Tentamos deixar claro também que a preocupação maior no ensino de uma L2 é formar um ambiente contextualizado de ensino, o que se evidencia a partir da disponibilização de metodologias educativas que propiciem considerar todos os elementos envolvidos na prática de ensino. Ao fim de tudo o que podemos considerar é que uma educação que leve em conta esses aspectos poderá satisfazer nossas necessidades de formar falantes em uma L2.
REFERÊNCIAS
LEFFA, Vilson j. Malhação na sala de aula: o uso do exercício no ensino de línguas. Rev. Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 8, n. 1, 2008.
___________. Transdisciplinaridade no ensino de línguas: a perspectiva das Teorias da Complexidade. Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 6, n. 1, p. 27-49, 2006.
PONZONI, R. M. A construção do professor crítico-reflexivo de língua inglesa durante o curso de Letras. parte da Dissertação de mestrado. Universidade de Taubaté, 2009.
SCHLATTER, M. & GARCEZ, P. M. Treinamento ou educação no ensino de língua: escolha metodológica ou política? In: PAIVA, V. M., DUTRA, D & MELLO H. (Org.), Anais do VI Congresso Brasileiro de Lingüística Aplicada: a linguagem como prática social. Belo Horizonte: ALAB/FALE/UFMG, p. 1-15, 2002.
Autor: Almir Gomes
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