INTERDISCIPLINARIDADE: UMA ATITUDE ESPISTEMOLOGICAMENTE POSSÍVEL



Resumo: Discussões sobre a organização de currículos contextualizados, integrados e interdisciplinares têm sido freqüentes nas últimas décadas. Tais discussões são derivadas das divergências existentes sobre as visões de aluno, família, função de escola e a função de um currículo para cada etapa escolar. Portanto, existem inúmeras dúvidas e receios em relação à organização curricular já existente e as propostas sugeridas para a readequação do mesmo. Um desses tantos questionamentos refere-se
à interdisciplinaridade proposta em alguns dos documentos oficiais que tratam sobre o tema currículo. O presente artigo visa apresentar um estudo sobre a interdisciplinaridade curricular, visto que o termo, por vezes, é equivocadamente compreendido.
Palavras-chave: Currículo e Interdisciplinaridade.

Introdução


Uma das características que distinguem o século XX dos demais é a freqüente reorganização e discussão do conhecimento. Como ensinar, o que ensinar, como organizar o currículo ideal, qual a necessária formação dos professores para lidar com essa nova demanda de conhecimentos, enfim, todas essas perguntas permeiam há tempos a esfera educacional. Nesse contexto, o desenvolvimento de pesquisas sobre a interdisciplinaridade tem crescido consideravelmente, visto que a preocupação em compreender e solucionar problemas significativos exige o esforço de vários campos do conhecimento.
A multiplicidade de áreas científicas, a variedade de modelos de sociedade cada vez mais abertos, a universalização da comunicação e da informação e a complexidade do mundo e da cultura atual exige a pesquisa de várias informações, conhecimentos e disciplinas.
Deste modo, é importante tomar conhecimento dos estudos sobre interdisciplinaridade, pois uma reflexão epistemológica cuidadosa sobre essa vertente possibilita consideráveis avanços na compreensão do melhor currículo para atender as exigências sociais e educacionais atuais.

