HISTÓRIA, GÊNERO E IDENTIDADE: Um balanço historiográfico.



HISTÓRIA, GÊNERO E IDENTIDADE: Um balanço historiográfico.


Natanael Vieira de Souza

OBJETIVO:
O objetivo deste texto é fazer um balanço dos conteúdos apresentados durante o tópico especial sobre história, gênero e subjetividade. Neste balanço, analisar para que serve este conteúdo, dentro da academia e para as nossas vidas, sabedor de que muitos de nós fomos afetados/contaminados (as) pelos textos e seus autores (as) e tocados (as) pela sensibilidade perceptora das diferenças e o desafio de conviver com elas.

QUESTÕES ABORDADAS:
Durante este semestre pudemos, dentro desta disciplina, abordar e discutir várias questões, tais como: gênero, subjetividade, identidade, nomadismo, estética, escrita, etc., várias (os) autoras (es) como Rosi Braidotti, Tânia Navarro, Valéria Fernandes da Silva, Joan Scott, Maria Bernardete Ramos Flores, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Durval Muniz entre outras/os tem buscado articular um tipo de pensamento que tente não mais entrar nas velhas práticas dominantes que tentam hierarquizar a diferença em relação a uma identidade.
Daí o surgimento de historiadoras feministas, com um novo olhar, elaborando uma nova teoria, isto é, uma nova perspectiva, uma outra abordagem sobre as questões de gênero que busca desconstruir a imagem de um sujeito universal. Destruindo as identidades que fixam e determinam os lugares que deve ocupar cada sujeito.
Tânia Navarro Swain discute as construções feitas por cronista e viajantes a respeito da figura da mulher, construções que estão impregnadas na historiografia de forma que estabelece uma hierarquia do gênero masculino e que resulta na dominação da mulher, neste caso a autora procura demonstrar que os discursos (representações) produzidos pelos europeus no século XVI e reproduzidos, sem ser historicizados, por respeitados e renomados historiadores brasileiros no século XX ? XXI. Discursos estes que ficaram sobremaneira impregnado e arraigado, pela imposição de sentidos, no comportamento da nossa sociedade que, apesar de estarmos vivendo em pleno século XXI, ainda temos e vivemos muitas práticas características dos padrões morais europeus do século XVI.
Durval Muniz faz uma crítica à historiografia feminista ligada às teorias marxistas pelo fato deste seguimento trabalhar a história feminista contrapondo o gênero masculino versus o feminino, Durval, ao contrário, propõe uma história de gênero sem contraposições, sem dicotomias. Em sua obra, Nordestino: uma invenção do falo ? uma história do gênero masculino (Nordeste 1920 ? 1940), Durval faz uma história do gênero masculino sem, em nenhum momento, contrapor masculino e feminino.
Os textos trabalhados nesta disciplina vão entrelaçando um ao outro, alinhavando-se e formando um tecido onde cada um de nós pode identificar os "pontos" de cada autor; enquanto Durval dirá que as feministas marxistas vão "requerer" para si um direito de classe dentro das estruturas do marxismo, Valéria Fernandes da Silva dirá que:

A história do possível é aquela que desvela como foram constituídas as naturalizações a respeito da ação de homens e mulheres ao longo da História. Esta é uma das preocupações das historiadoras feministas desde meados do século XX, mas coube à Navarro-Swain estruturar essa proposta de forma teórica.

