VALE DOURADO



Parado diante da janela, Aldo olhava a cidade com seus prédios cinzentos e transito confuso. Estava de férias e não sabia o que fazer!

Voltou a sentar-se. Folhando uma revista, seus pensamentos se desviaram para o passado em Rochedo, cidade onde nasceu. Recordou-se da infância e adolescência na fazenda Vale Dourado de onde saiu com 17 anos para prestar o serviço militar na capital. Veio para a cidade grande e nunca mais voltou. Depois do exército, ganhou uma bolsa de estudos e ao se formar, arranjou um emprego de ajudante numa empresa de produtos alimentícios, subindo de cargo até se tornar gerente comercial
.

E Walter, como estará? Depois que saiu da fazenda, escreveu algumas cartas para ele e a ultima vez que o visitou foi há 15 anos!

Quando os pais de Aldo morreram, ele estava com 10 anos. Seu tio Walter o criou como a um filho e queria que ele aprendesse as lidas do campo e no futuro, cuidar da fazenda. Ele passou parte da adolescência entre gado e plantações, foi para a capital e ali ficou. Mas, agora pensava na fazenda, em seu pai adotivo que não via há quinze anos.

Aldo jogou a revista sobre a mesa e decidiu passar as férias em Rochedo.

-----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Rochedo havia mudado muito, havia edifícios modernos, ruas pavimentadas e movimentadas, grandes lojas.

Atravessando a cidade, Aldo seguiu pela rodovia e quinze minutos depois, entrou numa estrada de chão batido que o levou a Fazenda Vale Dourado. Ele parou o carro diante de um portão sob um arco de alvenaria. Dali já podia ver a sede da fazenda, uma casa de pedra com dois pisos, tendo ao lado um galpão de teto alto sustentado por grossas toras de cedro, mais adiante o curral e além os campos. À direita estava à velha figueira centenária, onde se sentara muitas vezes para ler gibi, adiante o pomar e o caminho que levava ao vale abaixo.

Aldo estacionou o carro sob a copa da figueira, saltou e se dirigiu para a casa. A porta foi aberta por uma moça de rosto redondo, cabelos compridos, lisos, olhos brilhantes, inquiridores. Usava um vestido bege, comprido, um pouco abaixo dos joelhos e calçava sandálias. Aldo tinha uma vaga idéia de quem era a moça, mas ela parecia ter certeza de quem ele era. Acabou de abrir a porta, dizendo:

- Entre.

Aldo passou pela porta e voltou a olhar para a jovem.

- Você é Laura, não é?

- Sim. Finalmente apareceu!

- Quando fui para a capital, você ainda era uma garotinha!...

Laura esboçou um sorriso. Aldo sentiu que ela estava contrafeita com alguma coisa.

- E Walter?

- Está no quarto, na cama. Pegou uma pneumonia, mas agora está melhor. Suba. Ele vai ficar feliz em te ver.

Aldo subiu a escada para o piso superior onde ficavam os dormitórios. O de Walter era o do meio. A porta estava entreaberta. Deitado no leito, o enfermo estava de olhos fechados. A claridade do dia entrava pela janela. A um canto, sobre uma cômoda, havia vidros de remédios ao lado de um aparelho de televisão. O soalho rangeu e Walter abriu os olhos. Aldo acabou de entrar.

- Aldo! Apareceu!... Walter ergueu o tronco e sentou-se, recostando-se nos travesseiros. Aldo cumprimentou-o e sentou-se numa cadeira, ao lado do leito.

- Eu devia ter vindo há mais tempo, mas sempre fui adiando. Laura disse que você esteve mal! Como se sente?

- Estou melhor. Tenho uma boa enfermeira!

Aldo mirou aquele rosto magro, barba por fazer, as mãos calejadas de veias salientes, pousadas sobre os lençóis. Walter envelheceu.

- Estou de férias e se você não se importar, pretendo ficar uns dias na fazenda.

- É claro que não me importo! Essa casa também é sua! É bom ter vocês dois aqui. Laura resolveu morar na fazenda para cuidar de mim. Ela vai se casar com Carlitos lembra-se dele?

- Claro!

- Vocês não se davam muito bem. Viviam brigando!...

- Coisas de adolescentes.

- Espero que agora tenham mais juízo...

Walter teve um acesso de tosse. Respirou fundo, limpando a boca com um lenço.

