REFLEXÕES SOBRE A MENINA E O PÁSSARO



Aquele que ensina, aprende. O doador torna-se quem recebe. Aquele que cura será curado. O curador ferido é o mais capacitado para curar. Mas aquele que aprisiona, torna-se prisioneiro.
Dentro de um livro, a palavra, na palavra, as verdades de cada leitor.

Os sonhos são as verdades além de mim. Quando estou presa à minha própria imagem (SOMBRA), desprendo-me do que me desprende. A libertação acontece quando a minha atenção não está em mim, não está na minha imagem. Essa imagem é a máscara que me solicita a satisfação do outro. Essa imagem me fixa no espelho, que é o lago de Narciso. E o próprio lago nunca chega a conhecer Narciso, pois ele próprio também está preso, sendo aprisionador. Assim conta Oscar Wilde, que o lago chorou quando Narciso morreu: "Choro por ele porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens, eu podia ver, no fundo dos seus olhos, a minha própria beleza refletida" (Paulo Coelho, O lago e Narciso. In: Revista AG, Jornal A Gazeta ? 19I12I2010).

Quando aprisiono o meu olhar em mim, vejo o que penso que o outro vê. Aprisiono o outro a mim e eu mesma ao outro. Assim, Narciso e o lago, tornam-se um só, cada um absorvendo o outro, pensando ser a si próprio.

Estou refletindo sobre a distância, a falta, o vazio prenhe, a saudade. Todas essas palavras reportam a uma só coisa: aquilo que aí não está é buscado, porque falta. E a busca finda com a alegria do encontro. O encontro é um perpassar, não uma permanência. Por isso a busca é infinda. Por isso a alegria não é permanente. Ela habita no perpassar, logo é necessário buscar mais e de novo e infinitamente.

A conseqüência natural da busca é o encontro (quem procura acha, sempre no último lugar ou tempo). A este, atribui-se a alegria (de encontrar). O encontro é um momento, o perpasse, o nó entre duas linhas, o cruzamento de duas ruas. Passado o tempo e lugar do encontro, outra coisa acontece. Não é mais alegria, mas uma realização posterior. Entre um encontro e outro, está a busca, que marca novos encontros, que geram novas alegrias. Mas a busca é angustiante, apesar de ser o caminho para o encontro que gera a alegria. Sendo a busca mesma gerada pela angústia. Essa angústia é conhecida por tristeza e nega-se então vivê-la. Quando nos negamos vivenciar a angústia, nos privamos do aprendizado na busca. Mas a angústia é o caminho ou veículo que possibilita a alegria do encontro. Paradoxal, mas cruamente verdadeiro. A alegria só se faz conhecer sendo trilhado o angustiante caminho da busca.

A atividade lúdica de "cobra cega", que consiste em tatear na busca do objeto proposto (desejado) é permeada de angústia. Entretanto, o encontro é a própria satisfação ou sentimento de alegria que dura apenas um momento, que dá lugar a uma nova proposta de busca. Nessa brincadeira, a busca é vivenciada visualizando o que se busca, a alegria do encontro, privando-se do olhar sobre os obstáculos. É vivida a experiência. No espelho, essa busca é cancelada, pois supõe a apreensão do objeto e não o encontro.

Em "A menina e o pássaro encantado", a menina aprisiona o pássaro (objeto de amor, de prazer, de alegria). Essa tentativa de aprisionar o momento de encontro, de eternizar a alegria é frustrante. É como permanecer frente ao espelho, mirando o que supõe ser a sua alegria. Entretanto, a alegria se finda, porque a alegria é gerada apenas no encontro. O aprisionamento transforma a alegria no seu inverso. É como pensar os sentimentos de paixão e amor. A paixão é um extrapolamento e o amor, a contenção. Não que a paixão seja alegria e o amor seja tristeza. Mas o primeiro sentimento é vivenciado como um sonho (e ficamos como os que sonham...) e o segundo na espera ("tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta" - I Coríntios13).

Em "A volta do pássaro encantado" imprime a cura. E essa cura procede à falta sentida da menina que se ausentou na busca da cura para o pássaro, agora desencantado. E por um instante de liberdade, o pássaro descola o olhar de si mesmo e lança-se na busca da menina que lhe falta. Então alça vôo já curado. Enquanto isso, a menina que busca a cura para o outro, cura-se a si mesma.
O pássaro como curador ferido indica o caminho da cura para a menina que, nem sabia que precisava de cura.

Refletindo a história contada na relação terapeutaIpaciente, identifico a posição das duas personagens como feridos e curadores concomitantemente. Diante do aprisionamento do pássaro, a menina busca a cura para ele. E ele mesmo indica o caminho, alertando-a sobre as asas, que a menina também possui. Sendo as assas, um símbolo de liberdade. Então, na busca pela cura, a própria menina conhece novos lugares e personagens.

O terapeuta é o pássaro e a menina. O pássaro que, ferido, indica a cura, A menina que busca a cura para o outro e encontra a sua própria cura.

Lucinéias Luchi - Psicóloga, CRP 16-327

Referencias
ALVES, Rubem. A menina e o pássaro encantado. São Paulo : Loyola, 1995
ALVES, Rubem. A volta do pássaro encantado. São Paulo : Paulus, 1989
Bíblia de referência Thompson: editora Vida
COELHO, Paulo. O lago e Narciso. In: Revista AG, Jornal A Gazeta ? 19I12I2010
Autor: Lucineias Luchi


Artigos Relacionados


Se Vivo Eu Fosse

A Menina E O Outro Menino

Encontro

Menina

Menina-moça!

Convivendo Com A Dor

Doce Morena