Fenômeno Quilombola



1. Introdução

A presença de núcleos de quilombos no país, sempre esteve relacionada como núcleos de escravos que se refugiavam, principalmente nas matas, uma forma de enfrentar o sistema escravista no Brasil. Após a Abolição, encontramos comunidades remanescentes que permaneceram, outras que se formaram através de migrações internas em diferentes regiões do país. Pretende-se discutir essas significações sobre o termo quilombo, sua ligação com as tradições culturais de seus antepassados (escravos) e através de que experiências formaram-se esses quilombos contemporâneos.

Este texto apresentará o surgimento dos primeiros quilombos como uma das formas de lutas frente ao sistema escravista no Brasil. Discutirá as formas de resistência, principalmente as coletivas. Apresentará, ainda, as características peculiares no Brasil que promovem a identificação sócio-histórica e cultural das comunidades remanescentes dos quilombos. O conceito de Quilombos como forma de refúgio e resistência permaneceu no país e atualmente passa por discussões nas Ciências Humanas por apresentar novas definições.

Pretende-se discutir o avanço do conhecimento histórico sobre os quilombos e o desencadeamento do processo de organização das comunidades negras ensejaram que, quando da Constituinte de 1988, fosse aprovado o dispositivo constitucional provisório – artigo 68 – determinando o reconhecimento da propriedade da terra ocupada pelos "remanescentes das comunidades dos quilombos". A necessidade de mapear e comprovar a existência de tais comunidades e, a seguir, a proposta de ampliar o leque de contemplados pela referida determinação ensejaram o recrudescimento do interesse pelos quilombos e o debate sobre a sua essência.

No Brasil a luta pelo reconhecimento pela propriedade da terra tem levado inúmeras comunidades negras rurais habilitar-se ao dispositivo da lei. Aglutinados em condição de vida rural, sobretudo em terras sem titulação reconhecidos pelo Estado, muitos afro-descendentes viveram sem visibilidade social até as três primeiras décadas do século XX.Isto significa que as comunidades negras rurais passaram quase despercebidas até o momento em que suas terras, ou terras ocupadas por tais comunidades ganharam valor.

As possíveis discussões sobre Identidade e a preocupação em conceituá-las apresentam-se neste trabalho através da análise sobre a relação que as comunidades negras rurais possuem com seu território, constituindo assim laços identitários. A procura em se discutir identidade tornou-se evidente com a expansão do fenômeno da globalização, do multiculturalismo e da discussão moderno/pós-moderno. Os estudos de identidade remetem muitos autores a utilizarem dois caminhos: a perspectiva da identidade pessoal, "uma reflexidade da modernidade que se entende ao núcleo do eu" e a discussão sobre uma identidade coletiva, "ligada a sistemas culturais específicos, como as identidades regionais e nacionais" (ROSA, 2007, p. 2). Contudo estas duas perspectivas estão interligadas, conforme ROSA "não há como vivenciar uma identidade cultural específica se esta não for incorporada à identidade pessoal de cada agente social". (ROSA, 2007, p.3). Neste texto a discussão de identidade alicerçará a compreensão do sentimento de pertencimento dos quilombolas a seu território e a interação ao seu universo social, por isso a ousadia em problematizar as concepções teóricas sobre identidades culturais na contemporaneidade.

2. Quilombos na Pré-Abolição

A escravidão[1] no Brasil teve sua distribuição uniforme e peculiar a cada região. A escravidão negra no país tem início com a busca por alternativas para sanar a ausência de mão-de-obra que se adequasse ao projeto da grande lavoura. Portanto o negro é trazido da África como elemento fundamental para a agricultura, contudo, houve outras funções que ocupasse os escravos africanos no desenvolvimento da propriedade escravista. Segundo MOURA, essa uniformidade da presença do escravo nas diversas regiões do Brasil garantiu a continuidade da escravidão, "esses escravos foram distribuídos de acordo com os interesses da economia colonial, na medida em que se desenvolviam as economias regionais, subordinadas às necessidades do mercado externo" (MOURA, 1987, p. 8).