- Acho melhor não conversar muito. Vou deixá-lo descansar. Vou descarregar a minha mala. O meu quarto está vazio?

- Sim. Laura está no outro. Fique a vontade.

Aldo voltou a descer. Na sala, Laura conversava com um homem que se encontrava de pé junto à porta com um chapéu de vaqueiro na mão. Aldo reconheceu aquele rosto quadrado, testa larga, cabelos cor de areia. Vestia calça, jaqueta jeans, e botas. Tinha aquele mesmo olhar insolente, aquele riso forçado e sarcástico. Carlitos aproximou-se estendendo a mão para cumprimentá-lo.

- Então, o Aldo apareceu! Como vai?

- Tudo bem. E você?

- Melhor não poderia estar. O que tem feito? Não apareceu mais!

- Trabalho e mais trabalho. Agora estou de férias e vou passar uns dias com Walter.

Carlitos sacudiu a cabeça. Laura observava os dois. Sabia que sempre haveria uma barreira de intolerância entre Carlitos e Aldo. Foram rivais na infância e o seriam na vida adulta. Mas, aquela rivalidade tinha seus códigos de honra e cortesia.

- Com licença. Vou descarregar o carro.

- Conversaremos depois. Disse Carlitos.

Aldo colocou o carro na garagem nos fundos da casa, levou a mala para o quarto e voltou a sair. Atravessou o pomar e seguiu por uma trilha sombreada até a entrada do vale. O terreno descia suave para o Vale Dourado, nome que Walter dava aquela parte de suas terras, uma parte de mata atlântica que ele preservava tanto pela beleza quanto pela diversidade de animais e vegetação. Aldo sentou-se numa pedra e ali ficou admirando a paisagem e recordando o passado. Entardecia quando voltou para casa. Laura fazia o jantar. Carlitos já tinha se ido.

- Como está Walter?

Colocando lenha no fogão, Laura respondeu:

- Está bem. Tive que forçá-lo a tomar os remédios! Por ele, já estava na roça capinando.

- Que bom que você está aqui. Disse Aldo, puxando uma cadeira e sentando-se.

- Quanto tempo pretende ficar? Perguntou a moça.

- Estou de férias e não tenho pressa em voltar. Walter não se importa que eu fique algumas semanas e você?

Laura sacudiu os ombros.

- Pouco me importa! Esta casa também é tua...

- Tive a impressão de que você não gostou de me ver...

Laura pegou alguns pratos no armário e colocou sobre a mesa.

- Impressão tua. Só acho que você deveria ter vindo mais cedo! Aliás, nunca deveria ter saído da fazenda, de perto de Walter. Não sei se você sabe, mas o tio perdeu quase tudo que tinha, teve que despedir os peões. Vendeu o gado, cavalos, e as terras estão sem uso por que ele não tem dinheiro para investir na agricultura e na pecuária. Sabe que ele pensou em vender a fazenda?

- Ele é o dono, pode fazer o que quiser. Acho até bom largar de vez a fazenda e ir viver numa casa menor. Sei que na cidade ele não vai morar...

- Estou cuidando dele e vou continuar cuidando mesmo depois de eu me casar com Carlitos. Enfatizou Laura. Ela colocou a comida sobre a mesa e um prato diante de Aldo.

- Carlitos já concordou com isso.

- Bom, então está certo! O tio estará melhor com você do que comigo. Quando vocês vão se casar?

Laura preparou um prato de comida e colocou-o numa bandeja, com talheres e um copo de suco de maracujá.

- No ano que vem.

- Custo a acreditar que você tenha gostado de Carlitos!

- Só por que você não gosta, acha que eu também não? Com licença, vou levar o jantar para o tio.

Depois de jantar e antes de se recolher para dormir, Aldo passou no quarto de Walter.

Ele estava recostado nos travesseiros, assistindo o noticiário na televisão. Walter baixou o volume, quando ele entrou e sentou-se na cadeira.

- Então, você vai ficar alguns dias! Que ótimo!

- Sim, tenho trinta dias de férias.

- Conte-me, o que tem feito? Casou? Tem filhos?

- Não. Sou solteiro, gerente de uma firma comercial. Estou bem! Aldo fez uma pausa. Estava preocupado com Walter. O tio chegava aos setenta anos e precisava de uma velhice saudável e tranqüila.

