Remédio ou Veneno? As atuais alterações no regime jurisprudencial do Brasil



*Versão portuguesa de artigo publicado em língua inglesa pelo mesmo autor no Hamilton Institute (disponível em http://www.hamiltoninstitute.com/index.php?option=com_content&task=view&id=250&Itemid=47).

Inicialmente, deve ser dito que este trabalho é, também, um desabafo, de um advogado que se preocupa em estudar o sistema legal de um país e se depara com uma série de absurdos decorrentes de inovações que não são boas nem para os profissionais da lei nem para o povo, a quem nós servimos.

O sistema legal brasileiro segue a tradição romana ? germânica, diferente dos sistemas inglês ou norte-americano, que seguem a chamada commom law. A principal diferença entre estes tipos de lei é que no sistema brasileiro (seguido tradicionalmente pelos demais países latino-americanos, pela Europa continental e pelo estado americano da Lousiana), existe a prevalência da lei escrita prévia e genericamente, onde há grande relevância as coleções de leis, como os códigos (codex). Já o sistema inglês tem nas decisões reiteradas de casos análogos julgados nas cortes de justiça, chamados de precedentes, a sua principal fonte legal. Existem leis em países do sistema da commom law, como existem decisões precedentes no Brasil (chamadas jurisprudência), porém é importante que seja fixada qual é a principal fonte onde os juristas irão buscar material para interpretar o direito de maneira adequada.

Dentro do sistema inglês, é comum e rotineiro o chamado stare decisis, que, em uma explicação simples, significa que um tribunal está obrigado a julgar da mesma maneira um determinado tipo de caso judicial, e obriga, a todos os juízes que lhe são subordinados, a julgarem da mesma maneira. Esta maneira de trabalho é admissível em um sistema onde as decisões judiciais precedentes são as principais fontes do direito, e onde não existem muitas leis que cuidem de muitos casos diferentes. Contudo, este instituto jurídico inglês não tem sido mais exclusivo dos países de língua e cultura anglo-saxã, e tem se tornado mais comum em outros países, em especial no Brasil.

A Suprema Corte do Brasil, chamada Supremo Tribunal Federal, tem adotado uma espécie de norma muito parecida com o stare decisis, autorizada por uma recente reforma no texto constitucional ocorrida em 2005, chamada de súmula vinculante, na qual a corte, após julgar casos parecidos, publica uma norma que obriga todos os juízes e administradores públicos do país a interpretarem uma determinada norma em um único sentido, sob pena de responsabilização ou, no mínimo, da decisão ser reformada pela corte. Sob o olhar de um leitor de origem inglesa, tal norma não seria errada (ao contrário, é totalmente acertada). Contudo, dentro da cultura jurídica brasileira, tal decisão fere totalmente o ordenamento jurídico e as instituições que visam defender a boa aplicação do direito.

O Brasil, conforme já dito, é um país onde a lei tem prevalência. Tal pode ser aferido tanto na história do país quanto no conjunto de leis, sendo que somente na esfera federal existem quase vinte mil leis vigentes, sem contar com as leis estaduais e municipais. O uso da lei no Brasil como fonte do direito também é necessária por questão de legitimidade. No Brasil, como em outros países democráticos, os altos administradores públicos e os legisladores são eleitos diretamente pelo povo, e mesmo que muitos políticos não sejam as pessoas mais qualificadas para elaborarem leis, elas estão nas casas legislativas pelo sufrágio universal. Já os juízes, ao contrário, no Brasil não são eleitos. Para se tornarem juízes, os bacharéis em direito prestam uma prova pública, e se aprovados seguem a carreira nos respectivos tribunais, salvo raras exceções, que também não passam pelo voto do povo. Em países de origem inglesa, ao contrário, é comum que juízes sejam eleitos em suas localidades, e em algumas outras situações, os membros das altas cortes podem ser removidos pelos governantes ? que são eleitos pelo povo.

A constituição do Brasil, ao permitir que juízes do STF emitam súmulas vinculantes criou uma solução ? uma maior agilidade nos julgamentos, uma vez ser comum no Brasil casos judiciais repetitivos, onde milhares de demandas são idênticas. Contudo, criou um problema maior do que a solução, que foi diminuir a autonomia dos juízes em relação à lei. No sistema brasileiro sempre esteve presente o princípio do livre convencimento motivado dos juízes, de maneira que o juiz sempre esteve vinculado à lei ? legitimamente criada pelos representantes do povo ? e sua consciência, que interpretaria a lei diante do caso concreto. Atualmente, com a súmula vinculante, os juízes tem a sua autonomia limitada não mais pela lei, mas pelo entendimento de outros juízes, surgindo no Brasil a tentativa da criação de verdadeiros "juízes Hercules", tal como dizia o jurista americano Ronald Dworkin, mas na verdade autorizou a ditadura de toga, onde juízes sem a aprovação popular passam a dizer de maneira geral e irrestrita o que é certo e o que é errado.
Esta opção pela vinculação de todas as decisões jurídicas aos precedentes da suprema corte brasileira certamente visa exclusivamente a diminuirão de casos a serem julgados pelas cortes brasileiras. É de conhecimento de todos que os juízes em atividade no brasil não são suficientes para darem conta de todos os julgamentos de maneira eficiente. Contudo, melhor do que diminuir o número de processos com o prejuízo da independência judicial e a soberania em matéria legislativa dos legítimos representantes eleitos do povo ? fundamentais em um país democrático ? outras soluções poderia ser encontradas, como por exemplo o aumento do número de juízes e uma maior aproximação entre o povo e os julgamentos, como com a criação de juízes responsáveis por comunidades menores ? como um número específico de juízes para cada bairro, mesmo que o aumento do número de juízes causasse um fato indesejado por todos os membros das cortes ? a diminuição dos salários dos juízes, que recebem em média R$ 20.000,00 mensais!

No Brasil, existe um ditado popular que diz que "a diferença entre o remédio e o veneno é a quantidade a ser aplicada ao doente". Neste caso, a busca por uma cura (maior rapidez nos julgamentos e diminuição no volume de trabalho) está matando a independência judicial e o sistema legal brasileiro.

Autor: Aloysio Telles De Moraes Netto


Artigos Relacionados


O Juiz é Fonte De Direito?

O Juiz é Fonte De Direito?

O Poder Judiciário - Entre O Estado E O Cidadão

A Contratação De Um Juiz Por Um Brasileiro E Por Um Americano

Controle Constitucional E A Abstrativizacao

Questões Tributárias Correspondem A 30% Das Matérias Do Supremo

A Jurisprudência E Os Tribunais