A população negra escrava foi distribuída da seguinte maneira, quanto ao desenvolvimento da economia colonial: Nordeste - desenvolvimento do plantio da cana-de-açúcar, de fumo, de cacau e algodão; Rio de Janeiro e São Paulo - o trabalho nas fazendas de cana-de-açúcar e de café; em Minas Gerais, com irradiação para Mato Grosso e Goiás - o trabalho escravo voltado para a mineração. Contudo, houve os serviços domésticos e urbanos, que se desenvolveram praticamente em todas as regiões (MOURA, 1987, p. 14).

É importante lembrar que quando tratamos da escravidão negra no Brasil, não podemos esquecer da origem africana, ou seja, a sua forma de existência na África, que muitos negros gozavam a liberdade antes de serem "retirados" do seu continente. No Brasil o cotidiano do escravo estava relacionado ao trabalho, segundo PINSKY, "a vida cotidiana do escravo se desenvolvia, não em função de suas próprias escolhas, mas em decorrência das tarefas que lhe eram atribuídas"(PINSKY, 2004, p. 33). Portanto o escravo negro tornava-se instrumento importante para a produção limitando-se a sua força de trabalho para assegurar a preservação da estrutura econômica.

Manter o negro sozinho, freqüentemente solitário, ou seja, famílias, comunidades e etnias separadas quando vendidas, seria uma forma de dificultar a organização de rebeliões, mas também uma forma de despersonalizar o negro africano. É evidente que o isolamento do negro africano contribuiu na fragmentação de sua identidade. Problema que as sociedades contemporâneas enfrentam com as mudanças estruturais e institucionais. Na interação do indivíduo com a sociedade pressupõe a identidade, ou seja, "o sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o "eu real", mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais "exteriores" e as identidades que esses mundos oferecem" (HALL, 2005, p. 11). Entretanto, é essa concepção que encontra-se em mudança, pois tradicional e sociologicamente a identidade ligava o sujeito à estrutura, aos mundos culturais, tornando-os unificados e atualmente esse contexto fragmentou-se. Nas sociedades contemporâneas, o sujeito compõe várias identidades, isto é, temporariamente utiliza-se de várias identidades, segundo HALL, "a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia" (HALL, 2005, p. 13). Os sistemas e representações estão se multiplicando, com isso adequar-se a múltiplas identidades, temporariamente, tornou-se possível e inevitável.

Conforme o estudo de MATTOSO sobre a adaptação do africano no Brasil e a submissão do negro em uma transformação do meio social entende-se que "sua inserção será tanto mais difícil porquanto a captura foi violenta, brutal, rompeu todo seu relacionamento anterior, todas essas ligações que formam o indivíduo social, com os laços familiares, de clã e comunidade. Dessocialização implica fatalmente em despersonalização"(MATTOSO, 2003, p. 101).

Portanto, o comprador desejava um escravo moldado, que estivesse pronto a ser utilizado na labuta: fiel a seu senhor. Nesse sentido o negro africano era visto com uma "coisa", um objeto, uma mercadoria, tornado-se pertencente a um grupo de cativos sem forças para resistir a essa imposição cultural. Com isso causou uma dificuldade do negro africano de se identificar, de possuir uma memória individual ou propriamente coletiva, distante do sentimento da identidade social, ou seja, uma imagem "que um indivíduo adquire ao longo da vida referente a ele próprio, que ele constrói e apresenta aos outros e a si próprio" (POLLAK, 1992, p. 206). Portanto, sendo totalmente transformada ao entrar em conflito com as formas que o senhor de escravo estabeleceu.

A reconstrução dessa identidade necessitaria de unidade física, ou seja, o sentimento de possuir fronteiras físicas, o negro africano a princípio encontrou essa segurança nos momentos coletivos na senzala, posteriormente essa identidade esteve presente nos refúgios quilombolas, onde puderam manter suas raízes e preservar sua memória. Entende-se que essa reconstrução psicológica deu-se quando o cativo encontrou em suas fronteiras o sentido de pertencimentoao grupo, coletivamente, com isso, há o "sentimento de coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são efetivamente unificados" (POLLAK, 1992, p. 206). Porém cabe ressaltar que, através da relação que o indivíduo mantém com os sistemas culturais e por assumir diferentes identidades momentaneamente não há uma identidade unificada.