Como se pode notar, este grupo de mulheres vão estruturar uma proposta de forma teórica dentro de um campo de saber que não é fixo que tem como característica fundamental o nomadismo e que, ao fim e ao cabo, suporta o peso das diferenças; o pós-estruturalismo.
Como nos diz Heloísa Buarque de Hollanda: A agenda teórica pós-moderna abriga [...] um elenco de questões em torno dos efeitos gerados pela perda da credibilidade nas metanarrativas fundadoras e no processo de erosão e desintegração de categorias até então inquestionadas, como as noções de identidade e autoria [...] privilegiando os caminhos críticos apontados pela revalorização da história no exame das ideologias que estruturam as formações discursivas e os processos de construção das subjetividades. (HOLLANDA, 1991: 8)
Rosi Braidotti faz uma ferrenha crítica ao sujeito universal, fixo pelas identidades do cânone europeu, ainda procura com muita perspicácia dar novos enfoques na constituição do sujeito e, ainda "(?) atenção especial é dada à tarefa da construção de uma definição feminista e anti-racista da identidade européia, no contexto do contestado espaço da União Européia ". Rosi, nos alerta sobre certas práticas de "denegrir" a imagem do pós-estruturalismo na Europa visto que este procura desconstruir as "verdades" milenares que perpetuam incólumes, porém questionadas "As carreiras relativamente sombrias dos líderes pós-estruturalistas, em seus próprios países natais, testemunham o fato de que as correntes principais de filosofia e ciência social na Europa vêem o pós-estruturalismo com grande suspeita. Butler e Scott ( 1992) sugeriram que isso pode ser relacionado ao fato de que esta filosofia evoca o medo da perda de maestria e uma espécie de despossessão cognitiva ? por isso encontram recepções muito hostis ", vemos neste discurso toda uma hostilidade ao que é diferente, a tudo o que questiona a ordem imposta pelo discurso dominante e a homogeneidade.
Joan Scott analisa o mecanismo pelo qual uma identidade coletiva é criada e assim adquire uma história. A autora se vale de noções psicanalíticas de fantasia,
"(?) argumento que o feminismo assume um sentido de partilha entre mulheres, fazendo apelo a cenários de fantasia, que possibilitam a transcendência das diferenças e da história. Introduzo então a noção de eco ? a repetição distorcida do som, cuja origem é duvidosa ? como uma via para compreender como a história opera na construção da identidade. Identidade como continuidade, coerência, fenômeno histórico é uma fantasia que apaga as divisões e descontinuidades, elimina as diferenças que separam os sujeitos no tempo. O eco dá um brilho à fantasia, lembrando-nos que a identidade é construída, em relações complexas e distorcidas. A identificação (que produz identidade) opera como eco de uma fantasia, atualizando no tempo e através de gerações, o processo que forma indivíduos como atores políticos e sociais ".

A autora usa o termo fantasia e eco como uma metáfora, e nesta citação acima se pode ver que para tratar da História, estes novos termos incorporados às ferramentas que nós historiadores podemos utilizar, serve para que possamos ver que a fantasia às vezes é distorcida pelo eco, e que nem sempre uma "boa" fantasia tem eco, no entanto ecos e reverberações têm distorcido muitas práticas e discursos que poderiam produzir a diferença. Devemos nos lembrar que as identidades operam como um eco de uma fantasia e que o eco é o retorno imperfeito do som. Estas ressonâncias ou ecos (sons distorcidos) atuam diretamente nas construções da identidade da mulher. Devemos levar em conta que a tarefa dos estudos feministas é justamente identificar e deslocar a produção destes aparatos que atuam nas construções culturais que produzem as diferenças sexuais, as mulheres como sendo o outro, as identidades fixas e os regimes de verdade.
Um consenso entre todos os autores aqui mencionados é a aversão à identidade e "às buscas" da verdade absoluta. Durval Muniz, como ferrenho "destruidor" de identidades nos mostrará o mal que esta causará a humanidade, na construção de lugares fixos onde alguns sujeitos se recusam a ocupar.
"Andrelïne-Herculine Barbin, também chamada Alexina, prefere morrer a viver num lugar de sujeito que lhe é atribuído e ao qual deve se circunscrever, sendo mais uma vítima daquilo que podemos chamar de dispositivo das identidades, que busca definir para cada indivíduo um conjunto de traços corporais, uma história, um nome, uma série de lugares e classificações que o venha localizar e prender numa rede de poderes e saberes" .