- Laura me disse que você pensa em vender a fazenda...

- Mudei de idéia. Vou passar a propriedade para o teu nome e o de Laura. Quero fazer um testamento em vida o quanto antes para não haver problemas. Vocês dois podem reiniciar o trabalho na lavoura e na criação de gado. Carlitos vai ajudar. Só quero que o Vale Dourado continue como está. Vocês podem implantar um projeto de turismo ecológico. O que acha?

- É uma boa idéia, mas eu tenho o meu emprego na capital e penso em criar a minha própria empresa lá.

- Então, você vende a tua parte para Laura.

- Claro!

Walter suspirou, fazendo um gesto, falando em tom baixo.

- Infelizmente não tive condições de manter a fazenda em atividade. Juros altos, muitos gastos e pouco lucro me levaram à falência. Mas, Carlitos vai ajudar. Ele falou que vai investir em equipamentos modernos, contratar peões, e recomeçar a pecuária com bovinos e suínos. Ele está acostumado com o campo. Tem dinheiro e não vai ter dificuldades de fazer tudo isso.

- Eu não gosto dele, mas desejo que tenha êxito.

- Ainda guarda rancores?

- Não. Só não confio nele.

Aldo ergueu-se enquanto Walter dizia:

- Até agora não tive nenhum motivo para desaprovar o casamento dele com Laura.

- Tomara que não tenha. Vou dormir, estou cansado! Boa noite!

- Boa noite, durma bem!

Na manhã seguinte Aldo acordou cedo com a intenção de dar uma caminhada. Vestiu uma calça jeans, camisa leve e calçou umas botinas que havia comprado antes de viajar. Na cozinha encontrou a mesa posta para o desjejum. Havia queijo, pão, mel, geléia, biscoitos e um pedaço de bolo. Sobre a chapa do fogão estava o bule de café e a leiteira. Aldo serviu-se e sentou-se para comer. Laura surgiu logo depois.

- Bom dia! Cumprimentou Aldo.

- Bom dia! Acordou cedo!

- Vou dar uma caminhada. Walter está bem?

- Sim. Está tomando café. Como de hábito, acordou cedo. Está mais disposto, acho que a tua vinda fez bem a ele.

- Que bom! Eu deveria ter vindo há mais tempo, mas não deu. Se houvesse telefone aqui, a gente teria mais contato...

- Eu sei! Cortou Laura, sentando-se. Ela usava um vestido estampado com flores miúdas e usava os cabelos trançados, presos com uma fita azul. Sem pintura, seu rosto estava rosado, como que iluminado pela própria luz interna. ? Vocês dois detestam exprimir sentimentos de amor, carinho. São dois machões que odeiam mostrar o seu lado sentimental.

Ela olhou para Aldo, esboçando um sorriso.

- Sei que você gosta dele como a um pai e ele gosta de você como a um filho, porem são incapazes de se portar como tais.

Aldo fitou-a, admirado com a censura, mas aprovando-a.

- Você tem razão. Disse ele. ? Acho que somos assim mesmo...

- É. Vocês se corresponderam por algum tempo e as cartas foram se rareando até acabar. Cada um pensava nos seus negócios e deixavam as coisas como estavam apenas por orgulho. Eu entendo...

- Vou procurar melhorar esse meu lado. Aldo acabou de tomar o café e se retirou.

Quando saía pela porta da frente, estacou ao ver um carro aproximar-se e estacionar no pátio. Dele saltaram Carlitos e uma jovem de cabelos pretos, longos. Usava um conjunto de calça e jaqueta preta e botas. A boca pintada de vermelho era acentuada pela pele clara, os olhos com uma pintura escura, suave, as unhas também pintadas de vermelho, e vermelho era o lenço enrolado no pescoço.

- Salve Aldo! Saudou Carlitos e indicou a jovem com a mão, disse: ? Lembra da minha irmã, Adélia? Ela soube que você chegou e desejou vê-lo.

Adélia sorriu, ergueu uma mão e agitou os dedos.

- Tudo bom, Aldo?

Ele admirou-se ao vê-la. Adélia devia ter uns nove anos quando a viu pela ultima vez. A menina sardenta tornara-se uma bela moça. A jovem deteve-se junto a ele enquanto o irmão entrava na casa.

- Estava de saída? Perguntou ela.

- Vou dar uma caminhada.