É importante observar que o sentido de pertencimento que o indivíduo busca encontrar é negociável e revogável. BAUMAN, conceituando identidade e crise de identidade aponta que pertencimento e identidade não são para vida toda e "que as decisões que o próprio indivíduo toma são fatores cruciais tanto para o 'pertencimento' quanto para a 'identidade'" (BAUMAN, 2005, p. 17). Portanto o sentimento de pertencimento não constrói uma identidade, enquanto este for o destino. O indivíduo conquista aspectos identitários conforme escolhas e relacionamentos sociais temporários, pois a construção da identidade é permanente.

No sistema escravista o negro torna-se inferior, uma coisa privada, portanto de personalidade jurídica, pertencente a seu senhor, conforme MATTOSO: "Nessa perspectiva é difícil admitir que o escravo possa adquirir uma personalidade, mesmo se está inserido na sociedade e ocupa nela, aparentemente, seu lugar na esfera dessas relações de dominação senhor-escravo" (MATTOSO, 2003, p. 101-102).

É inegável que para a sobrevivência do escravo africano dependeu-se da sua "repersonalização" e a aceitação da sua posição, contudo essa personalidade foi criada, através da relação com seu senhor, pois dentro dessa "sociedade branca" que dominava, o escravo, que aparentemente, possuísse de humildade, obediência e fidelidade (MATTOSO, 2003, p. 105) teriam essa inserção na sociedade, porém na continuidade da posição de mercadoria, de servo, enfim essas três qualidades representaria o caráter de "bom escravo". A construção dessa identidade é uma das formas que o senhor de escravo determinará a submissão de seu cativo, portanto ela é construída através de um "fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros" (POLLAK, 1992, p. 204). O escravo se submete, pressionado pela violenta imposição, e seu passado já não importa. Conforme POLLAK, "memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo" (POLLAK, 1992, p. 204). É salutar fazer essa observação porque o negro conquistou estas qualidades, tanto por vias suaves como violentas.

As insurreições e a quilombagem, partindo do pressuposto de organização escrava, foi uma das formas que mais surtiram efeito frente ao regime escravista, pois era caracterizada pela formação de conjuntos de vários escravos, que coletivamente proporcionaram mudanças no sistema de repressão a essas revoltas, e de que tratando de resistência escrava, a quilombagem foi uma entre as diversas formas de lutas, porém a que mais marcou presença durante o período escravista, praticamente utilizada em todo território nacional.

Essas rebeldias coletivas, caracterizavam-se pela revolta organizada, tendo mais expressãonas insurreições armadas, a fuga para as matas, resultando nos quilombos, que embora movimentos efêmeros, causaram impactos na sociedade escravista. Em muitas vezes com a quilombagem, os negros organizavam-se em bandos para cometerem crimes nas localidades próximas aos ajuntamentos de escravos.

Violentos ataques aconteceram nas diversas regiões do país, sendo formados em muitas vezes por cativos fugidos aliados a índios revoltados que aterrorizavam as fazendas e estradas próximas aos quilombos. As providências, claro, que são tomadas, tanto na busca dos escravos fugidos pelos grupos de capitães-do-mato, que percorreriam estradas e matas, destruindo diversos ajuntamentos quilombolas, como o endurecimento na legislação e nas posturas policiais das Câmaras Municipais.

Havia preocupação na expansão dessas formas de resistência, as autoridades procuravam conter, muitos sentiam dificuldade em definir o que seria um quilombo. Os quilombos, conforme o Rei de Portugal, ao ser consultado pelo Conselho Ultramarino em 2 de dezembro de 1740, definiu: "toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles" (MOURA, 1987,p. 11).