No texto que contém esta citação o autor fará a sua trama utilizando-se da literatura mundial para mostrar o que uma construção de lugares fixos, de uma homogeneidade, uma identidade pode causar aos indivíduos. Os modelos impostos pela sociedade, são excludentes, assassinam a vida e os sonhos de quem se mostrar diferente. É muito comum vermos nos dias de hoje, estes mesmos monstros, frutos desta sociedade espalhados pelas cidades, podem ser encontrados nos vários lugares e até nos "não lugares", onde alguns procuram escapar das normas impostas pelo discurso dominante, seja nas beiras das estradas, paradas de caminhoneiros, aeroportos, nos becos, nas ruas, rodoviárias, praças, etc., o discurso identitário nomeou a todos estes seres "monstruosos" e anômalos, geralmente são chamados de putas, prostitutas, veados, biscates, ladrões, assassinos, feios, horrendos, disformes, etc.
Maria Bernardete Ramos Flores nos fará uma descrição de como os "estudiosos" das décadas de 1920 ? 1940 vão tratar da questão da fealdade no Brasil. Como esta elite da sociedade brasileira vai implantar sérias medidas eugênicas sob o pretexto de que a eugenia podia curar a nossa fealdade tão propagada pelos viajantes e reproduzida pelos discursos dominantes da elite. Mais uma vez temos aí uma serie de discursos de vários campos do conhecimento (Psicólogos, sexólogos, artistas plástico, intelectuais, políticos, educadores, religiosos, juristas, artistas, jornalistas, antropólogos, etc.) produzindo sujeitos assujeitados e reforçando o discurso científico que: já que era capaz de esculpir o mármore, também seria capaz de "esculpir" um corpo, delineá-lo, defini-lo segundo as regras estéticas do que seria O BELO.
Apesar de o mestiço ser o eixo simbólico da unidade nacional, a miscigenação era apenas um pressuposto para o branqueamento da raça, a arianização do povo brasileiro parecia uma lei fatal. A beleza almejada estava longe da América do sul, "O modelo de beleza que definia os estereótipos nacionais e os contra-nacionais na Alemanha, na Inglaterra ou nos Estados Unidos era o ideal almejado pelos defensores da formação da nossa nacionalidade ". Ou seja, nesta sociedade onde a modernidade começa a se despontar, não existe lugar para o feio, o anômalo; o feio agora é um corpo a ser esculpido e logo nas décadas seguintes, moldado pelos bisturis dos novos escultores da beleza.
No âmbito do nacionalismo Bernardete dirá que este fornece um dos mais constrangedores mitos, chamado por ela de identidade étnica ou de raça e, assim para controlar a raça e a sua "pureza", o Estado passará a controlar o comportamento sexual da sociedade, pois controlando a sexualidade, haverá uma previsibilidade da raça pura que embelezará o país.
Neste sentido os discursos vão produzindo sujeitos que aos poucos se acomoda em seus lugares marcados pela identidade, esta modernidade precisa de pessoas que façam as suas escolhas movidas pela exigência de se alcançar essa suposta identidade, sob pena de sucumbir à culpa .
Nestes novos tempos mudam-se as nossas concepções sobre ordem, caos e a relação entre eles; não mais a estabilidade/instabilidade que tende a ser abandonado. "Em seu lugar aparece a idéia de uma metaestabilidade: uma estabilidade que se faz e refaz a partir das rupturas de sentido, incorporando as composições de forças responsáveis por cada uma dessas rupturas ". Para uma melhor compreensão destas novas formas de subjetividades implica deslocar-se radicalmente de um modelo identitário e representacional, que busca o equilíbrio e que, para obtê-lo, despreza as singularidades. "Trata-se de apreender a subjetividade em sua dupla face: por um lado, a sedimentação estrutural e, por outro, a agitação caótica propulsora de devires, através dos quais outros e estranhos "eus" se perfilam, com outros contornos, outras linguagens, outras estruturas, outros territórios ". Se por um lado Suely Rolnik apresenta o caos como algo em voga (dado às ?profecias? de que o mundo vai acabar em 2012) por outro lado temos também a possibilidade de tal qual fênix, renascer das cinzas a partir do caos.
Nas questões da vida, nas questões de gênero Durval Muniz faz o seguinte questionamento, "De que nos servem belos textos escritos sobre as relações de gênero se estes não servirem para mudar estas mesmas relações? ", pelo fato deste autor advogar pela escrita com paixão, uma escrita como fogo que consome, uma escrita que desafia os cânones da linguagem e da lógica linear do pensamento iluminista que deixou prenhe as nossas instituições e a nossa sociedade, o mesmo sugere:

Escrever como quem mergulha em águas profundas, como quem se abisma no saber, no pensamento e em torno de si mesmo, escrever em zonas de ar rarefeito, escrever como uma aventura em precipício, como quem não se importa de não pisar em terra firme, escrever como ser tragado pelo torvelinho da vida, do pensamento e da própria escritura, se deixar levar pelas vagas e turbilhões que habitam nossos corpos e nossos desejos e, como Moby Dick, como a grande baleia, voltar à tona com os olhos injetados de sangue, com o sangue em brasa, com os olhos em fogo, permitindo ver de uma maneira menos tranqüila e pacificadora a própria existência, permitindo fazer dos estudos de gênero estados de gênero, permitindo fazer da escrita dos estudos de gênero, a escrita de novos gêneros e gêneros novos de escrita.