- Posso te acompanhar? A manhã está tão linda!

- Claro, vamos.

Seguiram os dois pela trilha em direção ao vale. Uma parte do caminho era margeada de um lado por uma plantação de legumes e do outro por um pomar. Após o pomar a trilha seguia por entre um bosque de eucaliptos até chegar a um descampado na beira de uma ladeira.

- Esse lugar é lindo! Exclamou Adélia. Sempre gostei daqui. Não te traz recordações da infância?

- Sim, com certeza. A infância é a melhor fase da vida. Mas o tempo passa, a gente fica adulto, envelhece e vive o resto da vida com recordações.

- Ah! Como você vê a vida de uma forma amarga, Aldo! A vida é bela!

- Tem razão. É que eu, de certa maneira, tenho medo do futuro. Vejo-me daqui a alguns anos, sentindo solidão e o peso do tempo sobre os ombros...

- Esse é um pensamento pessimista. Retrucou Adélia com bom humor. Depois ela ficou séria, olhando-o de lado ? Noto uma certa amargura em você. Você não é casado?

- Não.

- Alguma desilusão amorosa?

- Não. Aldo riu. - Acho que é por que estou chegando aos quarenta anos!...

- Bobagem!

Houve uma pausa. Aldo permaneceu calado, caminhando devagar, com as mãos nos bolsos. Adélia seguia no mesmo ritmo. Ele sentia o odor agradável do perfume que ela usava. A presença dela, a sua juventude e alegria era estimulante. O sol da manhã dissolvia as brumas da noite, mas nos terrenos baixos ainda havia nesgas de nevoeiro.

- O que você faz na capital?

- Trabalho numa empresa de produtos alimentícios. Sou gerente comercial.

- Que ótimo! Então está com o futuro garantido. Se ficasse aqui talvez se tornasse como um desses peões fedendo a cavalo...

- Para vencer na cidade grande é necessário estudo, dedicação, oportunidades...

- Rochedo tem crescido bastante nesses últimos dez anos. Algumas empresas têm se instalado no município, abrindo oportunidades de trabalho para muita gente. Mas, é necessário estudo, conhecimento...

Chegando a beira do riacho, sentaram num banco rústico, à sombra de um jequitibá.

- E você, faz o que? Perguntou Aldo, observando a paisagem. O curso do riacho seguia sinuoso através do vale, sumindo na distância entre a vegetação. Aquela era uma vegetação de mata atlântica, uma das poucas reservas que restavam na região.

- Trabalho na empresa de Carlitos. Ele tem uma empresa de engenharia e construção. Respondeu Adélia. ? Como vê, não é necessário ir para a cidade grande em busca de progresso. Meu irmão também estudou, se empenhou no trabalho e conseguiu abrir uma empresa. Bem, na realidade o dinheiro que papai deixou ao morrer também ajudou. Adélia fez uma pausa e encarou Aldo. ? Quer saber mais alguma coisa? Estou com 28 anos, moro com minha mãe, tenho namorado, ele se chama Ricardo e vamos nos casar no fim do ano. E você já está convidado...

- Que ótimo!

- Você disse que não se casou. Por quê?

- Tenho uma amiga, aliás, namorada...

- Amiga namorada! Já sei! Ela é casada, gosta de você, mas não quer deixar o marido. Acertei?

Aldo riu, erguendo-se.

- Nada disso. Vamos voltar pra casa?

A jovem acompanhou-o. Caminharam em silencio. Aldo se mantinha reservado a respeito de sua vida particular e Adélia não insistiu no assunto. Chegando a casa, as duas mulheres foram para a cozinha fazer o almoço e Aldo fez companhia a Carlitos na sala, apenas por polidez.

- Que tal fazermos uma pescaria um dia desses? Perguntou Carlitos.

- Qualquer dia. Isso é uma coisa que não faço há muito tempo...

Carlitos sacudiu a cabeça, fez uma pausa e perguntou, procurando não demonstrar muito interesse:

- Quanto tempo pretende ficar aqui?

- Alguns dias.

- Está com a intenção de morar na fazenda?

- Não. Sei que você e Laura vão cuidar bem de Walter...

- Com certeza. Casaremos e moraremos aqui. Esse também é o desejo de Walter. Mas, se você quiser essa também é a sua casa, pode vir morar aqui!...