É claro que onde existiu a escravidão, existiu o aquilombamento, alguns pequenos, outros maiores, porém todos com a mesma intenção: fugir do sistema escravista. Entretanto, diversos quilombos, que se distribuíram pelo país, não praticavam violentos ataques contra a sociedade, pois na verdade, eles queriam alcançar a liberdade, o retorno à vida africana, um espaço livre para celebração religiosa, eles só recorriam à violência se fossem atacados.

3. Quilombos contemporâneos, novas definições.

A formação de quilombos no Brasil, que em sua maioria não duravam por muito tempo, teve uma distribuição através do dinamismo em que se encontrava a atividade escrava. Contudo é necessário fazer uma observação de que quando tratamos de quilombos como forma de resistência, é relevante compreender a sua continuidade, pois historicamente definiram as formações quilombolas como forma de se revoltar contra o sistema escravista e pouco se discutiu sobre a permanência desses territórios, muitos ocupados por negros no pós-abolição.

A existência dos territórios quilombolas, atualmente, e muitas vezes defendidos pela própria historiografia e por movimentos sociais, é compreendida como forma de preservar e designar o pertencimento étnico dos grupos que são caracterizados como de exclusividade negra, originários da escravidão, da resistência e que praticam o isolamento defensivo, contudo não devem ser vistos como isolados sociais ou culturais. Conforme SCHMITT, são considerados remanescentes de comunidades de quilombos os grupos que formaram-se a partir de uma grande diversidade de processos, através de fugas, ocupando terras livres e geralmente isoladas, através de heranças, doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, etc (SCHMITT, 2002, p. 3).No quilombo, como nas senzalas, existiam escravos de diferentes regiões da África, que possuíam culturas, idiomas, e crenças religiosas distintas, motivo que dificultava a constituição de uma identidade étnica, sendo que muitas das raízes culturais foram mescladas, que hoje é bem evidenciada nos ritmos afros no Brasil e no próprio sincretismo religioso, sendo um dos mecanismos para a sobrevivência da identidade africana no país, e no período escravista, como forma de refugiar-se da repressão. Conforme BRAZIL: "o afro-brasileiro encontrou no sofrimento, na indignação e na angústia a inspiração necessária para manter sua subjetividade. As práticas culturais afro-brasileiras, mescladas aos materiais europeus e indígenas, representam fragmentos da consciência rebelde construídos na luta contra a aviltante condição servil". (BRAZIL, 2002, p.128).

A procura incessante pela identificação e pela incorporação da memória, esta impregnada por raízes africanas, não condiz necessariamente como instrumento de preservação das comunidades remanescentes de quilombos. Movimentos sociais, instituições envolvidas com causas anti-racistas e políticas públicas de afirmação possuem uma visão colonial da estrutura sócio-cultural destas comunidades. Assim como a própria identidade cultural fragmentou-se, num movimento permanente de construção identitária, nas comunidades não se utilizam ritos e mitos africanos como práticas culturais no seu cotidiano. A influência "de fora" proporcionou a permanência destes moradores, em comunidade, e garantiu o protagonismo e a própria sobrevivência. A procura por religiões, artefatos, costumes puramente africanos é mera ilusão.

As Comunidades quilombolas abrigavam algumas dezenas de habitantes, e se localizavam na periferia das cidades, nas margens das estradas ou caminhos próximos a fazendas. A produção variava do extrativismo – nas florestas – economia pastoril, também eram envolvidos com a mineração do ouro e a cata de diamantes. Porém, os quilombos que praticavam a agricultura de subsistência, certamente, foram os que mais existiram por longos tempos no Brasil.

A maioria dos quilombos no país surgiu por um motivo em comum, e a proposta de liberdade rompeu as cercas que envolviam os escravos na labuta, bem como dentro da senzala, e lhe deu caminhos para chegar até as matas e florestas e formar um quilombo, um espaço que lhe permitia conservar sua memória, cultivar suas terras, para o seu sustento.