INTERDISCIPLINARIDADE: UMA ATITUDE EPISTEMOLÓGICA

O movimento pedagógico a favor da interdisciplinaridade surgiu de reivindicações progressistas organizadas por pessoas que lutavam por uma maior democratização da sociedade. Essa luta era uma forma de protesto contra a taylorização no âmbito educacional e contra o fato de que nem professores nem alunos podiam participar de uma discussão democrática dos assuntos de seus interesses. As políticas e práticas educacionais não permitiam o desenvolvimento desses diálogos e os conteúdos culturais estavam demasiados distantes da realidade dos alunos, sendo apresentados de forma abstrata, desconexa e incompreensível. O resultado é que, como estratégia para sobreviver nas salas de aula, os alunos e alunas passaram a acumular em suas mentes uma sobrecarga de fragmentos sem conexão uns com os outros, que só são aceitos se baseados na repetição ou na autoridade (DEWEY, 1989 apud SANTOMÉ, 1998).
Nesse período, o que importava nas instituições educativas eram as notas obtidas pelos alunos, refutando-se o processo de trabalho em virtude do produto, que era resumido em qualificações escolares. Com a necessidade das indústrias em encontrar especialistas para enfrentar os problemas e os objetivos específicos de seus processos de produção e de comercialização, a disciplinaridade do conhecimento ficou ainda mais evidente, embora houvesse partidários que lutavam contra essa tendência, apoiando propostas de formação mais generalistas.
Com a flexibilidade da produção e dos mercados, ocorreu uma mudança significativa no contexto laboral dos trabalhadores, exigindo a participação destes na programação, desenvolvimento e avaliação das tarefas executadas. Começa-se, então, atribuição maior da importância ao trabalho em equipe, em contraponto ao trabalho individual defendido pelos tayloristas e fordistas.
De acordo com o pensamento de Santomé (1998), se transportar essas mudanças para a esfera educacional, entende-se que as ideias de descentralização, autonomia dos centros escolares e flexibilidade dos programas escolares começam a ganhar mais força e as pretensões de se organizar um currículo não só em torno de disciplinas, mas de núcleos que ultrapassam os limites das disciplinas, centrados em temas, problemas, tópicos, instituições, períodos históricos, espaços geográficos, grupos humanos e ideias instauram-se nos discursos dos profissionais da educação.
A aposta na relevância desse tipo de currículo teve apoio do próprio Piaget, que se posicionando com relação ao ensino compartimentado em disciplinas, afirma que se a escola quiser adaptar-se às condições do progresso científico, deverá acentuar o estruturalismo curricular cada vez mais generalizado e conquistador, que implica indubitavelmente, uma visão interdisciplinar (PIAGET, 1975 apud SANTOMÉ, 1998).
Para compreender de forma mais clara a interdisciplinaridade, Ferreira (apud FAZENDA, 1996) utiliza uma metáfora, considerando o conhecimento como uma sinfonia. Para a sua execução será necessária a presença de muitos elementos: os instrumentos, as partituras, os músicos, o ambiente, a plateia, os aparelhos eletrônicos etc. A orquestra está estabelecida. Todos os elementos são fundamentais, descaracterizando, com isso, a hierarquia de importância entre os membros. Durante os ensaios as partes de ligam, se sobrepõem e se justapõem num movimento contínuo, buscando um equilíbrio entre as paixões e desejos daqueles que a compõem. O projeto é único: a execução da música. Apesar disso, cada instrumento possui elementos que o distinguem dos demais. O violino é diferente do piano, tanto na forma como na maneira de ser tocado. Deste modo, para que a sinfonia aconteça, será preciso a participação de todos. A integração é importante, mas não é fundamental porque na execução de uma sinfonia é preciso a harmonia do maestro e a expectativa daqueles que assistem.
Transportando essa metáfora para a esfera educacional, pode-se concluir que o conhecimento é uma sinfonia, ou melhor, é o conjunto de diversas disciplinas, métodos e procedimentos que auxiliam na compreensão de diferentes questões-problema. Para sua execução/desenvolvimento, será necessária a presença de muitos elementos; no caso da sinfonia, os instrumentos musicais e as pessoas envolvidas no espetáculo e no caso da construção do conhecimento as disciplinas, métodos, procedimentos e as pessoas envolvidas na pesquisa. Todos os elementos são fundamentais, não havendo hierarquia entre eles. A sobreposição e justaposição dos elementos necessários para a construção do conhecimento trabalham em um movimento contínuo para atingir a uma finalidade: compreender o objeto de investigação. Cada disciplina é diferente uma da outra, cada um possui elementos que o distinguem um do outro, porém para a compreensão do objeto investigado, será importante a participação de todos (disciplinas, métodos, procedimentos e pessoas envolvidas).
Para abordar o tema interdisciplinaridade a partir de sua origem, é necessário investigar, inicialmente, o significado da palavra. O termo interdisciplinaridade é composto por três termos: inter ? que significa ação recíproca, ação de A sobre B e de B sobre A; disciplinar ? termo que diz respeito à disciplina, do latim discere ? aprender, discipulus ? aquele que aprende. Contudo, o termo disciplina também se refere a um conjunto de normas de conduta estabelecidas para manter a ordem e o desenvolvimento normal das atividades numa classe ? dizemos habitualmente que "esta classe é disciplinada, ou aquele aluno é indisciplinado", significando que a classe ou o aluno em questão respeita as normas de conduta estabelecidas; outro significado para o termo consiste em ordem conveniente a um funcionamento regular, submissão, subordinação a regulamento superior ? manter a disciplina equivale, nesta acepção, a seguir o regulamento, adequar-se a uma hierarquia; outro significado para disciplina é matéria, como quando nos referimos à matéria Introdução à Filosofia ou Fundamentos da Matemática ou Fisiologia; também é possível entender disciplina como um tipo de saber específico, com objeto determinado, conhecimentos e saberes relativos a este objeto e métodos próprios. O termo dade corresponde à qualidade, estado ou resultado da ação. Desta forma, uma ação recíproca disciplinar ? entre disciplinas, ou de acordo com uma ordem ? promovendo um estado, qualidade ou resultado da ação equivaleria ao termo interdisciplinaridade (PROUST, 1993).
Portanto, a interdisciplinaridade tenta o diálogo com outras formas de conhecimento, deixando interpenetrar-se por elas, causando a reciprocidade entre as áreas cognitivas. Deste modo, o senso comum é aceito como válido e ampliado através do diálogo com o conhecimento científico, enriquecendo a relação com o outro e com o mundo.
Desta forma, segundo Fazenda (1996), o projeto interdisciplinar é vivido e exercido através da responsabilidade individual e do envolvimento com o projeto, com as pessoas e com as instituições a ele pertencentes. Por conseguinte, Santomé (1998) destaca que apostar na interdisciplinaridade exige a defesa de um novo tipo de pessoa: mais aberta, flexível, solidária, democrática e crítica, pois o mundo atual precisa de sujeitos com uma formação cada vez mais polivalente, para enfrentar uma sociedade na qual a palavra mudança é um dos vocábulos mais frequentes e onde o futuro tem um grau de imprevisibilidade como nunca em outra época da história da humanidade.
Essa proposta educativa voltada à vivência do paradigma moderno e emergente em que se vive, exige que o conhecimento, o mundo e o homem sejam compreendidos numa perspectiva integral ou não-fragmentada, pois o desenvolvimento do projeto interdisciplinar implica a superação de múltiplas barreiras de ordem material, pessoal, institucional e gnoseológica através da criação, inovação e ousadia.
Porém é fato que alguns fatores impedem que essa dinâmica seja adotada e desenvolvida nas escolas, pois para Gusdorf (1970 apud FAZENDA, 1996) é mais fácil trabalhar de forma parcelada, com cada professor se responsabilizando pela aprendizagem de sua disciplina isolada, ao invés de discutir as ideias alheias ou suas próprias ideias.
Além disso, os obstáculos epistemológicos e institucionais surgem à medida que os conhecimentos são organizados em função das disciplinas, nas quais a classificação do conhecimento é feito segundo uma hierarquia de disciplinas que é o reflexo dos valores sociais vigentes.
As dificuldades metodológicas encontram-se justamente no sentido de reformular a estrutura de ensino das diferentes disciplinas num questionamento sobre a validade ou não das referidas disciplinas em função do tipo de indivíduo que se pretende formar.
Os problemas quanto à formação residem em uma profunda transformação da Pedagogia em vista de um novo tipo de formação de professores, caracterizando-se como uma mudança na atitude e na relação entre quem ensina e quem aprende. Passa-se de uma relação pedagógica baseada na transmissão do saber de uma disciplina ou matéria ? que se estabelece segundo um modelo hierárquico linear ? a uma relação pedagógica dialógica onde a posição de um é a posição de todos. Nesses termos, o professor passa a ser o atuante, o crítico, o animador por excelência.
Os obstáculos materiais encontram-se no sentido da falta de um a planejamento adequado, na falta de trabalhos em pequenos grupos e motivação para o trabalho, sem remuneração adequada. Enfim, além das dificuldades explicitadas, o preconceito em aderir a interdisciplinaridade deve-se ao desconhecimento do seu real significado e ao despreparo profissional, levando à preocupação de transformar o conhecimento em unidade global.