CONCLUSÃO:
Ao escrever esta breve conclusão descobri que faço parte de um grupo privilegiado, um grupo que tem a oportunidade de ler textos tão importantes para o nosso crescimento; textos tão ao gosto do meu paladar, talvez muitos de nós ainda não saibamos da importância deste curso que neste semestre discutiu temas tão complexos e polêmicos neste início da segunda década do século XXI; quem sabe ao olhar para traz, no futuro, nos daremos conta do quanto foi importante discutir estes temas justamente quando estamos vivendo, em minha opinião, um período de transição, onde vários saberes estão em constante debate, cada um disputando o seu quinhão, o seu espaço.
Vemos que muitas práticas condenáveis já há muito tempo, continuam fazendo parte do nosso dia a dia, tanto nas questões de gênero, quanto nas questões identitárias, parafraseando um autor que no momento eu não me lembro, "muda-se muito, pra continuar o mesmo".
Quero concluir este pequeno "relatório de leitura", um tanto pobre, dado a riqueza do conteúdo dos textos mencionados, de uma forma exultante, pois gosto de saber que o aprendizado de um curso não seja apenas pra cumprir uma formalidade acadêmica; prefiro saber que o conhecimento adquirido durante um semestre vá servir pra me tornar melhor como ser humano até pra que eu possa me arvorar à pretensão de melhorar a rua onde eu moro, o meu bairro, enfim a vida de mais alguém.
Não consigo conceber a aquisição de um conhecimento que eu não vá fazer uso para o bem de mais alguma pessoa, não consigo pensar num conhecimento fascista, que me colocará numa condição hierárquica de dominação. Gosto ainda de saber que posso fazer da minha história, uma história do possível, neste campo liso e escorregadio, neste banco de areia que às vezes é movediça, pra que eu fique sempre em movimento, sempre em margens diferentes, sem portos seguros ou lugares fixos.


NOTAS
Acadêmico do 5º. Semestre do curso de HISTÓRIA/UNEMAT/CÁCERES
"Os limites discursivos da história: imposição de sentidos".
Nordestino: uma invenção do falo ? uma história do gênero masculino (Nordeste 1920 ? 1940). ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Maceió: Edições Catavento, 2003.256 p.
História Feminista, uma história do possível - http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys14/textos/valeria.htm ? acesso em 05/07/2011 ? 15hs e 52 min.
História Feminista, uma história do possível ? p. 8
História Feminista, uma história do possível p. 9.
Diferença, diversidade e subjetividade Nômade - http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/rosi1.html ? acesso em 05/07/2011 ? 17hs e 04 min.
idem
idem
Fantasy Echo: História e a construção da Identidade - http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/scott1.html ? acesso em 05/07/2011 ? 19hs e 34 min.
Fantasy Echo: História e a construção da Identidade. P. 01.
A Bela ou a Fera: os corpos entre a identidade da anomalia e a anomalia da identidade - http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/a_bela_ou_a_fera.pdf - acesso em 05/07/2011 ? 21hs e 37 min.
A política da Beleza: Nacionalismo, corpo e sexualidade no projeto de padronização brasílica ? Diálogos latinoamericanos, número 001 ? Universidade de Aarhus ? Aarhus, Latinoamericanistas, pp. 88 ? 109 / http://redalyc.uaemex.mx/pdf/162/16200108.pdf ? acesso em 05/07/2011 ? 22hs e 28 min.
A política da Beleza: Nacionalismo, corpo e sexualidade no projeto de padronização brasílica. p. 89.
Suely Rolnik - Novas figuras do caos mutações da subjetividade contemporânea - Texto apresentado em mesa redonda no III Congresso Internacional Latino-Americano de Semiótica. PUCSP, São Paulo, 04/09/96. http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/caos.pdf ? acesso em 06/07/2011 ? 00hs e 53 min.
idem
idem
Escrever como fogo que consome: reflexões em torno do papel da escrita nos estudos de gênero - http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/escrever_como_fogo_que_consome.pdf ? acesso em 07/07/2011 ? 01hs e 18 min.
idem

Autor: Natanael Vieira De Souza


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