Após a abolição, os quilombolas ainda estão próximos a terra, porém o único laço que lhe permitem viver. Atualmente os quilombos são considerados territórios de resistência cultural e deles são remanescentes os grupos étnicos raciais que assim se identificam. É determinado como comunidades negras de quilombos conforme "os costumes, as tradições e as condições sociais, culturais e econômicas específicas que os distinguem de outros setores da coletividade nacional".[2]

Portanto os negros negam-se a conviver no mesmo espaço com aqueles que outrora foram seus algozes. Na verdade, o isolamento deveu-se a própria procura em se afirmar sócio-culturalmente, porém, não um isolamento pragmático, mas impulsionado pela vontade oposta em não integrá-los à sociedade. Muitos permaneceram em seus territórios até os dias atuais. Outros se formaram após a abolição em decorrência da miséria em que viviam na urbanidade das cidades e da difícil concorrência com os imigrantes nas fazendas. Houve também escravos que compraram extensões de terras para morarem e cultivarem. Esse isolamento relativo, segundo MAESTRI, "seria resultado da experiência de dominação e exploração a que foram submetidos escravos, índios e seus descendentes" (MAESTRI, 1984, p. 9-19).

A continuidade dessas terras quilombolas ganhou destaque quando na Constituição de 1988, os remanescentes de quilombos garantiram o direito de posse desses territórios. Com a legalização dessas terras quilombolas os afro-brasileiros conquistaram o direito de manter e preservar suas tradições, bem como se volta ao sentimento de pertencimento ligado a terra.

Essa forte ligação com a terra é visto como uma continuidade dos quilombos no contexto histórico, em que buscava sua liberdade. Atualmente busca refúgio na tentativa de sobreviver. A manutenção destas comunidades, para os afro-brasileiros que descendem dos escravos negros é relevante tanto no ponto de vista cultural, onde preservam "sua identidade", ou procuram identificar-se, como também uma forma de ter na terra uma relação produtiva para sua subsistência e para a própria mercantilização por parte de suas produções materiais.

Nas décadas de 1940-50, o crescimento populacional e a presença do capitalismo, elevaram os preços da terra, dificultando o desenvolvimento da comunidade colonial, daí o deslocamento de populações para novas terras. O período em que o Brasil foi governado por militares o desenvolvimento tecnológico agrícola priorizou a produção de matérias-primas e alimentos dificultando a comercialização dos produtos das pequenas propriedades.

Com a redemocratização política nos anos de 1980, sob as terras ocupadas por remanescentes de quilombos, a propriedade seria reconhecida, conforme a Constituição Federal do Brasil de 1988. Juridicamente o direito às terras seria apenas para os descendentes de escravos que fugiam e se embrenhavam nas matas. Como já foi discutida, a definição de quilombos na atualidade amplia a noção jurídica colonial. Segundo SILVA, "o reconhecimento dos direitos das comunidades negras rurais às suas terras pressupõe a revisão de procedimentos técnicos e jurídicos dos órgãos afetos à questão do ordenamento jurídico agrário, territorial e ambiental para reconhecer e incorporar as diferenças étnicas e culturais". (SILVA, 2000, p. 267).

A partir de novas definições, uma comunidade rural e, a seguir, urbana, como "quilombola", não é reconhecida através de sua origem em um quilombo, na pré-Abolição, mas da pressuposição quilombola de grupo social de ancestralidade africana. A legalização das terras dos chamados remanescentes de quilombos brasileiros passa hoje pelas discussões em torno da questão da identidade e da territorialidade. Portanto não se aplica o conceito histórico de quilombo para análise dessas comunidades. Assim, utilizar a definição de comunidade negra rural seria mais próxima da realidade encontrada atualmente. Após a Abolição, essas comunidades "deram origem a um campesinato negro que tendeu a se fechar sobre si, como já o haviam feito os caboclos descendentes de nativos" (MAESTRI, 1984, p. 9-19).

