Esquecidos



Tento não esquecer como ela pegava aquele pacote prateado, tirava a liga amarela amarrada em cruz, desdobrava, desdobrava de novo, outra e outra vez. Era apenas um saco plástico, transparente e incolor, mas de tão dobrado, parecia de metal. Dentro, documentos importantes. Ela tirava alguns com cuidado e entregava à moça do balcão. A moça conferia tudo, apertava alguns botões em uma máquina e devolvia os documentos, junto com algumas notas de uma moeda que não lembro qual era. Cruzeiros, talvez. Ela pegava o dinheiro com cuidado, contava, recontava e, às vezes, pedia para eu contar. Guardava os documentos lá no fundinho do saco, bem no canto, depois dobrava tudo de volta e colocava a liga. O saco era outra vez o pacote prateado, que voltava para uma carteira velha de couro curtido. O dinheiro, ela guardava num bolso do vestido. Ela achava que os ladrões, se atacassem, levariam sua bolsa.

Lembro que ela me levava "lá em baixo", ao Mercado Adolpho Lisboa. As sacolas, de tão pesadas, pareciam cortar as mãos, mas eu não percebia. Gostava daquele universo de cores, formas, cheiros, e figuras que eu não via em outro lugar. Aquilo tudo pertenciam a um outro Amazonas, mais misterioso e autêntico, pertencia a um outro tempo. Eu era apensa um visitante. "Lá em baixo", as histórias do interior que ela contava se enchiam de realidade, ganhavam carne, sangue, ossos. Eu gostava das lembranças amazônicas para turista. Elas me falavam de um mundo que era meu, e, ao mesmo tempo, me remetiam a esse universo de mistério das histórias do interior do Amazonas. Peixes empalhados, couros de onça, de cobra, chapéus, cestos, tambores, máscaras monstruosas, índios com arco e flecha e caboclos em canoas, mil garrafinhas com extratos e óleos de plantas. Ela gostava do corredor dos temperos. Era a minha parte preferida do mercado também. Pimenta-do-reino, cravo, colorau, erva doce, cominho. Os cheiros, as latinhas pós e grãos diferentes, a preta velha com um canequinho de alumínio que servia de medida e que sempre a cumprimentava como a uma amiga, ela própria, e eu, seguro pela mão dela. Éramos um quadro vivo.

Tento não esquecer, mas, em cada uma das menores divisões do fluxo do tempo, o esquecimento ronda, circunda, avança. Devagar como um nevoeiro, ele tira o brilho e o contorno das coisas. Sorrateiro, leva detalhes. Uma coisa de que ela gostava, uma expressão que usava, um pouco do jeito deselegante que ela se vestia, uma mania, algo de seu pequeno ritual das seis horas da tarde. Já não lembro para que servem as folhas, os banhos, as cascas de árvore, das raízes, dos caroços ralados.Não sei mais como se usa a banha de cobra, o sebo de holanda, o óleo de andiroba.
Palavras e coisas tão habituais em sua boca se tornaram ecos de um Português que não entendo mais, a esculateira, o petisqueiro, a bateria, a cor encarnada, o derradeiro e o pariceiro.

O esquecimento é a morte à qual nada sobrevive. Restam os desconhecidos em álbuns de família sempre fechados, as anotações de coisas a fazer que perderam o sentido, as marcas cravados na madeira, as casas vazias, os segredos que nunca serão revelados, os destinatários não encontrados, os livros que não serão lidos, os nomes que ninguém na vizinhança conhece.

Tento não esquecer, mas, quem vai lembrar de coisas de um outro tempo, em um tempo em que só o futuro importa? Tento não esquecer, mas quem vai lembrar como ela pegava aquele pacote prateado ou da preta velha que vendia cominho quando não restar nem a lembrança do meu nome? Tento não esquecer, mas o esquecimento ronda, circunda, avança e devora tudo.


Autor: Alessandro Mesquita


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