Aldo sabia que Carlitos estava falando aquilo apenas por cortesia. Na realidade queria-o bem longe dali.

- Já me acostumei com a cidade grande, além do mais, meu trabalho, minha vida é lá.

Carlitos sorriu, bateu com as mãos nos joelhos e ergueu-se.

- Tenho uma garrafa de uísque no carro, vou buscar pra gente tomar um trago.

- Eu não bebo. Respondeu Aldo.

- Sem essa! Exclamou o outro e saiu. Aldo não o esperou, saiu da sala e subiu as escadas para o sótão. Ali Walter guardava alguns objetos que haviam pertencido a seu pai e outros que ele não mais usava. Havia uma carpideira, arreios, ferramentas diversas numa caixa, botas, tamancos, uma cadeira de balanço, quadros e um baú de madeira envernizada. Aldo abriu o baú onde havia guardado alguns objetos antes de partir para a cidade. Julgava que voltaria logo, mas quando saiu do exército ganhou uma bolsa de estudos. Formou-se, arranjou emprego e lá ficou. No baú estavam seus cadernos, gibis, um estilingue, as botinas, o jogo de damas, o chapéu de couro. Aldo estava agachado, olhando aqueles objetos e recordando sua vida na fazenda, quando um ruído no assoalho interrompeu seus pensamentos. Ele virou-se e viu Adélia entrar.

- Vi quando você subiu. Disse ela num sussurro. ? Está procurando algum tesouro escondido?

- Recordações. Respondeu Aldo.

- Posso ver? Perguntou Adélia, ainda em voz baixa.

Aldo imitou-a, dizendo:

- Porque está falando num tom baixo? Aqui não tem nenhum monstro adormecido...

Adélia sorriu. Ela estacou muito próxima dele, com o rosto erguido, os olhos semicerrados. Ele sentia o calor do corpo dela, aquela radiação corporal preparando-se para o sexo. Bastava inclinar o rosto e beijá-la. Ela fitou-o intensamente, respirando profundamente. Aldo acreditava que possuía uma campainha que tocava toda vez que havia alguma coisa errada, uma ameaça invisível. Naquele momento a campainha tocava. Ele contornou a jovem e dirigiu-se para a saída.

- Acho melhor a gente descer. Sem esperar por ela, Aldo desceu, passou pela cozinha e avisou Laura que ia a cidade. Saiu pela porta dos fundos, pegou o carro e partiu. Estava chateado. Não por não ter beijado Adélia, mas por ela ter se oferecido para isso. Não queria envolver-se com ela, tampouco fazer amizade com Carlitos.

Na cidade foi ao banco fazer uma transferência de dinheiro e retirar um talão de cheques. Ao voltar para o carro no estacionamento, um rapaz andrajoso aproximou-se estendendo a mão, pedindo uns trocados. Ao olhar para ele, Aldo teve a impressão de que o conhecia. Demorou-se em procurar as moedas nos bolsos, enquanto observava aquele rosto com barba por fazer, a pele oleosa, os cabelos compridos, lisos, os olhos repuxados indicando uma descendência indígena. Então, o reconheceu, era seu amigo de infância, Álvaro! Aldo admirou-se penalizado com o estado miserável do rapaz que para ele, foi um amigo leal, como um irmão... Álvaro não o reconheceu, permaneceu com o olhar baixo, esperando as moedas. Aldo sentiu que não podia simplesmente dar-lhe as moedas e deixar por isso.

- Álvaro, não me reconhece? Sou Aldo!

- Aldo? Álvaro procurou focalizar a imagem dele enquanto garimpava no fundo da memória, as boas recordações que a penúria havia encoberto.

- Sim, meu amigo! O que aconteceu com você? Onde mora? Precisamos conversar! Vamos, vou levá-lo para casa. Entre no carro.

Aldo ajudou-o a entrar.

- Onde você mora? No mesmo lugar de antigamente, na casa da tua mãe?

- Não. Vá por ali.

O tom de voz era de alguém desanimado com a vida. Ele cheirava a álcool, mas não estava embriagado. Aldo dirigiu o carro para a periferia da cidade. Alguns minutos depois o rapaz mandou-o entrar numa rua sem calçamento, que levava a alguns casebres.