A relação memória e identidade justificam a permanência destes moradores nas comunidades, preservando seus aspectos estruturais e sociais. Portanto, é a partir dessas reflexões que pode ser possível explicar parte da articulação social estabelecida entre os quilombolas e os demais segmentos que compõe seu universo social. Qual a imagem que estes moradores têm sobre os quilombolas? E qual imagem os quilombolas têm em relação a si e aos outros, fora da comunidade. Esse comparativo pode apontar dados referenciais capazes de explicar o processo de construção da identidade da comunidade, sobretudo no que diz respeito aos "critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade" (POLLAK, 1992, p. 204). Esse confronto entre o "eu" e "outro" possibilita a valorização da memória e a afirmação de uma identidade, mesmo que apresente confrontos num espaço em que a "memória e a identidade são valores disputados" e garantindo o protagonismo desses moradores (POLLAK, 1992, p. 204).

O estudo sobre a identidade de uma comunidade rural (quilombola) pressupõe-se encontrar na relação dessas famílias com o conhecimento institucionalizado pela população externa a marcação da diferença que constitui o componente identitário, visando definir quem é a "identidade" e quem é a "diferença". Nesse sentido, cabe destacar que a identidade cultural não é "natural", nem inerente ao indivíduo, ela é preexistente a ele, e como a própria cultura se transforma, a identidade cultural do sujeito não é estática e permanente, mas é fluída, móvel, e principalmente, não é uma imposição inocente, nem uma apropriação, de todo, inconsciente. A identidade cultural é por sua vez construída, manipulada e política. (PACHECO, 2007, p.)

Ao pesquisar a história de alguns quilombos percebe-se que grande parte dos registros históricos sobre os quilombos foram produzidos de forma exógena, em que as autoridades interessadas no fim desses ajuntamentos de escravos tiveram participação direta na elaboração destes textos referentes. O que torna-se relevante na discussão sobre a ligação histórica dos quilombos com essas comunidades remanescentes é o resultado de alguns estudos recentes com o auxílio dos relatos orais. Conforme SILVA os quilombos seriam um fenômeno social, no passado, controlados pelas autoridades coloniais e imperiais, "esta suposição, todavia, cai por terra não apenas com base nos estudos históricos mais recentes, como também ao se constatar a existência, no presente, de comunidades que afirmam descenderem de quilombos". (SILVA, 2000, p. 272).

4. Considerações finais

Hoje, a ligação que os moradores destas comunidades remanescentes de quilombos, em diversas regiões do Brasil, está intrinsecamente relacionada com seu território. Nos quilombos tradicionais, formados no período colonial, também havia uma forte ligação dos escravos com seu território, pois garantia-lhes a liberdade, sendo que possibilitaria manifestarem seu cotidiano perdido ao serem "tirados" da África. Essa forte ligação com o território se destaca também nas formações contemporâneas, em que os moradores têm na terra a preservação da sua cultura, conquistada no território em que buscaram refugiar-se, mesmo após a abolição. A identidade preservada nestes grupos é evidenciada pela relação que os moradores têm entre si e com seu território e através da produção de bens culturais.

Com isso, pretendeu-se possibilitar novos olhares sobre a história agrária no Brasil, em que os negros tiveram grande participação, tanto como peça fundamental na mão-de-obra escrava quanto como sujeitos na luta contra a injusta concentração de terras, nas mãos da elite brasileira.

Destacou-se a fundamental importância de novas concepções sobre os quilombos; as manifestações podem contribuir para o estudo do passado escravista do Brasil e suas conseqüências no presente. Através da documentação expressa sobre todas as formas de resistência, ainda impregnadas pelas interpretações do período colonial, a resistência muda de propósito, passa a objetivar a preservação das tradições culturais.

Através desta investigação sobre a construção identitária de uma comunidadequilombola, não pode-se buscar uma comparação análoga com os quilombos do passado, em busca de rastros perdidos. A garantia dessa ligação com o passado evidencia-se conforme a comunidade utiliza a memória para preservar esse passado apagado, sua identidade fragmentada. As procura por raízes africanas, podem ser encontradas nos quilombos contemporâneos, como a base religiosa, linguagens, cor da pele, etc. ligados a africanidade, contudo, não se pode garantir a constituição identitária deste grupo.

