Revolução também é cultura



Revolução também é cultura

Digamos que cada vez mais o incomode ignorar o que significa tudo isso - essa história de nascer, crescer, adoecer, envelhecer, sofrer, morrer. Digamos que o peso de tudo isso, somado ao crescimento da violência, à progressiva devastação do Planeta, ao triunfo massacrante das práticas egocêntricas, comece a comprometer o seu equilíbrio emocional, e o acabe forçando a pedir ajuda.

Você, como bom brasileiro, não rufa tambores a psiquiatras, mas dá-se muito bem com as farmácias. Você, naturalmente, vai buscar ajuda numa farmácia. Não numa farmácia convencional qualquer, mas na eclética e exuberante farmácia cultural do seu país.

Comparece à farmácia cultural, e lá encontra expostos, logo em primeiro plano, dois medicamentos tradicionais: a filosofia e a religião, não necessariamente nessa ordem. Aproxima-se. Lê a bula de um, lê a bula de outro, e chega à conclusão de que nenhum dos dois acena com efeitos imediatos. Ambos exigem muito esforço e até sacrifícios. Em alguns casos, se a filosofia não for acessível ou bem ministrada, a incompreensão poderá confundi-lo ainda mais, ao passo que, se a religião não for honesta, o sacrifício poderá levá-lo à bancarrota, e agravar o desalento.
Então, você contemporiza. Para compensar a defecção - afinal a vida continua sendo o seu maior tesouro - você trata de garantir pelo menos o descortino de horizontes subliminares. Você decide levar para casa, como fetiche, um exemplar da Bíblia, e - que ironia! - as obras de Nietzche, aquelas mesmas que Hitler ofereceu a Mussolini em 1938.

Quando vai saindo, o farmacêutico o chama a um canto do ambulatório e cochicha ao seu ouvido:
- Senhor, conheço o seu drama; todo dia, toda hora passa gente por aqui procurando a mesma coisa. Se os livros falharem - espero sinceramente que não falhem - a casa recomenda não entrar em desespero. A casa lembra que o mercado oferece incontáveis alternativas que, de per si, ou criteriosamente combinadas, facilitam o acesso a um mundo vicário, álacre, pujante, balsâmico, sedutor e complacente, onde as multidões agasalham não apenas angústias incipientes como a sua, mas também desilusões inveteradas. Vale a pena conhecer os nossos estoques.

- E o que é que a casa sugere para pronta aplicção?

- Bem, aqui mesmo no ambulatório, compatível com o grau de sua inquietação, só dispomos de ecstasy. Mas logo ali no segundo andar tem um bar muito parecido com o Café Noturno de Van Gogh, onde servem absinto e aguardente, além, é claro, de uísque e cervejinhas de todas as procedências. Um pouco mais acima, no terceiro piso, o senhor vai encontrar uma lanchonete. Não é uma lanchonete, é uma boca-de-fumo disfarçada, que atende a domicílio, vinte e quatro horas por dia.

- Mais alguma sugestão?

- Senhor, digo e repito, o sortimento da farmácia cultural nessa linha de socorro à tribulação de existir não conhece limites. Além dos itens já referidos, a farmácia cultural detém a patente de diversos procedimentos vitoriosos que podem ser experimentados propedeuticamente. Interessa?

- Sim.

- Então anote aí. Se o senhor tiver temperamento loquaz, poderá adotar a fofoca como derivativo de salão. Se fizer o tipo caseiro, entregue-se à televisão, ao computador, e ao consumo simbólico. Descubra as delícias do cativeiro consumista. Experimente o inefável gozo de colecionar supérfluos. Diga sim à irracionalidde dos gadjets. Se apreciar os rituais de alcova, e andar meio desmotivado, tente o obsceno.

- Um momento, acho que ainda não cheguei a esse ponto.

- Eu sei, eu sei. Não se ofenda. Sei muito bem que o senhor ainda não perdeu as estribeiras. Por favor entenda: o obsceno a que me refiro não é aquele obsceno do próprio corpo, vulgar e promíscuo, a que muitos se entregam em momentos de aguda exacerbação libidinosa. O obsceno que a casa lhe recomenda à guisa de aliviá-lo do fardo existencial calha de ser o obsceno estético, assim entendida a exageração formal da dimensão erótica, aonde o corpo humano, o corpo de terceiros, diga-se de passagem, comparece unicamente como matéria. Como o senhor vê, nada de estranho, nada além de uma encenação hiper-real, nada além de um registro mais real que a realidade, nada além de um arranjo mais sexual que o próprio sexo, como diria Jean Baudrillard.