- É aqui. Disse Álvaro. Aldo parou o carro em frente a um barraco caindo aos pedaços. A moradia era de um só cômodo, com um catre, um armário velho, uma mesa, dois mochos, um fogão velho e varias quinquilharias. O piso era de chão batido. Arrastando os sapatos poeirentos no chão, Álvaro sentou-se na beira da cama e depois se estirou com um suspiro. Aldo encontrou pó de café numa lata de leite em pó e açúcar num pote de manteiga. Pegando água de uma talha colocou numa chaleira, lenha no fogão e fez fogo. Puxou um mocho e sentou-se. Álvaro pegou no sono. Na ultima vez em que esteve em Rochedo, Aldo foi visitar o amigo. Álvaro trabalhava no armazém com o pai e estava namorando Rosa. Os dois faziam planos para a festa do noivado e casamento. Tudo estava bem para Álvaro. Agora, ali estava ele, sozinho e na miséria. Quando o café ficou pronto, Aldo serviu uma caneca com bastante açúcar. O álcool queima açúcar do organismo e é necessário repô-lo. Aldo acordou o rapaz e o fez beber o café. O amigo era cinco anos mais novo que ele. Álvaro foi um aluno aplicado, inteligente, de boa índole. Tinha tudo para vencer na vida. Ele bebeu o café e permaneceu sentado na beira do leito, com as mãos na cabeça.

- Então? Sente-se melhor?

- Apenas com dor de cabeça. Álvaro ergueu os olhos e fitou Aldo. - A vida foi cruel comigo. Vá embora. Tenho vergonha!...

- Deixe disso! Somos como irmãos e agora que o encontrei nesse estado, não vou deixá-lo. O que aconteceu contigo?

Álvaro apoiou-se nos joelhos e fitou o chão.

- Meu pai estava endividado e teve que vender o armazém. Carlitos me arranjou emprego no escritório da firma dele. Ele tem uma construtora. Comprou terrenos baratos, fez casas e vendeu. Tudo com materiais de segunda linha. As casas construídas onde antes eram açudes, tiveram as paredes rachadas e os moradores abriram processo contra Carlitos. Como não concordei com as falcatruas dele, pedi demissão e fui testemunha em um dos processos contra ele. Mas não deu em nada, Carlitos tem dinheiro, contratou os melhores advogados, subornou pessoas e nada sofreu. Para se vingar de mim, armou uma cilada com ajuda de uma amiga dele. Álvaro ergueu o rosto e perguntou: - Lembra da Suzi? Ela foi até a minha casa dizendo que tinha um recado de Carlitos para mim. Mas, mudou a conversa de rumo, dizendo que gostava de mim, que estava apaixonada. Tirou parte da roupa e deitou-se no sofá. Procurei mandá-la embora. Naquele instante Rosa chegou e me viu segurando Suzi, que estava quase pelada. A bisca começou a gritar dizendo que eu tinha atacado ela. Você pode imaginar o escândalo. Carlitos fez a denúncia e fui preso por tentativa de estupro. Suzi se arrependeu me mandou uma carta contando que a idéia foi de Carlitos. Quando saí da cadeia eu não tinha mais nada. Não tinha mais noiva, emprego, meu pai morreu e minha mãe foi morar com uma irmã. Não queria mais me ver. Depois ela me perdoou, mas eu estava desiludido da vida, não conseguia emprego, comecei a beber e fiquei desse jeito....

Aldo ficou irritado ao saber que o causador da desgraça do rapaz era Carlitos.

- Eu vou te ajudar. Você precisa se internar numa clínica, se curar do vicio da bebida.

- Não adianta!

- Como não adianta? Depois, você vai comigo para a capital. Vou arranjar um emprego para você. E Rosa?

Álvaro deu de ombros.

- Se casou com um advogado. Não quis nem me ver... Pouco me importa agora.

- Melhor assim. Esqueça ela. Na capital você vai ter uma vida nova.

Aldo fez uma pausa, ergueu-se deu algumas passadas e parou diante da porta, pensativo. Voltou-se, dizendo:

- Carlitos continua o mesmo canalha. Sabia que ele vai se casar com Laura?

- A tua prima, Laura?

- É. Eles vão morar na fazenda de Walter...

- Casamento por interesse! Exclamou Álvaro. - Quando eu trabalhava para ele, vi no escritório as plantas de um projeto para a construção de um condomínio habitacional. Sabe onde? No Vale Dourado. Laura é herdeira de Walter e aposto que Carlitos fará tudo para que Walter passe aquelas terras pro nome dela!