Diante disso, o que caracteriza a atitude interdisciplinar é a ousadia da busca, da pesquisa: é a transformação da insegurança num exercício do pensar, num construir (FAZENDA, 1993). Tal ousadia é garantida com o trabalho unificado de educadores e alunos, gerando uma ação educativa mais produtiva.
Essa transformação epistemo-pedagógica pressupõe o despojamento de preconceitos e o questionamento dos valores arraigados no consciente. As consequências da proposta interdisciplinar apontam para a melhora no desenvolvimento das atividades por parte dos estudantes e a definição do papel que os jovens deverão desempenhar na sociedade, visto que conseguirão se situar no mundo atual, criticando e compreendendo as inumeráveis informações que os agridem cotidianamente.
Visto que a realidade educacional é extremamente complexa e não comporta abordagens isoladas, exige a convergência de muitas disciplinas para o alcance de objetivos mútuos. Deste modo, a interdisciplinaridade vem recebendo o prestígio de solucionar os males da educação fragmentada, em prol da integridade do pensamento e da concepção unitária do ser humano.
Fazenda (1996) explica que seus estudos referentes à interdisciplinaridade não pretendem a superação do ensino organizado por diferentes disciplinas, mas sim propõe o desenvolvimento de funções que favoreçam as relações dinâmicas entre essas disciplinas, auxiliando na resolução de problemas sociais, à medida que seja respeitada e valorizada a contribuição de cada disciplina no alcance dos objetivos pretendidos.
Por isso, um dos pressupostos para realização da interdisciplinaridade, não é a negação da especificidade, mas o reconhecimento de que o específico demanda a busca de sua complementação. Neste sentido, Japiassú (1976 apud FAZENDA, 1996) expõe seu ponto de vista, afirmando que a exigência interdisciplinar impõe a cada especificidade, a tomada de consciência de seus próprios limites para acolher as contribuições das outras disciplinas, auxiliando na solução de dificuldades sociais, tecnológicas e científicas e "contribuindo ao mesmo tempo de forma decisiva para esclarecer novos e ocultos problemas que não podem ser vislumbrados por análises disciplinares [...]" (SANTOMÉ, 1998, p. 83).