- Desculpe, mas não entendi.

- Senhor, se liga, senhor. A casa quer lembrá-lo da alternativa dos filmes pornô.

- Acontece que sou agressivo.

- Bem, nesse caso, entre para uma torcida organizada.

- Vou pensar no assunto. De todos os modos, obrigado e parabéns pela minuciosa provisão de seus estoques.

- Foi um prazer. Podemos ajudá-lo em mais alguma coisa?

- Na verdade sim, mas fica para outra vez.

- Senhor, não se acanhe. Estamos aqui para servi-lo.

Encantado com tanta solicitude, você então confessa que sofre muito por ignorar o que se passa nos bastidores da vida pública brasileira. Você diz acreditar que o seu drama existencial tem muito a ver com essa frustração específica. Você conta, por exemplo, que vomita só de pensar na história dos orçamentos secretos para a Copa do Mundo, que você ainda não engoliu os sapos dos mensalões, que você ainda não conseguiu purgar-se do escândalo Sarney, nem digeriu o enriquecimento de Antonio Palocci, pela simples e boa razão de não saber onde enquadrá-lo: se na lei, se na ética, se no esoterismo, se no pitagorismo, se no solipsismo, se no cinismo ubuesco, se no lulismo...

- Para esse tipo de arrelia - retrucou prontamente o farmacêutico - não há remédios genéricos. Dirija-se, por favor, ao setor de manipulação. Lá alguém vai fazer a anamnese da sua perplexidade e, se for o caso, o senhor levará ainda hoje uma recomendação especial.

- Pra que tudo isso? A minha síndrome é banal. Posso não saber conceituá-la com precisão, mas uma idéia eu tenho.

- E qual é a sua idéia?

- Dou aos meus sintomas o nome de síndrome de Jonas, que se caracteriza pelo medo de ser engolido pela baleia da corrupção que assola o país. É so isso.

- O senhor vai me perdoar, mas não é bem assim. Na verdade a baleia já o engoliu há muito tempo. Não a baleia da corrupção, mas a baleia da falácia, assim entendida a blindagem da corrupção, ou seja, o aparato discursivo que bloqueia a elucidação das falcatruas. Da corrupção propriamente dita o senhor nem chega perto. Aliás, nem o senhor nem mais ninguém.

- Vá lá que seja, reconheço a minha aversão neurótica pelo linguajar político. Agora, tenha a bondade de me dizer como sair dessa situação.

- Já que o senhor admite viver em cativeiro, posso prescrever o seu tratamento agora mesmo.

- Ótimo. Por favor, diga o nome do remédio. Diga logo.

- Para libertar o senhor dos grilhões da falácia, a casa só conhece um remédio: educação. Se me permite, para ganhar tempo, antes de ler Nietzche, leia Aristóteles, e familiarize-se com a lógica. A lógica formal é o único antídoto para o veneno das falácias.

- Vocês ensinam lógica aqui? Gostaria de me matricular.
.
- Não, nem nós, nem ninguém ensina lógica formal. Ninguém neste país ensina ninguém a raciocinar, a discernir. O máximo que os currículos comportam não passa de um "filosofês" totalmente desligado da vida que a gente leva. Não há recursos, não há estímulo. Os professores, esses heróis anônimos, que o digam.

- Nesse caso...

- Nesse caso o senhor terá de fazer das tripas coração. Estude, ouse saber, fale, comente, discuta, debata, interprete, interrogue, critique, analise, julgue, escreva, xingue, se necessário, mas não se amofine nem se acomode. Não faça o jogo do sistema. O sistema quer vê-lo nos bares, nos campos de futebol, no computador, na poltrona à frente da televisão, nos shoppings, nas feiras, nas estradas, nos supermercados, nas baladas, nos churrascos, nos pagodes, nas praias, descontraído, distraído, desligado, rindo a bandeiras desfraldadas, eufórico, enojado de política, longe, bem longe de se preocupar com o que se passa nos lúgubres bastidores da vida pública.

- Vou tentar. E se não der certo?

- Se não der certo? Tem que dar certo. Pra isso existem as revoluções. Revolte-se. Afinal, revolução também é cultura.

Autor: Osorio De Vasconcellos


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