Aldo olhou para Álvaro, surpreendido com aquela revelação. Era uma coisa que ele não tinha pensado.

- Ele vai destruir o vale que Walter deseja preservar! Canalha!

Mas, eu vou arranjar um jeito para mostrar a Laura o que ele realmente pretende fazer. Agora, vamos, vou levá-lo a clínica. Antes, tome um banho e vista sua melhor roupa. Passaremos no barbeiro e numa loja pra comprar roupas e calçados...

Quando Aldo chegou à fazenda, já anoitecia.

- Eu já estava ficando preocupada! Exclamou Laura ao abrir a porta. Você saiu antes do almoço e volta agora! Walter já perguntou por você umas três vezes!

- Primeiro vou tomar um banho e mudar de roupa. Converso com você depois...

Logo depois, Aldo desceu para jantar. Enquanto Laura servia a comida, ele perguntou:

- Lembra de Álvaro?

- Sim. Há quatro anos ele foi preso por ter tentativa de estupro. O que tem ele?

- Tirei-o da sarjeta e internei-o numa clínica. Ele me contou certas coisas sobre Carlitos.

Laura mostrou-se surpreendida.

- E você acreditou naquele louco?

- Laura, eu conheço Álvaro desde criança. Ele é racional, decente...

- Sei o que ele te disse, que foi uma armação de Carlitos.

É um absurdo!

- Preste atenção! Carlitos tem um projeto para a construção de um condomínio no Vale Dourado! Ele sabe que Walter não venderá aquelas terras e a única maneira de ele se apossar delas é casando com você...

Laura soltou um riso sem vontade.

- Que idéia mais tola! Você quer dizer que estou sendo enganada? Aldo, por favor, não se meta na minha relação com Carlitos. Ele não é o que você pensa!

Irritada, Laura deixou a cozinha e dirigiu-se para a varanda nos fundos da casa. Aldo sentiu que tinha uma grande batalha pela frente. Depois de comer, subiu ao quarto de Walter. Recostado nos travesseiros, ele assistia televisão. A ver Aldo entrar, baixou o volume com o controle remoto.

- Como se sente? Perguntou Aldo, sentando-se ao lado do leito.

- Melhor. Esteve na cidade?

- Sim. Encontrei meu amigo Álvaro. Lembra dele? O filho do velho Henrique...

- Sim, como não? Eu soube que esteve preso...

- Ele me confessou que foi Carlitos quem pagou para Suzi fazer aquela encenação.

- E você acreditou nele...

- Se é culpado ou não, já pagou a sua pena. Mas, não vim aqui para falar dele e sim sobre as reais intenções de Carlitos. Acho que ele vai se casar com Laura apenas para tomar posse do Vale Dourado, onde pretende construir um condomínio fechado. É um projeto antigo. Álvaro trabalhou para Carlitos e viu as plantas...

- Condomínio no vale? Então é por isso que ele queria comprar aquelas terras! Como eu coloquei um ponto final no assunto, ele parou de insistir! Prometeu que vai fazer investimentos na fazenda e conservar o vale como está. Carlitos é um canalha. E Laura, sabe disso?

Walter estava espantado com aquela revelação. Pelo menos ele não é um cabeça dura como Laura. Pensou Aldo.

- Eu contei, mas ela não acredita em mim.

- Me chame Laura aqui.

- Espere! Acho que não vai adiantar. Vou pensar em alguma coisa para desmascarar Carlitos. Dê-me um tempo...

-------------------------------------------------- ---------------------------------------------------------

No dia seguinte, Aldo foi à clínica, visitar Álvaro. Sentaram os dois num banco no jardim.

- Então, como está se sentindo?

- Acordei com náusea, mas eles me deram um remédio e logo passou. Álvaro fez uma pausa, apertando as mãos. -Procuro me controlar para não sair daqui e entrar no primeiro bar que encontrar. Mas, resolvi me curar. Você me deu esperanças, Aldo! Obrigado.

- Ora, é meu dever. Logo você sairá daqui. Eu trouxe algumas frutas e revistas pra você. Deixei na recepção.

- Obrigado. Mas, me conte como está Walter?

- Melhor.