CONSIDERAÇÕES FINAIS


A interdisciplinaridade surge como possibilidade de enriquecer e ultrapassar a integração dos elementos do conhecimento. Essa concepção curricular perpassa todos os elementos do conhecimento, pressupondo a integração entre eles, porém, é errado concluir que ela é só isso. A interdisciplinaridade está marcada por um movimento ininterrupto, criando ou recriando outros pontos para a discussão. Já na ideia de integração, apesar do seu valor, trabalha-se sempre com os mesmos pontos, sem a possibilidade de serem reinventados. Buscam-se novas combinações e aprofundamento sempre dentro de um mesmo grupo de informações (FAZENDA, 1993).
Segundo Pereira, Leite e Cavour (1991) a perspectiva epistemológica da interdisciplinaridade pressupõe a interação, e não simplesmente a integração de disciplinas científicas, de seus conteúdos e diretrizes, de suas metodologias e procedimentos. Os autores, assim como Ivani Fazenda, acreditam que com a interdisciplinaridade a escola pode se transformar em um lugar onde seja construído um novo saber.
Sabe-se que a prática da inovação sempre existiu no campo da educação, na medida em que não há desenvolvimento ou progresso sem mudanças e estas não existem sem inovação. Mudanças profundas na política educativa de um país devem ser traçadas independentemente das crises políticas dos governos, devem ter sentido de continuidade e estar enquadradas dentro de uma visão prognóstica sobre o futuro da sociedade a que se referem, sem deixar de considerar o lastro cultural ou histórico da mesma. Para uma reforma educativa viável e ética, é importante a ampla participação social da opinião pública e profissional, seja para acomodar a educação ao modelo de sociedade que se elegeu, seja para, através da educação, propiciar um novo modelo de sociedade.
A partir desses pressupostos, a inovação não deve ser vista como algo que se tem que aceitar, mas que requer uma análise e compreensão que pode ajudar o professor a resolver a ambivalência que sente entre continuar ensinando o que vem ensinando ou acompanhar as mudanças de uma sociedade que vem se desenvolvendo e transformando rapidamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FAZENDA, Ivani (Org.). Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia? 4. ed. São Paulo: Loyola, 1996.

______. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 8. ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2001 (Coleção Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico).

PEREIRA, M.; LEITE, M.; CAVOUR, R. A interdisciplinaridade no fazer pedagógico. Educação e Sociedade, n. 39, ago. 1991.

SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.

SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Tradução Claúdia Schilling. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.


Autor: Ariene Lopes


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