O texto destacou a fundamental importância de novas concepções sobre os quilombos; as manifestações podem contribuir para o estudo do passado escravista do Brasil e suas conseqüências no presente. Através da exposição sobre as formas de resistência, ainda impregnadas pelas interpretações do período colonial, a resistência muda de propósito, passa a objetivar a preservação das tradições culturais e a procura por significações da identidade quilombola, esta propositada pelo multiculturalismo em tempos de globalização.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

BRASIL. Programa Brasil Quilombola. Brasília: GOVERNO FEDERAL. 2004

BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira Negra: dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso: 1718-1888. Passo Fundo: UFP, 2002.

_______ Presença quilombola em regiões além-fronteiras. Mato Grosso colonial e fugas de escravos. In: Simpósio Escravidão na América do Sul: Economia, Cultura, Ideologia e Sociedade. II Congresso Sul-Americano de História. Universidade de Passo Fundo/Instituto Panamericano de Geografia e História. Passo Fundo-RS: UPF, 19 a 21 de outubro de 2005. http://.ufgd.edu.br/~mcbrazil/docs/escravidão/alemfronteirass.pdf .

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. DPRA, Editora: Rio de Janeiro, 2005.

MAESTRI, Mário. "As comunidades autônomas de trabalhadores escravizados no Brasil". Versão atualizada do artigo: "Em torno do quilombo". História em Cadernos. Revista do Mestrado em História da UFRJ. Nº 2. Rio de Janeiro, 1984.

MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003.

MOURA Clóvis. Quilombos – Resistência ao Escravismo. São Paulo: Ática, 1987.

PACHECO, Joice Oliveira. Identidade Cultural e Alteridade: problematizações necessárias. Revista Spartacus. Universidade de Santa Cruz do Sul: 2007. http://www.inisc.br/spartacus/edições/0120007/pacheco_joice_oliveira.pdf. Acesso em 20 de maio de 2008.

PINSKY, Jaime. Escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

POLLAK, Michael. IdentidadeSocial In. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

ROSA, Guilherme Carvalho da. A discussão do conceito de identidade nos estudos culturais. Porto Alegre: 2007. http//www. Guilhermedarosa.com/pesquisa/identidade_ conceito.pdf. Acesso em 20 de maio de 2008.

SCHMITT, Alessandra e outros. A atualização do conceito de Quilombo: identidade e Território nas definições teóricas. Ambiente e sociedade. Jan/Jun. 2002,n. 10, p. 129-136, ISSN 1414 – 753x. Citado em: http// www. Scielo.Br/scielo. Phb? Script = sci _ attext & pid = S1414 _ 753x 200200018 & 1ng = em & nrm = isso> Acesso em 07 de março de 2006.

SILVA, Adilson Rodrigues. Fenômeno Quilombola: As tradições culturais da Comunidade Quintino Elias na cidade de Pedro Gomes/MS (1960-2007). Coxim: UFMS-Campus Coxim, 2007 (Trabalho de Conclusão de Curso).

SILVA, Valdélio dos Santos. Rio das Rãs à luz da noção de Quilombo. Revista Afro-Ásia, nº 23. Salvador: UFBA, 2000, pp. 265-293.



[1] Nos estudos sobre a escravidão no Brasil, Jacob Gorender define: "A escravidão é uma categoria social que, por si mesma, não indica um modo de produção. Como escravidão doméstica – forma exclusiva sob a qual existiu em vários povos – sua função é improdutiva. Mesmo como função improdutiva, a escravidão pode aparecer de maneira mais ou menos acidental e ser meramente acessória de relações de produção de tipo diferente. No entanto desde que se manifesta como tipo fundamental e estável de produção, a escravidão dá lugar não a um único, mas a dois modos de produção diferenciados: o escravismo patriarcal, caracterizado por uma economia predominantemente natural, e o escravismo colonial, que se orienta no sentido da produção de bens comercializáveis". Cf. GORENDER, Jacob. Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 2001. p. 46.

[2] Ver Programa Brasil Quilombola. Governo Federal. 2004, p. 6.


Autor: Adilson Rodrigues Silva


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