Aldo conversou mais algum tempo com Álvaro e foi embora, prometendo que o visitaria no fim de semana. Passando no centro da cidade, ele parou no banco para fazer uma retirada de dinheiro. Na porta quase esbarrou em Laura.

- O que você faz aqui? Perguntou.

- Vim receber a aposentadoria de Walter!

- E você o deixou sozinho?

- O tio está melhor. Já deu até uma caminhada no pátio! Perguntou por você...

- Como você veio?

- Carlitos me deu uma carona. Ele teve que ir ao cartório e pediu para que eu o esperasse no escritório...

- Nada disso. Espera, vou te dar uma carona, vou pra casa mesmo...

Dirigindo pela estrada rumo à fazenda, Aldo disse:

- Então, você não acredita que Carlitos quer se casar contigo por interesse?

- Lá vem você com esse assunto! Não adianta Aldo. Você não vai me fazer mudar de idéia.

- Quando você abrir os olhos será tarde demais.

- Não, não vai ser tarde. Se ele for mesmo o que você diz, um crápula me separo dele, é simples. Por que parou aqui?

Aldo parou o carro na beira da estrada, alguns metros antes do portão.

- Aquele carro diante da porta, não é do Carlitos?

- É, é sim. Mas, ele disse que...

- Esqueça o que ele disse. Vamos! Aldo desceu rápido e seguiu para a casa a passos largos com Laura correndo atrás de si.

- Espera! Por que tanta pressa?

Aldo estacou e colocou uma mão no ombro dela.

- Não faça barulho. Vamos entrar em silêncio.

Laura ia falar alguma coisa, mas Aldo colocou um dedo sobre os lábios dela. Fez um sinal e abriu a porta devagar. Atravessou a sala e cautelosamente subiu a escada para o andar superior. Laura seguiu-o lentamente. No patamar eles ouviram as vozes alteradas de Carlitos e Walter.

- Só estou pedindo pra você assinar esse documento e passar aquelas terras pro nome de Laura!...

- Não adianta Carlitos! Retrucou Walter. ? Eu sei que você vai construir um condomínio no vale. Já sei de tudo. E eu não vou assinar nenhum documento!

- Você não vai estragar meus planos, velho caduco!

Ao ouvir aquelas palavras, Laura colocou as mãos empalmadas sobre a boca, fitando Aldo com espanto. Aldo não esperou mais, num arranco entrou no quarto e surpreendeu Carlitos sobre Walter, tentando sufocá-lo com um travesseiro. Aldo atirou-se sobre ele, puxando-o por um braço e deu-lhe um soco no rosto. Carlitos rodou nos calcanhares e caiu.

Mas, ele logo se ergueu e correu, saindo pela porta. No topo da escada quase esbarrou em Laura, que o encarou com uma expressão de repugnância. Desconsertado, Carlitos não parou, deu, meia volta, pisou em falso, perdeu o equilíbrio, soltou um gemido e caiu, rolando pela escada a baixo.

-------------------------------------------------------------------------------------------------------

O resultado do exame do médico legista concluiu que Carlitos morrera não da queda, mas de ataque cardíaco.

Laura estava desolada, decepcionada e Aldo permaneceu em companhia dela o tempo todo. Duas semanas depois, Walter já estava recuperado da saúde e Aldo promoveu um jantar e convidou Álvaro. Nessa ocasião ele anunciou que aceitava ficar na fazenda e que tinha a idéia de transformá-la numa estância de veraneio, com piscinas, pousadas e passeios pelo vale.

- Esse era o projeto que o senhor queria realizar. O que acha?

- Ótimo, vá em frente! Respondeu Walter.

- E você? O que acha?

- É uma boa idéia. Respondeu Laura.

Aldo colocou uma mão sobre o ombro de Álvaro.

- Nós vamos precisar de ajuda e Álvaro pode nos ajudar sendo o gerente! Então, meu amigo, aceita?

- É claro!

Assim, Aldo deu outro rumo em sua vida. Ele gostava de Laura e sabia que poderia ser feliz com ela. Sabia também que ela gostava dele. Mas, ele estava disposto a esperar que ela esquecesse definitivamente Carlitos, para poder dizer-lhe que já não podia viver sem ela.
Autor: Antonio Stegues Batista


Artigos Relacionados


Amor Proibido

AssÉdio

Botox

Reencontro

VisÕes Na Campina

Tpm

Jesus Sempre Presente Em Nossas Dificuldades .